Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Schopenhauer (MVR1:428-429) – injustiça

sexta-feira 27 de março de 2020

Ora, na medida em que a Vontade expõe aquela AUTO-AFIRMAÇÃO do próprio corpo em inumeráveis indivíduos, um ao lado do outro, essa auto-afirmação, em virtude do egoísmo inerente a todos, vai muito facilmente além de si mesma até a NEGAÇÃO da mesma Vontade que aparece em outro indivíduo. De fato, a vontade de um invade os limites da afirmação da vontade alheia, seja quando o indivíduo fere, destrói o corpo de outrem, ou ainda quando compele as forças de outrem a servir à SUA vontade, em vez de servir à vontade que aparece no corpo alheio, logo, quando, da vontade que aparece como corpo alheio, subtrai as forças desse corpo e assim aumenta a força a serviço de SUA vontade para além daquela do seu corpo, por conseguinte afirma sua vontade para além do próprio corpo mediante a negação da vontade que aparece no corpo alheio. Semelhante invasão dos limites da afirmação alheia da vontade foi conhecida distintamente em todos os tempos, e o seu conceito foi designado pelo nome INJUSTIÇA, devido ao fato de as duas partes reconhecerem instantaneamente o ocorrido, embora não como aqui, em distinta abstração, mas como sentimento. Quem sofre a injustiça sente a invasão na esfera de afirmação do próprio corpo, via negação deste por um indivíduo estranho, como uma dor imediata, espiritual, completamente separada e diferente do sofrimento físico infligido pelo ato, ou do pesar provocado pela perda. Por outro lado, a quem pratica a injustiça apresenta-se por si mesmo o conhecimento de que ele, em si, é a mesma Vontade que também aparece no outro corpo, afirmando-se com tanta veemência num único fenômeno que, ao transgredir os limites do próprio corpo é de suas forças, torna-se negação exatamente dessa Vontade no outro fenômeno e, por conseguinte, tomado como Vontade em si, entra em conflito consigo mesmo precisamente por meio dessa veemência, cravando os dentes na própria carne. Também a quem pratica a injustiça esse conhecimento apresenta-se instantaneamente não in abstracto, mas como um sentimento obscuro, o qual se" denomina mordida de consciência, [1] ou, mais de acordo com o presente caso, sentimento de INJUSTIÇA COMETIDA.

O conceito de INJUSTIÇA, aqui analisado em sua abstração mais universal, expressa-se in concreto da maneira mais acabada, explícita e palpável no canibalismo. Este é o tipo de injustiça mais claramente evidente, a imagem terrível do grande conflito da Vontade consigo mesma no mais elevado grau de sua objetivação, o homem. Depois dele temos o homicídio, cuja perpetração é instantaneamente seguida com horrível distinção pela mordida de consciência, cuja significação acabamos de estabelecer de modo seco e abstrato, comprometendo com chaga incurável a tranquilidade de espírito pelo resto da vida. Em verdade, o nosso horror em face do homicídio cometido e também o nosso tremor em vir a cometê-lo correspondem ao apego sem limites à vida, inerente a todo ser vivo como fenômeno da Vontade de vida (adiante lançaremos mais luz sobre aquele sentimento que acompanha a prática da injustiça e do mal, noutros termos, o peso de consciência, analisando-o mais detalhadamente e elevando-o à distinção do conceito). Em essência igual ao homicídio, diferindo dele apenas segundo o grau, encontra-se a mutilação intencional ou mera lesão do corpo alheio, sim, até qualquer golpe. — Além disso, a injustiça se expõe no subjugar do outro indivíduo, em forçá-lo à escravidão, por fim, em atacar a propriedade alheia, ataque este que — em virtude de a propriedade ser considerada como fruto do seu trabalho — equipara-se em essência à escravidão, estando para esta como a simples lesão está para o homicídio.

[Excerto de SCHOPENHAUER  , Arthur. O mundo como vontade e como representação. Primeiro Tomo. Tr. Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2005, p. 428-429]


Ver online : O mundo como vontade e como representação. Primeiro Tomo. [MVR1]


[1No original alemão Gewissensbiss: Gewissen, como já adiantamos em nota anterior, significa “consciência moral”, já Biss significa “mordida”; portanto, literalmente, “mordida de consciência”, ou remorso. (N. T.)