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Scheler (2012:3-6) – Ordo amoris (II)

sábado 17 de fevereiro de 2024, por Cardoso de Castro

“Quem possui o ordo amoris de um homem possui o homem“. Possui, relativamente a ele enquanto sujeito moral  , o que a fórmula cristalina é para o cristal. Perscruta o homem até onde é possível indagar um homem. Diante de si, por trás de toda a diversidade e complicação empíricas, sempre as simples linhas fundamentais do seu ânimo que, mais do que o conhecimento e a vontade, merece chamar-se o cerne do homem enquanto ser espiritual. Possui num esquema espiritual a fonte originária que alimenta secretamente tudo o que deste homem emana; mais ainda: o elemento determinativo primigénio do que constitui a característica permanente de por ele se circunscrever — o seu ambiente moral no espaço, o seu destino no tempo, isto é, a totalidade do possível de se tomar o que a ele e somente a ele pode acontecer. Com efeito, já a impressão do valor excitante, segundo a sua espécie e intensidade, em algumas actividades da natureza, independentes do homem, mas sobre ele recaindo, não ocorre sem a cooperação do seu ordo amoris.

Na hierarquia particular dos valores e das qualidades axiológicas mais simples, ainda não modelados em coisas e bens, que representam [4] a vertente objectiva do seu ordo amoris, o homem caminha como num habitáculo, que consigo arrasta para onde quer que vá; não se lhe pode esquivar, por mais depressa que corra. É através das janelas deste habitáculo que observa o mundo e a si mesmo — não vê mais do mundo e de si mesmo e nada mais excepto o que estas janelas lhe mostram, segundo a sua posição, grandeza e cor. Efectivamente, a estrutura do mundo circundante de cada homem — em última análise, articulado no seu conteúdo global segundo a sua estrutura axiológica — não se desloca e altera, quando o homem muda de lugar no espaço. Simplesmente se preenche, de cada vez, com determinadas coisas particulares — mas de um modo tal que também esta repleção acontece segundo a lei formativa que a estrutura axiológica do meio ambiente prescreve [1]. As coisas-bens, no meio das quais o homem conduz a sua vida, as coisas práticas — estão já também sempre penetradas e, por assim dizer, vigiadas pelo mecanismo selectivo especial do seu ordo amoris. Não o atraiem as mesmas coisas e os homens, mas de algum modo a mesma classe — e estas “classes”, que, em todos os casos, são classes de valor, é que o atraiem segundo certas regras constantes da preferência (e preterição) de uma perante a outra, e o atraiem ou repelem em toda a parte onde quer que vá. Esta atracção e repulsa, como atracção e repulsa detectada a partir das coisas — e não do eu, como a chamada atenção activa — e de novo potencialmente eficazes, como atitudes reguladas e delimitadas do interesse   e do amor vividas como disposição para o contacto —, é que não só determinam o que ele percebe, o que observa e deixa de perceber e de observar, mas determinam já também o próprio material de todo o possível perceber e observar. As coisas reais costumam anunciar-se no limiar do nosso mundo circundante por um som de trombeta de sinal axiológico, por assim dizer inteiramente primigénio, que se antecipa ainda à unidade de percepção e clama “aí vai isto!” —sinal que provém das coisas, e não das nossas vivências; oriundas das lonjuras do mundo, as coisas reais ingressam, como membros seus, no [5] nosso mundo circunjacente. Este fenómeno do “anunciar-se” sobressai de modo claro justamente onde não seguimos o impulso das coisas, onde não chegamos a ter qualquer percepção do ponto de partida desse impulso, porque já lhe oferecemos uma resistência voluntária no grau da sua eficácia, ou onde um impulso mais forte sufoca já em germe o mais débil. Nesta atracção e nesta repulsa esconde-se já o ordo amoris do homem e o seu especial relevo. E assim como a estrutura do mundo circunjacente se não altera com o respectivo meio ambiente fáctico, assim também não muda a estrutura do destino do homem graças à novidade que ele vive, quer, faz e cria no seu futuro, ou em virtude da novidade que se lhe depara: destino e mundo circundante assentam nos mesmos factores do ordo amoris do homem e distinguem-se apenas pela dimensão temporal   e espacial. O modo legal da sua formação, cuja investigação é um dos problemas mais importantes do estudo profundado da essência moral “homem”, deriva sempre e em toda a parte do ordo amoris.

Salientar-se-á, mais tarde, o que significa a doutrina dos distúrbios do ordo amoris para a compreensão dos destinos humanos [2]. Refira-se aqui apenas o que nos autoriza a chamar a algo o nosso “destino”. Não é, decerto, tudo o que acontece à nossa volta ou em nós, tudo o que sabemos que nós livremente quisemos ou produzimos; decerto, também não tudo o que nos afecta só a partir de fora. Também em tudo isso há muitas coisas que sentimos como demasiado contingentes para as podermos incluir no nosso destino. Do destino exigimos, sem dúvida, que nos afecte involuntariamente e quase sempre de um modo imprevisível, mas que represente ainda algo de distinto da série de ocorrências e de acções submetidas à coacção causal, a saber, a unidade de um sentido perspectivante, que nos apresente uma conexão essencial e individual do carácter humano e do acontecer em torno do homem e no seu íntimo. Portanto, apenas isto: que, no panorama de uma vida inteira ou de uma grande série de anos e de acontecimentos, talvez sintamos [6] cada caso particular de tais acontecimentos como absolutamente contingente, mas cuja conexão — por imprevisível que tenha sido cada parte do todo, antes do seu advento — reflecte justamente o que devemos olhar também como o núcleo da pessoa em questão, é uma consonância de mundo e homem, que se nos denuncia nesta unicidade de sentido do curso de uma vida, consonância totalmente dependente do querer, da intenção, do desejo, mas também do acontecer objectivamente real e contingente, e até da união e da interacção de ambos. Embora o destino, pelo seu conteúdo, englobe tudo o que ao homem “acontece”, portanto, tudo o que se encontra para lá da vontade e do propósito —é igualmente certo que, quanto ao conteúdo, só acontece a este único sujeito moral o que precisamente apenas a ele podia acontecer. Por conseguinte, só é permitido chamar “destino” de um homem ao que há no ámbito de certas possibilidades da vivência do mundo, rigorosamente circunscritas do ponto de vista caracterológico — ámbitos que, mesmo na persistência dos acontecimentos externos, variam de homem para homem, de povo para povo — e ao que parece encher tais ámbitos de acontecimentos reais. E, nessa acepção mais estrita da palavra, o modo de formação do efectivo ordo amoris de um homem — e decerto o seu modo de formação segundo regras totalmente determinadas de funcionalização progressiva dos objectos primários de amor na sua primeira infância — é justamente o que domina o decurso do conteúdo do seu destino.


Ver online : Max Scheler


[“Ordo amoris”, in Gesammelte Werke, Bd. 10, Zurique, Francke Verlag, 1957, pp. 347-376, tr. Artur Morão. LusoSofia]


[1A propósito de “estrutura do meio ambiente = estrutura axiológica do meio ambiente”, cf. O Formalismo, Secção III.

[2Aqui e noutros lugares, faz-se uma referência a partes ulteriores que não se encontraram no espólio de M. Scheler.