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O si-mesmo como um outro

Ricoeur (1990/1991:405-407) – o apelo da consciência

3. Ipseidade e alteridade – c. A consciência

domingo 2 de julho de 2023, por Cardoso de Castro

Nisso tudo, a crítica de Heidegger do sentido comum encontra-se manifestamente próxima da Genealogia da moral   de Nietzsche  . Como consequência, são rejeitados em bloco o ponto de vista deontológico de Kant  , a teoria scheleriana dos valores e, no mesmo movimento, a função crítica da consciência. Tudo isso fica na dimensão da preocupação, a que falta o fenômeno central, o apelo às possibilidades mais apropriadas.

Lucy Moreira Cesar

Esse arrancamento da consciência à falsa alternativa da “boa” e da “má” consciência encontra em Heidegger, no capítulo “Consciência” (Gewissen  ) da segunda parte de Ser e tempo  , sua formulação mais radical, que resume esta única frase: “A atestação de um poder-ser autêntico é dada pela consciência” ([234] trad. Martineau  , p. 175); trad. Vezin  , p. 287). Ficamos tanto mais atentos à análise de Heidegger quanto lhe devemos a execução de toda esta discussão, lançada pela metáfora da voz. Esse poder-ser que a consciência atesta não é inicialmente marcado por alguma competência a distinguir o bem do mal. A consciência, poderia-se dizer, está, a seu modo, “além do bem e do mal”; surpreende-se aí um dos efeitos da luta levada contra o pensar-valor dos neokantianos e, mais ainda, contra aquele de Max Scheler   em sua Ética material [não formal  ] dos valores. Tudo se passa como se, para sublinhar Sein   em Dasein  , nós evitássemos reconhecer alguma força originariamente ética ao apelo, à advocação (segundo a tradução proposta por E. Martineau) do Anruf  . Com efeito, quer consideremos o conteúdo ou a origem do apelo, nada se anuncia que não esteja já nomeado sob o título de poder-ser; a consciência não diz nada: sem algazarra nem mensagem, mas um apelo silencioso. Quanto ao apelante, ele não é outro que o próprio Dasein: “Na consciência, o Dasein chama-se ele próprio” ([275] trad. Martineau, p. 199; cf. trad. Vezin, p. 332). Encontra-se aí provavelmente o momento mais surpreendente da análise: é na imanência integral do Dasein a ele próprio, que Heidegger reconhece uma certa dimensão de superioridade: “o apelo não vem incontestavelmente de um outro que está no mundo comigo. O apelo vem de mim e, no entanto, ele me supera” [aus mir und doch uber mich] (ibid.) [1]. [405]

Se nós nos limitarmos a essas fórmulas, não vemos o que a análise da consciência acrescenta à do poder-ser senão o selo de originariedade e autenticidade que a consciência põe sobre a atestação. A novidade reside na explicação do traço de estran(h/geir)eza [Unheimlichkeit  ] (adoto a grafia de E. Martineau) pelo que a consciência se inscreve na dialética do Mesmo e do Outro. Uma sutil aproximação se faz entre a estran(h/geir)eza da voz e da condição descabida (ou cabida?) do ser-lançado. É, com efeito, na existência, que o Dasein é lançado. A confusão da passividade, da não-dominação, da afeição, ligadas ao ser-convocado orienta-se para uma meditação sobre a nadificação, isto é, sobre a não-escolha radical que afeta o ser no mundo, considerado do ângulo de sua inteira facticidade [2].

