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A Memória, a História, o Esquecimento

Ricoeur (2000:3-4) – De que há lembrança? De quem é a memória?

DA MEMÓRIA E DA REMINISCÊNCIA

quinta-feira 22 de junho de 2023, por Cardoso de Castro

Os gregos tinham dois termos, mneme   e anamnesis, para designar, de um lado, a lembrança como aparecendo, passivamente no limite, a ponto de caracterizar sua vinda ao espírito como afecção — pathos   —, de outro lado, a lembrança como objeto de uma busca geralmente denominada recordação, recollection.

Alain François

A fenomenologia da memória aqui proposta estrutura-se em torno de duas perguntas: De que há lembrança? De quem é a memória?

Essas duas perguntas são formuladas dentro do espírito da fenomenologia husserliana. Privilegiou-se, nessa herança, a indagação colocada sob o adágio bem conhecido segundo o qual toda consciência é consciência de alguma coisa. Essa abordagem “objetal” levanta um problema específico no plano da memória. Não seria ela fundamentalmente reflexiva, como nos inclina a pensar a prevalência da forma pronominal: lembrar-se de alguma coisa é, de imediato, lembrar-se de si? Entretanto, insistimos em colocar a pergunta “o que?” antes da pergunta “quem?”, a despeito da tradição filosófica, cuja tendência foi fazer prevalecer o lado egológico da experiência mnemonica. A primazia concedida por muito tempo à questão “quem?” teve o efeito negativo de conduzir a análise dos fenômenos mnemònicos a um impasse, uma vez que foi necessário levar em conta a noção de memória coletiva. Se nos apressarmos a dizer que o sujeito da memória é o eu, na primeira pessoa do singular, a noção de memória coletiva poderá apenas desempenhar o papel de conceito analógico, ou até mesmo de corpo estranho na fenomenologia da memória. Se não quisermos nos deixar confinar numa aporia inútil, será preciso manter em suspenso a questão da atribuição a alguém — e, portanto, a todas as pessoas gramaticais — do ato de lembrar-se, e começar pela pergunta “o que?”. Numa boa doutrina fenomenológica, a questão egológica — independentemente do que ego   possa significar — deve vir depois da questão intencional, que é imperativamente a da correlação entre ato (”noese”) e o correlato visado (”noema  ”). Nosso desafio, nesta primeira parte dedicada à memória, sem considerar seu destino no decorrer da etapa historiográfica da relação com o passado, é poder levar tão longe quanto possível uma fenomenologia da lembrança, momento objetai da memória.

O momento da passagem da pergunta “o que?” para a pergunta “quem?” será ainda retardado por um desdobramento significativo da primeira pergunta entre um lado propriamente cognitivo e um lado pragmático. Neste aspecto, a história das noções e das palavras é instrutiva: os gregos tinham dois termos, mneme   e anamnesis, para designar, de um lado, a lembrança como aparecendo, passivamente no limite, a ponto de caracterizar sua vinda ao espírito como afecção — pathos   —, de outro lado, a lembrança como objeto de uma busca geralmente denominada recordação, recollection. A lembrança, alternadamente encontrada e buscada, situa-se, assim, no cruzamento de uma semântica com uma pragmática. Lembrar-se é ter uma lembrança ou ir em busca de uma lembrança. Nesse sentido, a pergunta “como?” formulada pela anamnesis tende a se desligar da pergunta “o que?” mais estritamente formulada pela mneme. Esse desdobramento da abordagem cognitiva e da abordagem pragmática tem uma incidência maior sobre a pretensão da memória à fidelidade em relação ao passado: essa pretensão define o estatuto veritativo da memória, que será preciso, depois, confrontar com o da história. Enquanto isso, a interferência da pragmática da memória, em virtude da qual lembrar-se é fazer alguma coisa, exerce um efeito de confusão sobre toda a problemática veritativa (ou veridictiva): possibilidades de engano inserem-se inelutavelmente nos recursos dos usos e abusos da memória apreendida em seu eixo pragmático. A tipologia dos usos e abusos, que vamos propor no capítulo 2, sobrepor-se-á à tipologia dos fenômenos mnemônicos do capítulo 1.

Ao mesmo tempo, a abordagem pragmática da anamnesis propiciará a transição adequada da pergunta “o que?”, tomada no sentido estrito de uma investigação dos recursos cognitivos da lembrança, para a pergunta “quem?”, centrada na apropriação da lembrança por um sujeito capaz de se lembrar de si.

