Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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René Guénon: humano > recurso humano > autômato

segunda-feira 28 de setembro de 2020

Se passarmos agora ao outro extremo, representado pela indústria, vemos que o operário também é anônimo, porque aquilo que produz não exprime nada de [65] si próprio e não é verdadeiramente a sua obra, pois o papel que tem nessa produção é puramente «mecânico». Em suma, o operário como tal não tem «nome», porque não é, no seu trabalho, mais que uma simples «unidade» numérica sem qualidades próprias, que pode ser substituída por qualquer outra «unidade» equivalente, isto é, por outro operário qualquer, sem que haja nada de mudado no produto desse trabalho [1]; e assim, como dizíamos atrás, a sua actividade já não tem nada de propriamente humano, mas longe de traduzir ou de reflectir qualquer coisa de «supra-humano», esta, pelo contrário, reduzida ao «infra-humano», e tende mesmo para o mais baixo grau deste, isto é, para uma modalidade tão completamente quantitativa que é possível de ser realizada no mundo manifestado. Esta actividade «mecânica» do operário não representa, aliás, senão um caso particular (o mais típico que podemos constatar de facto no estado actual, porque a indústria é o domínio em que as concepções modernas conseguiram exprimir-se completamente) daquilo a que o singular «ideal  » dos nossos contemporâneos queria chegar a fazer de todos os indivíduos humanos, e em todas as circunstâncias da sua existência; é esta uma consequência imediata da tendência dita «igualitária», ou, noutros termos, da tendência para a uniformidade, que exige que os indivíduos sejam tratados como simples «unidades» numéricas, realizando deste modo a «igualdade» por baixo, já que é esse o único sentido em que ela pode ser realizada «no limite», isto é, até onde é possível, não totalmente (porque ela é contrária, como já vimos, às próprias condições da existência manifestada), mas pelo menos aproximar-se dela cada vez mais, até se atingir o «ponto de chegada», que marcará o fim do mundo actual.

Se nos perguntarmos o que será o indivíduo em tais condições, vemos que, em razão da predominância sempre mais acentuada nele da quantidade sobre a qualidade, fica reduzido ao seu único aspecto substancial, àquilo a que a doutrina hindu chama rupa (de facto, ele nunca pode perder a forma, aquilo que define a individualidade como tal, sem perder por isso a existência), o que significa que ele não é mais do que aquilo que a linguagem corrente chamaria um «corpo sem alma», no sentido mais literal desta expressão. Com efeito, num tal indivíduo, [66] o aspecto qualitativo ou essencial desapareceu quase totalmente (dizemos quase, porque na realidade nunca se pode atingir o limite); e, como esse aspecto é precisamente aquilo que se designa como nâma, esse indivíduo deixa de ter verdadeiramente um «nome» que lhe seja próprio, porque está como que esvaziado das qualidades que esse nome deve exprimir; é, pois, «anônimo», mas no sentido inferior desta palavra. É este o anonimato da «massa», de que o indivíduo faz parte e na qual se perde, «massa» que não é mais do que a colecção de indivíduos semelhantes, todos considerados como outras tantas «unidades» aritméticas puras e simples; e podem contar-se tais «unidades» avaliando assim numericamente a colectividade que elas compõem e que, por definição, é ela própria uma quantidade; mas não se pode dar a cada uma delas uma denominação que implique a distinção das outras por qualquer diferença qualitativa. [GUÉNON, René. O Reino da Quantidade e o Sinal dos Tempos. Tr. Vítor de Oliveira. Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 64-67]


Ver online : O Reino da Quantidade e o Sinal dos Tempos


[1Pode só haver uma diferença quantitativa, porque é possível que um operário trabalhe mais ou menos rapidamente do que outro (e é esta rapidez que, no fundo, constitui a sua «habilidade», a única que lhe pedem); mas, do ponto de vista qualitativo, o produto do trabalho será sempre o mesmo, já que é determinado, não pela concepção mental do operário, nem pela sua habilidade manual para lhe dar a forma exterior, mas unicamente pela acção da máquina, estando o papel principal daquele limitado a assegurar o bom funcionamento desta.