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Ernildo Stein (2002:122-125) – a paradoxal condição da filosofia como tarefa da finitude

sexta-feira 1º de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

Passemos à análise das quatro passagens da Metafísica, para então, numa aproximação destes textos, descobrirmos a paradoxal condição da filosofia como tarefa da finitude.

1. O que foi dito nos permite traduzir o texto de Aristóteles: “Assim, portanto, se foi para fugir à ignorância que os primeiros filósofos se entregaram à filosofia, é que eles, evidentemente, buscavam o saber em vista do conhecimento e não por causa de um fim utilitário. E o contexto dos fatos disso dá testemunho: pois apenas quando estavam presentes quase todas as coisas que aliviam as necessidades da vida (anankaia), que favorecem a tranquilidade (rastone) e que instauram o lugar em que a vida encontra sua morada estável (diagoge), começou-se a procurar um tal modo de compreender as coisas” (982b/19-24).

2. Aproximemos desta passagem uma outra, que a precede no contexto da Metafísica: “Se, portanto, foram descobertas diversas artes (technai), das quais umas aliviam as necessidade da vida (anankaia), outras ajudam a instauração do lugar para a morada estável da vida (diagoge), temos sempre por mais sábias estas que as primeiras, porque sua ciência não se dirige à utilidade. Somente depois de aperfeiçoadas todas essas artes (que visam utilidades), foram descobertas [123] aquelas nas quais se trata dos prazeres da vida e das necessidades — e isto precisamente nos lugares em que era possível uma ocupação no repouso (scholazein) (981 b/17-24).

Aristóteles compara a filosofia com as artes, porque, assim como estas, aquela tem um modo de proceder, um caminho. Mas, ela se separa das mesmas, porque seu procedimento dirige-se apenas ao conhecimento enquanto tal. Mostra depois como esse conhecimento-arte, que indaga por um lugar em que o homem possa conduzir sua vida, emerge ali onde a tranquilidade permite uma ocupação no repouso.

3. No Livro Doze da Metafísica deparamos com uma passagem que correntemente se deve ligar a 982b/17-24. Aristóteles, falando do motor imóvel, conclui que esse é princípio (arche  ), e continua: “Em tal princípio estão suspensos o céu e o que brota de si e perdura (physis  ). Esse é vida que se contém em tranquila constância (diagoge), da melhor espécie. Dessa vida nós podemos gozar por fugazes instantes (mikron chronon). Ele (arche) sempre se encontra nesse estado — o que para nós seria impossível” (1072b/14-16).

4. Se atentarmos para o fato de que essa vida que se contém em tranquilidade e da qual emerge a filosofia é posse perene do princípio no qual estão suspensos o Ouranos e a Physis, então torna-se compreensível a observação que Aristóteles faz logo após a descrição das circunstâncias em que nasce a filosofia: “Com boa razão está-se inclinado a ver, na posse dessa ciência, algo de sobrehumano. Pois a natureza humana, sob tantos aspectos, está escravizada, que talvez, [124] como diz Simonides, “só Deus poderia gozar desse privilégio”; mas seria indigno do homem não procurar por uma ciência que lhe convém. Se fosse verdade alguma coisa daquilo que dizem os poetas, e se a divindade fosse por natureza invejosa, isto se concretizaria particularmente aqui e todos os grandes nessa ciência (a filosofia) deveriam ser infelizes. Mas, de um lado, a divindade não pode ser invejosa, e — como diz o provérbio — “inventam muita coisa os poetas”, e, de outro lado, nenhuma ciência pode ser chamada mais digna do que essa. Pois a ciência mais divina é também a mais digna, e somente a sabedoria é isso, em duplo sentido: divina é, na verdade, de um lado, a ciência que o Deus poderia ter de preferência, e, de outro lado, aquela que é a ciência do divino. Ambas as características apenas convém à sabedoria. Pois, para todos os pensadores, o Deus parece ser uma das causas e um princípio, e o Deus deveria somente ou, ao menos, em primeiro lugar, possuir essa ciência. Mesmo que todas as outras ciências fossem mais necessárias, nenhuma delas, porém, a supera em dignidade” 9982b/27-38 — 983a/l-ll).

A conjugação dessas quatros passagens dá-nos a dimensão e o contexto em que Aristóteles coloca o problema da origem da filosofia. Em primeiro lugar, ela é uma ciência que brota de determinadas condições que preparam sua emergência: tranquilidade (rastone), o encontro do lugar em que a vida se possa conduzir (diagoge) e a ocupação no repouso (schole). Em segundo lugar, a filosofia se aproxima das outras ciências, enquanto é techne  , um modo de se conduzir, um método; mas delas se separa porque se dirige apenas ao conhecimento que se dá no contexto da vida que encontrou seu lugar em que pode [125] residir (diagoge). Em terceiro lugar. Aristóteles mostra que o princípio que a tudo funda é essa vida que se conduz tranquilamente (diagoge) e que, no começo, afirmou ser condição do surgimento da filosofia. Mas, ele acrescenta que os filósofos apenas se encontram neste estado — mikron chronon — por breves momentos. Nesses prepara-se o nascimento da filosofia. O fato de o filósofo somente se encontrar, por instantes fugazes, na diagoge, já é uma prova de que Aristóteles não quer insistir nela como condição material simplesmente. Esse mikron chronon, em que a vida é senhora de si (diagoge) e do qual brota a filosofia, funda a necessidade da memória e da lembrança para o filósofo. (A análise posterior da conexão entre admiração e memória mostra-lo-á com mais clareza). Em quarto lugar. Aristóteles vincula sem referência explícita, as três passagens acima citadas e comentadas, e nos dá o argumento para as ligações que procuramos estabelecer. A filosofia que brota do estado em que a arche sempre se encontra e nós apenas por breves momentos, deveria ser, em si, privilégio de Deus. Mas Aristóteles diz que essa ciência, que parece sobre-humana, convém ao homem, e que a dignidade desse depende da busca da filosofia. Acentua-se o paradoxo de uma ciência que deveria ser divina, mas que realmente convém ao homem. É ele que a exerce como tarefa, no mikron chronon que, numa visão existencial, pode ser interpretado como temporalidade e finitude.


Ver online : Ernildo Stein


[STEIN, Ernildo. Uma breve introdução à filosofia. Ijuí: UNIJUÍ, 2002, p. 122-125]