A introdução tardia da noção de Schuld   — “dívida”, segundo a tradução de Martineau — não restitui de modo nenhum a essa estrangeireza, qualquer conotação ética que seja. O acento é fortemente posto sobre Sein em Schuldigsein: “O essencial aqui é que o ‘em dívida’ surge como predicado do ‘eu sou’ ” ([281] trad. E. Martineau, p. 203; cf. trad. Vezin, p. 338). Por essa insistência na ontologia da dívida, Heidegger dissocia-se do que o sentido comum liga precisamente à ideia de dívida, a saber, que ela seja para com alguém — que se seja responsável como devedor —, enfim, que o ser, um com o outro, seja público. É bem isso que Heidegger tenciona reduzir a pão e laranja [3]. A ontologia vela sobre o limiar da ética. Heidegger martela sua exigência: primeiramente informar-se fundamentalmente do “ser em dúvida do Dasein” ([283] Martineau, p. 204; cf. trad. Vezin, p. 340); portanto, em primeiro lugar sobre um modo de ser. Desse modo são colocados fora de jogo os fenômenos vulgares de dívida, de endividamento, que são relativos ao “ser-com” preocupado com os outros” (ibid.). O ser em dívida não resulta, pois, do endividamento (Verschuldung) — mas o inverso. Se alguma falta é revelada [406] aqui, não é o mal — a guerra, diria Lévinas —, mas um traço ontológico previsível a toda a ética: “O ser-fundamento de uma nulidade” (Grundsein   einer Nichtigkeit  ) ([283] trad. Martineau, p. 204; cf. trad. Vezin, p. 341) [4]. Já não se pode claramente repelir o primado da ética: “Se o ser-em-dívida originário não pode ser determinado pela moralidade, é que esta o pressupõe já para ela mesma” ([286] trad. Martineau, p. 206; cf. trad. Vezin, p. 344). Infelizmente, Heidegger não mostra como poderíamos percorrer o caminho inverso: da ontologia para a ética. É, contudo, o que parece prometer no parágrafo 59, onde ele entra em debate com a “explicação vulgar da consciência”. Nesse sentido, a atestação gera uma certa criteriologia, ao menos como crítica do sentido comum. Resulta daí uma crítica das noções de “boa” e de “má” consciência nos termos próximos dos que nós empregamos. É, em primeiro lugar, a noção de “má” consciência que é atingida pela “vulgaridade”: ela vem, com efeito, muito tarde, ulteriormente (ela é reativa, diria Nietzsche  ); falta-lhe, portanto, o caráter pro-spectivo inerente à preocupação. Nada, portanto, para tirar do re-morso, do arrependimento. Quanto à “boa” consciência, ela se vê afastada como farisaica: Pois quem pode dizer “eu sou bom”? Heidegger não quer mesmo ouvir falar da consciência como admoestação, advertência, em nome desse curioso argumento de que a consciência se tornaria assim prisioneira do “se” [292]. Nisso tudo, a crítica de Heidegger do sentido comum encontra-se manifestamente próxima da Genealogia da moral   de Nietzsche. Como consequência, são rejeitados em bloco o ponto de vista deontológico de Kant  , a teoria scheleriana dos valores e, no mesmo movimento, a função crítica da consciência. Tudo isso fica na dimensão da preocupação, a que falta o fenômeno central, o apelo às possibilidades mais apropriadas. Nisso a atestação é realmente uma espécie de compreensão, mas irredutível a um saber alguma coisa. O sentido da atestação está agora selado. “Convocação provocante ao ser-em-dívida” ([295] trad. Martineau, p. 211; cf. trad. Vezin, pp. 353-354).

