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Schuback (1998:35-38) – "Eras do mundo" [Weltalter]

segunda-feira 22 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

A filosofia tardia de Schelling  , a sua filosofia “positiva” ou da liberdade está, de certa forma, ancorada no escrito inacabado que ele denominou de Eras do mundo. Tendo sido planejadas três grandes seções — passado, presente e futuro — Schelling só redigiu, de fato, a primeira, “O passado”, em duas versões (1811 e 1813). A inconclusão desta obra “prometida” não se deve, todavia, à falta de sistematicidade que, segundo muitos, caracteriza a filosofia de Schelling e nem, tampouco, aos chamados “anos de silêncio” que viveu após a morte de Caroline, sua primeira esposa. As Eras do mundo consistem na grande obra da inconclusão e é esta filosofia da inconclusão, do devir, da constituição do mundo que se desdobrará em toda a sua reflexão posterior. Numa carta datada de 29 de janeiro [35] de 1819 ao poeta sueco Atterbom, que lhe solicitava o escrito para tradução, Schelling explica a inconclusão “uma vez que sempre senti não ser possível seguir, como gostaria, a totalidade de maneira tão plena e total, segundo minha compreensão” [1]. As Eras do mundo significam, portanto, a movimentação de devir de mundo e totalidade. O tempo do mundo, o tempo da totalidade é a questão fundamental do Romantismo, que elegeu para sua narração a expressão “alma do mundo”. Este termo, que remonta, na verdade, a Platão, foi definido com toda acuidade poética por Novalis   quando diz: “A alma do mundo, esta poderosa nostalgia do transitório” [2]. Esta nostalgia, este imperativo de retorno não fala, porém, de voltar atrás para o modo em que algo foi, mas sim de retornar ao que propicia a passagem, de retornar à condição de ser, ao não de si mesmo e que, somente assim compreendido, pode significar deixar vigorar o passado como origem e começo.

As Eras do mundo consistem na primeira grande reflexão sobre a base ontológica do devir, enquanto passo para um mundo que, formalmente, se enuncia como “nada é sem um passado”. A negatividade implícita neste passo delimita-se, mais precisamente, como um “contra si”, um “contrário a si mesmo”. Embora entenda-se, de início, passo para… como um passo ou para frente ou para trás, é preciso, contudo, lembrar que nenhum passo se faz, quer para frente, quer para trás, sem que se passe pelo seu contrário. Basta examinar com vagar toda a sequência de um saltador. Com isso se diz, positivamente, que tudo o que é, é em voltando-se contra si. Esta é a significação literal da palavra latina universum  , usada, presumivelmente, pela primeira vez por Lucrécio em Da natureza ainda na fórmula primitiva de universio. Assim, pode-se mais uma vez converter a assertiva inicial de que nada é sem mundo em “nada é sem um universo”. Uni-versio define, pois, o mundo [36] na circunstância de sua origem, no voltar-se contra si mesmo do passado, da condição. O voltar-se contra si, dimensionado na experiência de uni-versio, fala, porém, de um voltar-se contra que é, mais propriamente, um encontrar-se em si mesmo, indicando, deste modo, a simultaneidade de um sim e de um não. Esta simultaneidade, para ser ao mesmo tempo, implica diferença, em contrário e, portanto, em luta. Não se trata, porém, de briga que se pretende resolver com o extermínio de um ou outro. Nada é sem universo indica, em contrapartida, que, em seu começo, tudo o que é jamais pode aniquilar o passado em sua dinâmica de passagens e ultrapassagens. É uma luta que se alimenta da indecisão de um e outro, ou seja, o começo só tem começo, só é vitorioso, à medida que preserva o que não o deixa ter começo. Schelling explicita esta luta da seguinte maneira: “O estado intermediário, a saber, de separação e união, que em nenhum dos dois advém decidido, é a luta” [3]. Trata-se de uma luta que une e somente assim constitui, dá começo. O modo próprio da luta indecisa de começo e passado, do passo para além de si de maneira a retornar para si mesmo, é o que Schelling delimita, de modo esclarecedor, como atração (Anziehung). Em sua conotação existencial de atração entre os sexos, de atração criadora, o termo atração indica a essência desta luta indecisa como um modo de pertencimento. O modo onde pertencer depende de uma conquista, de um embate. A palavra alemã An-ziehung (a-tração) está, etimologicamente, ligada à criação (Zeugung). A atração criadora que define, ontologicamente, todo movimento de origem como copertinência de seu passado, em seu universo, releva um modo de ser que não se pronuncia nem como “ser-em” e nem como “ser-para” mas como um ser-junto-a (si mesmo) e um ser-antes-de (em si mesmo). Enquanto universio, a estrutura de remissão, a estrutura de mundo, determina-se, pois, para Schelling, como um ser-junto-a si mesmo em toda sua configuração possível (atração) que se [37] apresenta, irreversivelmente, como passado, como ser antes de ser (pertencimento). Com esta determinação, Schelling dispõe a base de uma metafísica da criação como projeto de compreensão dos entes em sua totalidade, partindo de uma crítica fundadora do sentido tradicional de criação.


Ver online : Marcia Schuback


[SCHUBACK, Marcia S. C. O Começo de Deus. A filosofia do devir no pensamento tardio de F.W.J. Schelling. Petrópolis: Editora Vozes, 2021]


[1Cit. por Kuno Fischer em Schellings Leben, Werke und Lehre, Heidelberg, Carl Winters Universitätsbuchhandlung, 1902, p. 165.

[2Novalis, “Die Lehrling zu Sais”, em Werke, Briefe, Dokumente, Heidelberg, Lambert Schneider, 1957, p. 268-269.

[3Schelling, Weltalter, p. 249.