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HEIDEGGER, UM MESTRE DA ALEMANHA

Safranski: O Nada

terça-feira 30 de maio de 2017, por Cardoso de Castro

Excertos de Rüdiger Safranski  , Heidegger, p. 220-223

É isso: Heidegger quer forçar seus ouvintes a, por um momento, olharem o "fundo do mundo".

O fundo, fundamento, todas essas frases sobre fundo suficiente, a postura científica e o sentimento cotidiano da vida - aonde quer que se olhe: por toda a parte manifesta-se a necessidade de pisar chão firme. Heidegger passa em revista com leve tom irônico as diferentes variantes de solidez e moradia (Behaustheit). Mas e como fica o nada? - pergunta ele entrementes. Quem indaga radicalmente pelo fundo e fundamentos não tem de descobrir alguma vez que o fundamento (Grund  ) é um abismo (Abgrund)? Que um algo só pode se apartar de nós tendo como pano de fundo o nada?

Por algum tempo Heidegger assume o papel de cientista positivista e lógico, para os quais sabidamente o nada nem existe. O cientista sempre lida apenas com um algo, e o lógico indica que o nada é apenas um artifício linguístico, uma substantivação de um juízo negativo. ("A flor não é amarela" ou "Ele não volta para casa".) Essas objeções dão a Heidegger a oportunidade de polemizar contra o atrofiamento (Absterben) e desenraizamento interiores das ciências modernas. Ela se fecharia contra experiências elementares. A ideia da lógica mesma se dilui no torvelinho de um indagar mais primordial (WM, 37). Heidegger permanece no rastro do nada. Mas não o pode provar com argumentos, precisa despertar uma experiência. É o momento da angústia, que já conhecemos. A angústia revela o nada. Nós flutuamos na angústia. Mais explícito: a angústia nos faz flutuar porque ela faz com que o ente no todo escape (Entgleiten) (WM, 9).

Esse escapar é ao mesmo tempo algo que estreita e esvazia. Esvazia, porque tudo perde seu sentido e se torna nulo. Estreita, porque o que foi anulado penetra no sentimento do eu-mesmo. A angústia esvazia e esse vazio estreita: o coração se crispa. O mundo exterior se coisifica, paralisado em ausência de vida, e o eu-mesmo interior perde seu centro de ação, despersonalizando-se. Medo é coisificação fora e despersonalização dentro. Nisso consiste que nós mesmos - esses seres humanos entes - escapamos de nós mesmos no meio do ente. Por isso no fundo não é sinistro para mim ou para ti mas para a gente (WM, 32).

Nesse ponto zero do medo Heidegger executa agora uma volta surpreendente. A esse mergulho momentâneo no nada ele chama de sair para fora do ente. É um ato de transcender, com o qual se torna possível falar do ente como um todo. Naturalmente também podemos abordar o tema do todo de maneira abstrata. Formamos, meramente no pensamento, um supraconceito (Uberbegriff) ou um conceito coletivo (Sammelbegriff): totum  , o todo. Mas o todo assim compreendido não tem realidade vivida, é apenas conceito sem conteúdo. Só quando surge a sensação amedrontadora de que esse todo não tem nada em si ele se torna realidade vivida; uma realidade que não vem ao nosso encontro mas escapa de nós. Aquele a quem a realidade escapa na angústia, esse sente nisso o drama   da distância. A distância amedrontadora prova que não somos inteiramente deste mundo, que somos levados acima dele, expulsos dele, não para outro mundo mas para um vazio. No meio da vida somos rodeados de vazio. Na transcendência desse espaço vazio que se abre entre nós e mundo, vivenciamos o ser-colocado dentro do nada (WM, 38). Cada pergunta pelo por quê se nutre dessa indagação última: por que algo é e não é nada? Quem, pensando, consegue se remover, ou ao mundo, quem sabe dizer não, age na dimensão do nada. Prova que existe isso: o nada. Heidegger diz, o ser humano é guardião do nada (WM, 38).

Portanto, a transcendência do Dasein   é o nada.

Os religiosos e os filósofos do momento fazem surgir no momento o numinoso (Rudolf Otto), ou aquilo "que nos interessa absolutamente" (Paul Tillich), ou o "reino de Deus" (Karl Barth), ou o "abrangente" (Karl Jaspers  ). Também o momento de Heidegger conduz a uma transcendência, mas uma transcendência do vazio. A transcendência do nada. Mas a força do numinoso não desapareceu. Ela brota do singular movimento entre nada e algo, que o ser humano pode executar com consciência. Esse é o seu espaço numinoso que lhe permite vivenciar como milagre - o milagre de sequer existir alguma coisa. E não apenas isso - igualmente espantoso é nesse pano de fundo a potência criativa do ser humano: ele pode produzir uma coisa; ele se encontra com toda a contingência do ser-assim, mas pode configurar a si mesmo e ao seu mundo, pode deixar o ser crescer e também destruí-lo. No medo do vazio perdemos um mundo e mesmo assim vivenciamos como do nada sempre nasce outro mundo. Através da angústia podemos vir ao mundo outra vez.

Dasein significa: existir nesse espaço, nessa amplidão aberta. O espaço é aberto pela vivência do nada. A roda pode girar, porque tem "jogo" no eixo - da mesma forma move-se o Dasein, porque tem "jogo", isto é, liberdade. Dessa liberdade não faz parte apenas que o Dasein vivencie o nada, mas também que pode conquistar espaço dizendo não na dureza do agir-contra ou na agudeza do detestar, na dor do fracassar ou na implacabilidade do proibir (WM, 37).

Para Heidegger o não e o nada são o grande mistério da liberdade. Pois aquele espaço entre nada e algo que se abriu no Dasein dá liberdade para separar, para distinguir e para decidir. Sem revelação original do nada nem ser-si mesmo nem liberdade (Ibid).

O acontecimento metafísico fundamental do Dasein é pois o seguinte: na medida em que o Dasein pode transcender no nada, ele também pode vivenciar o ente no todo como algo que sai da noite do nada para a claridade do ser.


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