Original

Cet arrachement de la conscience à la fausse alternative de la « bonne » et de la « mauvaise » conscience trouve chez Heidegger, dans le chapitre « Conscience » (Gewissen) de la seconde partie d’Être et Temps, sa formulation la plus radicale, que résume cette seule phrase : « L’attestation d’un pouvoir-être authentique, c’est la conscience qui la donne » ([234] trad. Martineau, p. 175 ; trad. Vezin, p. 287). Nous sommes d’autant plus attentifs à l’analyse de Heidegger que nous lui devons la mise en route de toute cette discussion, lancée par la métaphore de la voix. Ce pouvoir-être que la conscience atteste n’est initialement marqué par aucune compétence à distinguer le bien du mal. La conscience, pourrait-on dire, est à sa façon « par-delà bien et mal » ; on surprend là un des effets de la lutte menée contre le penser-valeur des néokantiens et, plus encore, contre celui de Max Scheler dans son Éthique matériale [non formelle] des valeurs. Tout se passe comme si, à souligner Sein dans Dasein, on se retenait de reconnaître quelque force originairement éthique à l’appel, à l’advocation (selon la traduction proposée par E. Martineau) de l’Anruf. En effet, que l’on considère le contenu ou l’origine de l’appel, rien ne s’annonce   qui n’ait été déjà nommé sous le titre de pouvoir-être ; la conscience ne dit rien : pas de vacarme, ni de message, mais un appel silencieux. Quant à l’appelant, il n’est autre que le Dasein lui-même : « Dans la conscience, le Dasein s’appelle lui-même » ([275] trad. Martineau, p. 199 ; cf. trad. Vezin, p. 332). C’est là sans doute le moment le plus surprenant de l’analyse : c’est dans l’immanence intégrale du Dasein à lui-même que Heidegger reconnaît une certaine dimension de supériorité : « l’appel ne vient incontestablement pas d’un autre qui est au monde avec moi. L’appel vient de moi et pourtant il me dépasse [aus mir und doch über mich] » (ibid.) 59.

Si l’on se borne à ces formules, on ne voit pas ce que l’analyse de la conscience ajoute à celle du pouvoir-être, sinon le sceau d’originarité et d’authenticité que la conscience met sur l’attestation. La nouveauté réside dans l’explicitation du trait d’étrang(èr)eté (j’adopte la graphie d’E. Martineau) par quoi la conscience s’inscrit dans la dialectique du Même et de l’Autre. Un subtil rapprochement se fait entre l’étrang(èr)eté de la voix et la condition déchue (ou échue ?) de l’être-jeté. C’est en effet dans l’existence que le Dasein est jeté. L’aveu de la passivité, de la non-maîtrise, de l’affection, liées à l’être-convoqué, s’oriente vers une méditation sur la néantité, c’est-à-dire sur le non-choix radical qui affecte l’être dans le monde, considéré sous l’angle de son entière facticité 60.

