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REGRAS PARA O PARQUE HUMANO

Sloterdijk (RPH:32-49) - Antropogênese e Antropotécnicas

Excertos

segunda-feira 27 de abril de 2020, por Cardoso de Castro

Excertos de SLOTERDIJK  , Peter. Regras para o Parque Humano. Tr. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p. 32-49.

Afastaremo-nos, a seguir, das instruções de Heidegger de nos deter na figura final do pensamento meditativo, para empreender a tentativa de caracterizar mais exatamente em termos históricos a clareira extática na qual o homem dá ouvidos às palavras do ser. Mostraremos que a permanência humana na clareira — em termos heideggerianos, o ficar-dentro (Hineinstehen) ou estar-preso-dentro (Hineingehaltensein) do ser humano na clareira do ser — não é de nenhuma maneira uma relação ontológica primitiva insuscetível de qualquer exame posterior. Existe uma história — resolutamente ignorada por Heidegger — da saída dos seres humanos para a clareira: uma história social da tangibilidade do ser humano pela questão do ser e uma movimentação histórica no escancaramento da diferença ontológica.

Deve-se falar aqui, de um lado, de uma história natural da serenidade, em virtude da qual o ser humano pôde se tornar o animal aberto e capaz para o mundo, e, de outro, de uma história social das domesticações, pelas quais os homens originalmente se experimentam como aqueles seres que se reúnem8 para corresponder ao todo. A história real da clareira — da qual deve partir qualquer reflexão aprofundada sobre o ser humano que pretenda ir além do humanismo — consiste portanto de duas narrativas maiores que convergem em uma perspectiva comum, a saber, a explicação de como o animal sapiens se tornou o homem sapiens. A primeira delas dá conta da aventura da hominização. Ela narra como nos longos períodos da história pré-humana primitiva surgiu do mamífero vivíparo humano um gênero de criaturas de nascimento prematuro que — se pudermos falar de forma tão paradoxal — saíram para seus ambientes com um excesso crescente de inacabamento animal. Aqui se consuma a revolução antropogenética — a ruptura do nascimento [33] biológico, dando lugar ao ato do vir-ao-mundo. Dessa explosão, Heidegger — em sua obstinada reserva contra toda a antropologia, e em sua ânsia de preservar o ponto de partida ontologicamente puro no Estar-aí (Dasein  ) e no estar-no-mundo [In-der-Welt-sein  ] dos seres humanos — não toma nem de longe suficiente conhecimento. Pois o fato de que o homem pôde tornar-se o ser que está no mundo tem raízes na história da espécie, raízes que se deixam entrever pelos conceitos profundos da precocidade do nascimento, da neotenia e da imaturidade animalesca crônica do ser humano. O ser humano poderia até mesmo ser definido como a criatura que fracassou em seu ser-animal (Tiersein) e em seu permanecer-animal (Tierbleiben). Ao fracassar como animal, esse ser indeterminado tomba para fora de seu ambiente e com isso ganha o mundo no sentido ontológico. Esse vir-ao-mundo extático e essa “outorga” para o ser estão postas desde o berço para o ser humano como heranças históricas da espécie. Se o homem está-no-mundo, é porque toma parte de um movimento que o traz ao mundo e o abandona ao mundo. O homem é o produto de um hiper-nascimento que faz do lactente (Säugling) um habitante do mundo (Weitling).

Esse êxodo geraria apenas animais psicóticos se, com a chegada ao mundo, não se efetuasse ao mesmo tempo um movimento de entrada naquilo que Heidegger denominou “casa do ser”. As linguagens tradicionais do gênero humano tornaram capaz de ser vivido o êxtase do estar-no-mundo, ao mostrar aos homens como esse estar no mundo pode ser ao mesmo tempo experimentado como estar-consigo-mesmo. Nessa medida, a clareira é um acontecimento nas fronteiras entre as histórias da natureza e da cultura, e o chegar-ao-mundo humano assume desde cedo os traços de um chegar-à-linguagem [1].

Mas a história da clareira não pode ser desenvolvida apenas como narrativa da chegada dos seres humanos às casas das linguagens. Pois assim que os seres humanos falantes começam a viver juntos em grupos maiores e se ligam não só às casas da linguagem, mas também a casas construídas, eles ingressam no campo de força do modo de vida sedentário. Daí em diante, eles estão não apenas resguardados por sua linguagem, mas também domesticados por suas habitações. Erguem-se na clareira — como sua marca mais vistosa — as casas dos homens (com os templos de seus deuses e os palácios de seus senhores). Os historiadores da cultura deixaram evidente que, simultaneamente à adoção de hábitos sedentários, a relação entre homens e animais em seu todo adquiriu marcas completamente novas. Com a domesticação do ser humano pela casa começa, ao mesmo tempo, a epopeia dos animais domésticos. Ligá-los às casas dos homens não envolve, porém, apenas domesticação, mas também adestramento e criação.