Será este o nosso caminho: do “o que?” ao “quem?”, passando pelo “como?” — da lembrança à memória refletida, passando pela reminiscencia.

Original

La phénoménologie de la mémoire ici proposée se structure autour de deux questions : de quoi y a-t-il souvenir ? de qui est la mémoire ?

Ces deux questions sont posées dans l’esprit de la phénoménologie husserlienne. On a privilégié dans cet héritage la requête placée sous l’adage bien connu selon lequel toute conscience est conscience de quelque chose. Cette approche « objectale » pose un problème spécifique au plan de la mémoire. Celle-ci n’est-elle pas fondamentalement réflexive, comme incline à le penser la forme pronominale qui prévaut en français : se souvenir de quelque chose, c’est immédiatement se souvenir de soi ? On a tenu néanmoins à poser la question « quoi ? » avant la question « qui ? » en dépit de la tradition   philosophique qui a tendu à faire prévaloir le côté égologique de l’expérience mnémonique. Le primat longtemps donné à la question « qui ?» a eu pour effet négatif de conduire l’analyse des phénomènes mnémoniques dans une impasse, dès lors qu’il a fallu prendre en compte la notion de mémoire collective. Si l’on dit trop vite que le sujet de la mémoire est le moi à la première personne du singulier, la notion de mémoire collective ne peut faire figure que de concept analogique, voire de corps étranger dans la phénoménologie de la mémoire. Si l’on veut éviter de se laisser enfermer dans une inutile aporie, alors il faut tenir en suspens la question de l’attribution à quelqu’un — et donc à toutes les personnes grammaticales — de l’acte de se souvenir, et commencer par la question « quoi ? ». En bonne doctrine phénoménologique, la question égologique — quoi que signifie ego — doit venir après la question intentionnelle, laquelle est impérativement celle de la corrélation entre acte (« noèse ») et corrélât visé (« noème »). Le pari pris dans cette première partie consacrée [3] à la mémoire, sans égard pour son destin au cours de l’étape historiographique de la relation au passé, est de pouvoir conduire aussi loin que possible une phénoménologie du souvenir, moment objectai de la mémoire.

Le moment du passage de la question « quoi ?» à la question « qui ? » sera encore retardé par un dédoublement significatif de la première question entre une face proprement cognitive et une face pragmatique. L’histoire des notions et des mots est à cet égard instructive : les Grecs avaient deux mots, mneme et anamnesis, pour désigner d’une part le souvenir comme apparaissant, passivement à la limite, au point de caractériser comme affection — pathos — sa venue à l’esprit, d’autre part le souvenir comme objet d’une quête ordinairement dénommée rappel, recollection. Le souvenir, tour à tour trouvé et cherché, se situe ainsi au carrefour d’une sémantique et d’une pragmatique. Se souvenir, c’est avoir un souvenir ou se mettre en quête d’un souvenir. En ce sens, la question « comment ? » posée par l’anamnesis tend à se détacher de la question « quoi ? » plus strictement posée par la mneme. Ce dédoublement de l’approche cognitive et de l’approche pragmatique a une incidence majeure sur la prétention de la mémoire à la fidélité à l’égard du passé : cette prétention définit le statut véritatif de la mémoire, qu’il faudra plus tard confronter avec celui de l’histoire. En attendant, l’interférence de la pragmatique de la mémoire, en vertu de laquelle se souvenir c’est faire quelque chose, exerce un effet de brouillage sur toute la problématique véritative (ou véridictive) : des possibilités d’abus se greffent inéluctablement sur les ressources d’usage, d’us, de la mémoire appréhendée sur son axe pragmatique. La typologie des us et abus que l’on proposera dans le chapitre 2 se superposera à la typologie des phénomènes mnémoniques du chapitre 1.

En même temps, l’approche pragmatique de l’anamnèse fournira la transition appropriée de la question « quoi ? », prise au sens strict d’une investigation des ressources cognitives du souvenir, à la question « qui ? », centrée sur l’appropriation du souvenir par un sujet capablede se souvenir de soi.

Tel sera notre chemin : du « quoi ? » au « qui ? » en passant par le « comment ?» — du souvenir à la mémoire réfléchie en passant par la réminiscence.


Ver online : Paul Ricoeur