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Pizzolante (2008:46-49) – modos próprio e impróprio

sexta-feira 9 de fevereiro de 2024, por Cardoso de Castro

Como abertura ao ser, o homem abre-se para relacionar-se com os outros, e abre-se da mesma forma para relacionar-se consigo, podendo igualmente modificar-se a partir dessa relação própria. O homem pode relacionar-se consigo mesmo de duas formas distintas: própria ou impropriamente. [46] De modo próprio ou autêntico, volta-se para o sentido de sua existência e de sua não existência, reconhece a possibilidade de não existir da mesma forma que reconhece possibilidades de existência. Assumir a possibilidade da impossibilidade tem a profunda significância de tomar consciência do sentido de ser, de ser um ente que existe, cuja existência aparece como único bem. Seu solo é a liberdade definida a partir de seus limites, ou seja, de já se encontrar em uma situação (involuntária) e de ser finito (involuntário). Limites para um ente simplesmente dado são leis inexoráveis, intransponíveis. A pedra, sempre que jogada para o alto, cairá segundo a lei da gravidade. A finitude da vida do homem é também inexorável. Mas o homem pode ser infinito enquanto dura. É justamente a partir dessa sua condição, e não contra ela, que é livre para assumir a existência. Assim como Sísifo, que vence quando assume a certeza de que seu esforço é sem esperança. Sísifo é um herói trágico que ao se dar conta de sua condição humana de condenação ao esforço e à finitude inicialmente se revolta contra ela, mas que se torna livre e capaz de conquistar sua própria vida ao assumir seu modo de ser, que então não mais lhe aparece uma condenação, mas antes uma possibilidade de realização de vida. É nesse instante que Sísifo tem a alegria que os próprios deuses, que tudo podem, desconhecem, pois a alegria de Sísifo é a alegria do poder infinito dentro de um limite inexorável, do limite de sua condição finita. Ou seja, Sísifo conquista sua maior dignidade quando deixa de pretender negar ou reformar sua condição de condenado ao esforço de conquista de vida e à mortalidade. Quando assume ser esta sua condição definitiva, Sísifo deixa de lutar contra ela e descobre a si mesmo em seu possível; descortina-se assim para ele um universo de possibilidades de realização de si mesmo. A força da limitação ela mesma se abre para a possibilidade de cada indivíduo singular imprimir uma atitude e um caráter próprio; o homem autêntico é todo possibilidade.

O que difere o modo próprio e o impróprio de ser-no-mundo é a maneira com que o homem relaciona-se com o mundo e com os outros entes em geral. [47] De modo impróprio ou inautêntico o homem se perde no impessoal e afirma o mundo como a sua morada, e busca se garantir com relação a isso: busca fazer parte do mundo, como se pudesse se prolongar nele; não vê que ele e o mundo fazem parte de um mesmo acontecer. Só o factual lhe interessa, o possível lhe escapa. Distancia-se do fato de ser singular e se volta para os outros, como se estes fossem sua determinação. Busca então cumprir expectativas alheias, impessoais. A inautenticidade é um afastar-se de si e dar lugar às determinações públicas, não se dando conta da singularidade e finitude próprias de cada um em particular. Este modo de ser, no qual o homem se encontra submerso a maior parte das vezes, é também um seu modo original de ser, que lhe constitui tanto quando o modo autêntico. O inautêntico ganha o mundo e perde a si mesmo.

O ser-no-mundo autêntico fundamenta-se no possível, assim como o inautêntico se funda no real, no factual, no que está à mão. Ambos são modos de ser, portanto deve-se afastar qualquer tentativa de juízo de valor com relação a estas formas de ser e existir, como o entendimento da autenticidade como um ideal   de existência. Ambos são igualmente modos constitutivos e primordiais de ser-no-mundo, cujas bases ontológicas se fundam em diferentes formas de temporalização da existência.

O homem se ocupa das coisas, dos entes e no seu fazer deles se utiliza como um conjunto de instrumentos, que sempre lhe estiveram à mão. E a sua condição de ser-no-mundo que se estende, descortinando a profundidade do que está à sua volta. Nesta ocupação, o homem descobre o que está à volta, ou melhor, o que sempre lhe esteve circundando. Mas o mundo propriamente se revela quando se retrai. É no instante da impossibilidade apresentada, ou da inadequação da utilização de um instrumento, que o mundo se revela como tal. Quando se quebra a continuidade de um fazer pela impossibilidade apresentada por um ente, é que se dá o espanto, revelando a profundidade do mundo, colocando assim o homem diante de si, ao se dar conta de [48] seu contexto, tomando visível o para além de seu fazer, revelando o campo em que acontece, e isto se dá no momento em que o homem perde a familiaridade com os entes intramundanos, percebe que não se prolonga simplesmente no mundo. O homem então como que perde o mundo e ganha a si mesmo. A autenticidade surge justamente deste pôr-se diante de si, como um modo de ser em que o homem se afasta do não saber, se afasta da ilusão de simplesmente se prolongar em seu meio, para inquietar-se, sentir-se desconfortável; e sem negar este desconforto, encontrar aí o seu lugar, o autêntico é o saber não poder, mas cujo saber não impede o querer.

O autêntico deve coincidir com a medida daquele que não pode ser Deus, mas que busca sempre construir num sentido contrário à apatia animal. Esta medida é conquistada a cada escolha e ação deliberada, a roda gira e o homem se faz autêntico e inautêntico numa imbricação de suas possibilidades de vida.


Ver online : Romulo Pizzolante


PIZZOLANTE, Romulo. A Essência Humana Como Conquista: O Sentido da Autenticidade no Pensamento de Martin Heidegger. São Paulo: Annablume, 2008.