Página inicial > Fenomenologia > Schuback (1998:25-28) – apreensão de ser como devir de si mesmo

O Começo de Deus

Schuback (1998:25-28) – apreensão de ser como devir de si mesmo

1.1. Os espelhos do começo

domingo 4 de junho de 2023, por Cardoso de Castro

“O começo reside na atração”. [Schelling  , Weltalter, p. 235]

Toda tentativa de compreensão de uma filosofia consiste, essencialmente, na entrega à sua experiência de fundo. A sua primeira formulação é, portanto, o que deverá propiciar a visão prévia e cuidadosa, ou seja, a suposição orientadora da investigação. Formularemos, como experiência fundamental de que parte o pensamento de Schelling  , a apreensão de ser como devir de si mesmo no sentido originário das palavras de Pindaro — “vem a ser, na própria experiência, aquele que tu és”. Este constitui o seu modo próprio de apresentar o problema do começo como problema fundamental do pensamento.

Para Schelling este fundo sem fundo de ser encontra no homem a sua concreção virtual, pois, nele, este fundamento se reflete como sendo ele mesmo. Neste sentido, pode-se dizer que o homem é o espelho, o “speculum”, deste fundo de ser. O enigma da liberdade humana consiste no imperativo de uma conquista sem fim de si mesmo, de um vir a ser o que o homem, desde sempre, já é. A conquista sem fim de si mesmo exprime uma insuficiência, uma incompletude de princípio. Somente o incompleto precisa buscar e conquistar a si mesmo. Antes de qualquer conotação de valor, a incompletude humana assinala para a temporalidade de devir que o constitui. O que não se [25] completa é o que devém. Todavia, a condição humana de devir não é, simplesmente, o que não se completa mas o que não pode se completar, ou seja, uma incompletude radical. Do contrário, dever-se-ia admitir algum nível de completude e, assim, de não devir, de petrificação. Este não poder se completar, não poder não devir assinala a irreversibilidade de sua condição. A expressão concreta desta irreversibilidade da própria condição é a irreversibilidade com o que o tempo do homem se apresenta: o homem é aquele que não pode não ser o seu próprio fim (é incompletude), sendo-lhe, portanto, impossível voltar atrás em sua condição. Valendo-se das palavras de Jankélévitch  , o homem é, fundamentalmente, um “irreversível incarnado”:

“O homem é um irreversível incarnado: todo o seu ‘ser’ consiste em devir (isto é, em ser não sendo) e, por acréscimo, é que ele devém (advém, provém, algumas vezes se recorda (souvient)) mas nunca retorna (revient): pois se ele pudesse retornar, a ida e a volta fariam de seu ‘ser’ uma coisa” [1].

Na condição irreversível de devir, o homem se mostra como aquele que está sempre lançado para o fim. A finitude do homem não é, porém, mera consciência da morte mas a experiência do fim como condição irreversível de seu ser. Somente por isso é que o homem pode lutar com tanta força contra o seu fim e, assim, contra si mesmo. Nos termos de Schelling, a luta contra si mesmo, inerente à experiência de finitude do homem, enuncia-se formalmente como um “alçar-se sobre si mesmo” (sich über sich selbst   erheben) [2]. O alçar-se sobre si mesmo do homem supõe, no entanto, o seu fim e limite como o que sempre de novo se de-limita e de-fine, ou seja, o que sempre de novo o devolve para o fim e limite. A exigência de delimitação e definição corresponde, portanto, à sua condição irreversivelmente finita. De-finir e de-limitar significam, [26] propriamente, trazer o limite e o fim para diante de si e, com isso, transformar limite e fim em possibilidade de realização e concreção. Esta constitui a vitalidade humana. A vitalidade transparece na possibilidade de transformar o próprio fim em infinita tentativa de superação, o próprio limite em ilimitada busca de si. Na História da filosofia moderna, Schelling explicita a essência da vitalidade da seguinte maneira:

“A vitalidade consiste na liberdade de se superar o próprio ser enquanto o que se coloca, de imediato, independentemente de si mesmo e em poder transformá-lo no que se coloca a si mesmo. Na natureza, p. ex., o morto não possui nenhuma liberdade para alterar o seu ser, ele é como é e em nenhum momento de sua existência o seu ser é o que determina a si” [3].

A vitalidade constitutiva do homem reside na liberdade de transformar seu “próprio ser”, isto é, sua própria finitude, no que se de-fine em si mesmo, no que sempre se coloca para si mesmo em tudo o que realiza. A liberdade humana não se enraíza, primordialmente, na “suspensão” (entendimento comum de superação) de seu fim, num tornar-se infinito, mas, ao contrário, na infinita colocação de si mesmo diante de seu próprio fim. Nesta explicitação, o homem só é livre à medida que se coloca, em que se prende à sua condição. Nesta acepção fundamental, o homem é o “exemplo” radical da experiência de ser como devir de si mesmo.

O termo “exemplo” traduz, aqui, a palavra alemã Beispiel que, literalmente, quer dizer: o que está em jogo juntamente com… Em seu uso medieval, Beispiel traduzia fábula [4]. “Exemplo” ou “o que está em jogo conjuntamente” fala de um mostrar e fazer aparecer. Sua singularidade acha-se, todavia, no fato de que aquilo que se quer mostrar só pode “ser” no próprio mostrar, só vem a ser o que é ao narrar e contar (ao mostrar). No entendimento de Schelling, o homem é “exemplo” da [27] experiência de ser como devir de si mesmo porque ele é a sua própria narração, o seu próprio conto. Ser o seu conto dimensiona o homem na expressão usada por Shakespeare no Hamlet: “o próprio do homem é contar um” (to count one) [5], antiga expressão inglesa para dizer “perecer”, à medida que o seu ser é saber do tempo e, mais propriamente, saber do seu tempo.


Ver online : Marcia Schuback


[SCHUBACK, Marcia S. C. O Começo de Deus. A filosofia do devir no pensamento tardio de F.W.J. Schelling. Petrópolis: Editora Vozes, 2021]


[1Vladimir Jankélévitch, L’irréversible et la nostalgie, Paris, Champs Flammarion, 1974, p. 8.

[2Schelling, Zur Geschichte der neueren Philosophie, Münchner Vorlesungen, editado por Manfred Buhr, Berlim, Verlag das europäische Buch, 1986, p. 119.

[3Idem, p. 46.

[4Friedrich Creuzer, Symbolik und Mythologie der alten Völker, Leipzig/Darmstadt, Heyer und Leske Verlag, 1819, p. 7.

[5Shakespeare, Hamlet, Portugal, Publicações Europa-América, Mem Martins, ed. bilíngue, 1989, p. 261.