L’introduction tardive de la notion de Schuld – « dette », selon la traduction de Martineau – ne restitue nullement à cette étrangèreté quelque connotation éthique que ce soit. L’accent est fortement mis sur Sein dans Schuldigsein : « L’essentiel ici est que le “en dette” surgit comme prédicat du “je suis” » ([281] trad. E. Martineau, p. 203 ; cf. trad. Vezin, p. 338). Par cette insistance sur l’ontologie   de la dette, Heidegger se dissocie de ce que le sens commun attache précisément à l’idée de dette, à savoir qu’elle soit envers quelqu’un – que l’on soit responsable en tant que débiteur – enfin, que l’être l’un avec l’autre soit public. C’est bien cela que Heidegger entend réduire à la portion congrue. L’ontologie veille sur le seuil de l’éthique. Heidegger martèle son exigence : d’abord s’enquérir fondamentalement de « l’être en dette du Dasein » ([283] ; trad. Martineau, p. 204 ; cf. trad. Vezin, p. 340) ; donc d’abord sur un mode d’être. Ainsi sont mis hors jeu les phénomènes vulgaires de dette, d’endettement, qui sont relatifs à « l’“être-avec” préoccupé avec autrui » (ibid.). L’être en dette ne résulte donc pas de l’endettement (Verschuldung) – mais l’inverse. Si quelque défaillance est ici dévoilée, ce n’est pas le mal – la guerre, dirait Lévinas –, mais un trait ontologique préalable à toute éthique : « L’être-fondement d’une nullité » (Grundsein einer Nichtigkeit) ([283] trad. Martineau, p. 204 ; cf. trad. Vezin, p. 341) 61. On ne peut plus clairement éconduire le primat de l’éthique : « Si l’être-en-dette originaire ne peut être déterminé par la moralité, c’est que celle-ci le présuppose déjà pour elle-même » ([286] trad. Martineau, p. 206 ; cf. trad. Vezin, p. 344). Malheureusement, Heidegger ne montre pas comment on pourrait parcourir le chemin inverse : de l’ontologie vers l’éthique. C’est pourtant ce qu’il semble promettre dans le paragraphe 59 où il entre en débat avec l’« explicitation vulgaire de la conscience ». En ce sens, l’attestation engendre une certaine critériologie, au moins à titre de critique du sens commun. En résulte une critique des notions de « bonne » et de « mauvaise » conscience dans des termes voisins de ceux que nous avons employés. C’est d’abord la notion de « mauvaise » conscience qui est frappée de « vulgarité » : elle vient en effet trop tard, après coup (elle est réactive, dirait Nietzsche) ; il lui manque donc le caractère pro-spectif inhérent au souci. Rien donc à tirer du re-mords, du repentir. Quant à la « bonne » conscience, elle se voit écartée comme pharisienne : car qui peut dire « je suis bon » ? Heidegger ne veut même pas entendre parler de la conscience comme admonition, avertissement, au nom de ce curieux argument que la conscience redeviendrait ainsi prisonnière du « on » [292]. En tout ceci, la critique par Heidegger du sens commun est manifestement à rapprocher de la Généalogie de la morale de Nietzsche. Du coup sont rejetés en bloc le point de vue déontologique de Kant, la théorie schélérienne des valeurs et, dans le même mouvement, la fonction critique de la conscience. Tout cela reste dans la dimension de la préoccupation, à quoi manque le phénomène central, l’appel aux possibilités les plus propres. En cela, l’attestation est bien une sorte de compréhension, mais irréductible à un savoir quelque chose. Le sens de l’attestation est maintenant scellé : « Convocation pro-vocante à l’être-en-dette » ([295] trad. Martineau, p. 211 ; cf. trad. Vezin, p. 353-354).


Ver online : Paul Ricoeur


[1Não é que a referência a outro falte inteiramente: mas o outro só está implicado em consideração ao “se” e no plano inautêntico da preocupação: “É o si-mesmo [das Man-Selbst] do ser-com preocupado com o outro que é atingido pelo apelo” ([272] trad. E. Martineau, p. 198; cf. trad. Vezin, p. 329). A dominante permanece o arrancamento do si ao “se”: “A consciência convoca o si-mesmo do Dasein fora da perda no se”. Voltaremos, do ângulo do terceiro desafio, a essa ausência, em Être et temps, de um desenvolvimento dedicado às formas autênticas do ser-com sobre as quais se poderia enxertar uma aproximação diferente da alteridade da consciência.

[2“E o que é que poderia ser mais estranho ao se, perdido como ele está na diversidade do “mundo”, de sua preocupação como o Si-mesmo isolado sobre si na estrangeireza, lançado no nada?” ([277] trad. E. Martineau, p. 200; cf. trad. Vezin, p. 331). Razão por que, apelando-o, não é também alguém, uma vez que o apelo vem da estran(h/geir)eza até da condição lançada e decaída: “Apelo vindo da (estran(h/geir)eza” ([280] trad. Martineau, p. 202; cf. trad. Vezin, p. 337), isto é, do “isolamento lançado” (ibid.).

[3Portion congrue — (Na linguagem eclesiástica) pensão anual que o beneficiado paga ao sacerdote que serve o seu benefício; e, por extensão, rendimento ou salário que mal chega para viver, ordenado mesquinho. (N.E.)

[4E ainda: “O Dasein é como tal em dívida, se tanto é como permanece a determinação existencial formal da dívida como ser-fundamento de uma nulidade” ([285] trad. Martineau, p. 205; cf. trad. Vezin, p. 343).