Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Rosendo (2013:4-5) – “No princípio era o acto”

domingo 5 de janeiro de 2020

Excerto de ROSENDO, Ana Paula. ‘NO PRINCIPIO ERA O ACTO’. Ecos do excerto de um parágrafo de Wittgenstein no pensamento de M. Henry. Covilhã: LusoSofia, 2013, p. 4-5.

Ludwig Wittgenstein   [1] utiliza uma expressão da obra Fausto de Goethe  , “No princípio era o acto”, por ser ilustradora de uma das suas ideias mais caras, a importância da acção. Este mote inspirou-nos à consideração do papel da acção no pensamento de Michel Henry  . Pode, à primeira vista, parecer desconcertante que uma fenomenologia da imanência se preocupe com questões aparentemente objectivas, porque a praxis   é vista, na generalidade dos casos, como uma objectivação. Ora, é justamente por ligar a praxis ou produção à subjetividade viva que esta se toma numa fenomenalidade do real, porque a realidade são os sujeitos vivos e não outra coisa. A idealidade teórica e objectivadora, uma constante da tradição ocidental que, na óptica deste autor, é constratura de mundos virtuais e alienadores, como leitor e intérprete de Marx  , considerou que este pensamento propõe «inverter o sentido da relação fundadora que se instituiu entre o real e o ideal  », [2] porque a realidade deve ser compreendida como «acção e produção». [3]

Artigo bicéfalo propõe-se a analisar a acção sob duas vertentes, numa primeira parte pondo o enfoque na praxis social e cultural através do Marx, numa segunda procurando a gênese transcendental   da acção através de uma fenomenologia da carne.

Como o Homem produz, desde sempre, tudo aquilo que faz parte da sua vida, tudo aquilo de que necessita, o trabalho transforma-se em revelação do sujeito, materializando-o e dando-lhe simultaneamente um sentido, a par de uma consciência de si próprio. É pelo trabalho que nos conhecemos como sujeitos e como Povo. [4] Assim, o Homem real e carnal é subjetividade auto-impressional que se revela e se desvela na acção. A praxis como acção real não é somente a do artesão, a do operário ou a de outra qualquer profissão, mas encontra-se presente em todo o tipo de actividade humana, desde o cuidar dos filhos, até ao cultivo da amizade, porque o Homem não está, em momento algum, destituído da afetividade que é a sua essência, porque o Homem é sempre um ser de relação. Convém sublinhar que a praxis não é um processo que deriva de uma interioridade “cega” que precisa de grandes representações teóricas que a orientem ou dirijam. É um processo que é subjetivo e deriva da experiência interior, é «tensão viva de uma existência que se prova no seu acto e que com ele coincide». [5] Mais do que uma atividade que deriva de uma necessidade, a praxis ou produção encontra as suas determinações nas estruturas internas do indivíduo atualizando-as permanentemente. Portanto, não devemos fazer corresponder o trabalho que é praxis subjetiva a algo que é objetivo “porque a essência do trabalho é subjetiva, subjetivas também devem ser as suas leis.” [6]

Toda a praxis radica no sujeito individual e a ideia de praxis social como um todo só adquire sentido se reportar ao indivíduo, ao sujeito encarnado e impressivo. A ideia de que possa existir uma praxis social desligada dos sujeitos é perigosa, pois corre o risco de se transformar numa hipóstase esmagadora dos mesmos. [7]


Ver online : “No princípio era o acto”


[1402. «(…) und schreib getrost “Im Anfang war die Tat.”» In: Wittgenstein, L. Da Certeza, trad. Ma Elisa Costa, Lisboa, ed 70, 2012.

[2Henry, M., Marx I, Une Philosophie de la Réalité, Paris, Gallimard, 1976, p.81.

[3Idem, ibidem, p. 82.

[4Henry, M., Phénoménologie de la vie, Le concept de l’être comme production, tomo III, Paris, P.U.F., 2004, p.23.

[5Idem, ibidem, p.33.

[6Idem, ibidem, p. 35.

[7Henry, M., Marx I, p.358.