[…]

Reconhecer que a domesticação do ser humano é o grande impensado, do qual o humanismo desde a Antiguidade até o presente desviou os olhos, é o bastante para afundarmos em águas profundas. Onde não pudermos mais ficar em pé, lá nos assoma à cabeça a evidência de que a domesticação e amicalização educacionais do ser humano não poderiam, em nenhuma época, ser alcançadas só com o alfabeto. Certamente, a leitura (Lesen) teve um imenso poder na formação humana — e, em dimensões mais modestas, continua a tê-lo; a seleção (Auslesen), contudo — seja como for que tenha sido levada a cabo — sempre funcionou como a eminência parda por trás do poder. Lições e seleções têm mais a ver entre si do que qualquer historiador da cultura quis ou pôde levar em conta e, ainda que nos pareça impossível por ora reconstruir de forma suficientemente precisa a conexão entre leitura e seleção, considerar que essa conexão, enquanto tal, possui algo de real, é mais que uma simples hipótese descompromissada.

A própria cultura da escrita produziu — até a alfabetização universal recentemente imposta — fortes efeitos seletivos: ela fraturou profundamente as sociedades que a hospedavam e cavou entre as pessoas letradas e iletradas um fosso cuja intransponibilidade alcançou quase a rigidez de uma diferença de espécie. Se quiséssemos, contrariamente às advertências de Heidegger, falar mais uma vez em termos antropológicos, os homens dos tempos históricos poderiam ser definidos como aqueles animais dos quais alguns sabem ler e escrever e outros não. Daqui, é só um passo, ainda que ambicioso, para a tese de que os homens são animais dos quais alguns dirigem a criação de seus semelhantes enquanto os outros são criados — um pensamento que desde as reflexões de Platão sobre a educação e o Estado faz parte do folclore pastoral dos europeus. Algo semelhante ecoa na afirmação de Nietzsche   acima citada, de que, dentre os homens nas pequenas casas, alguns poucos querem; quanto à maioria, porém, outros querem por eles. Que outros queiram por eles significa que eles existem apenas como objeto, e não como sujeito de seleção.

É a marca da era técnica e antropotécnica que os homens mais e mais se encontrem no lado ativo ou subjetivo da seleção, ainda que não precisem ter se dirigido voluntariamente para o papel do selecionador. Pode-se ademais constatar: há um desconforto no poder de escolha, e em breve será uma opção pela inocência recusar-se explicitamente a exercer o poder de seleção que de fato se obteve [2]. Mas tão logo poderes de conhecimento se desenvolvam positivamente em um campo, as pessoas farão uma má figura se — como na época de uma anterior incapacidade — quiserem deixar agir em seu lugar um poder mais elevado, seja ele Deus, o acaso, ou os outros. Já que as meras recusas ou abdicações costumam falhar devido a sua esterilidade, será provavelmente importante, no futuro, assumir de forma ativa o jogo e formular um código das antropotécnicas. Um tal código também alteraria retroativamente o significado do humanismo clássico — pois com ele ficaria explícito e assentado que a humanitas não inclui só a amizade do ser humano pelo ser humano; ela implica também — e de maneira crescentemente explícita — que o homem representa o mais alto poder para o homem.

[…]

[…] Desde O Político, e desde A República, correm pelo mundo discursos que falam da comunidade humana como um parque zoológico que é ao mesmo tempo um parque temático; a partir de então, a manutenção de seres humanos em parques ou cidades surge como uma tarefa zoopolítica. O que pode parecer um pensamento sobre a política é, na verdade, uma reflexão basilar sobre regras para a administração de parques humanos. Se há uma dignidade do ser humano que merece ser trazida ao discurso de forma conscientemente filosófica, isso se deve sobretudo ao fato de que as pessoas não apenas são mantidas nos parques temáticos políticos, mas porque se mantêm lá por si mesmas. Homens são seres que cuidam de si mesmos, que guardam a si mesmos, que — onde quer que vivam — geram a seu redor um ambiente de parque. Seja em parques municipais, nacionais, estaduais, ecológicos — por toda parte os homens têm de decidir como deve ser regulada sua automanutenção.


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[1Apresentei em outro lugar em que medida se deve também levar em conta, e até mais ainda, um chegar-à-imagem do ser humano: Peter Sloterdijk, Sphären I, Blasen; Sphären II, Globen, Frankfurt a. M., 1998, 1999.

[2Cf. Peter Sloterdijk, Eurotaoismus. Zur Kritik der politischen Kinetik, Frankfurt, 1989 (considerações sobre éticas dos atos de omissão e “freios” como função progressiva).