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Introdução à leitura de Ser e Tempo de Martin Heidegger

Pasqua: Ser e Tempo § 58 – dívida, culpa, Schuld

§ 58. A compreensão do interpelar e a dívida

terça-feira 7 de julho de 2020

PASQUA  , Hervé. Introdução à leitura de Ser e Tempo   de Martin Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 138-141

A este apelo [da consciência] o que responde o Dasein  ? O apelo, dissemos, procura retirar este último da sua dispersão no Nós [das Man  ] e reuni-lo numa totalidade articulada. Ele não diz nada, não dá qualquer acontecimento a conhecer: ele apenas desvela ao Dasein o seu poder-ser fundamental. É por isso que não temos de nos interrogar sobre o que o apelo «diz». Basta constatar que ele «acusa»; «o apelo acusa o Dasein de estar em falta» [1]. Que há «falta» (Schuld  ), todas as doutrinas morais o testemunham. Mas elas deixaram na obscuridade o seu sentido ontológico. Ora, para Heidegger, a falta não é uma noção moral  , mas um «conceito Existencial» constitutivo do ser do Dasein·, «…de onde tiraremos o critério do sentido Existencial originário da falta? Do facto do “em. falta ” surgir como predicado do “eu estou ”».

O que significa a «culpabilidade» no sentido ontológico, enquanto modo de ser do Dasein? Um exame fenomenológico impõe-se, se quisermos encontrar uma resposta. E impõe-se tanto mais quanto o pensamento quotidiano tende a encobrir o sentido da falta. Estar em falta significa para este estar em dívida [2]. É ser devedor, ter uma dívida para com alguém, ou pedir por empréstimo, receptar, roubar… Neste caso, a falta é sempre entendida em relação a outrem que eu privo dum bem. Ela não tem ainda o sentido ontológico que a liga ao ser próprio do Dasein e não ao ser de outrem. Ora, a nossa questão é o que é «ser» culpado? «É preciso», repete Heidegger, «que a questão verse antes de mais fundamentalmente sobre o ser culpado do Dasein, para que a ideia de culpa seja compreendida a partir do gênero de ser do Dasein.»

A origem da culpabilidade deve estar no Dasein. Com efeito, a culpa provoca uma carência. Mas esta carência não é a carência dum objeto de que outrem é privado por minha culpa: ela diz respeito ao próprio sujeito. É o Dasein que está em falta. Por conseguinte, a falta não tem uma causa exterior: ela tem a sua origem no culpado. A sua origem deve ser compreendida de tal forma que, quando eu cometo uma falta, possa declarar que a culpa não é minha, a culpa é da culpa! Esta toma uma dimensão exclusivamente ontológica. O culpado é o ser, o seu crime é ek-sistir. «Tudo isto resume-se ao seguinte: o estar-em falta não resulta antes de mais duma falta cometida, é pelo contrário esta que apenas se toma possível com base num estar em falta originário.»

[…]

Podemos ver, agora, que não são faltas pessoais concretas do Dasein que estão na origem da sua culpabilidade fundamental, é esta que é a sua origem. Ora, o que há na origem do Dasein? Há o estar lançado, a projeção, a decadência. Há o facto de estar lançado aí, no mundo, sem o ter querido. Estas características não são acidentais: elas fazem parte do ser do Dasein e acompanham-no enquanto ele ek-siste. O Dasein não é senhor do seu ser, ele escapa-lhe constantemente. Uma fatalidade inultrapassável pesa desde sempre sobre ele: a de ek-sistir, de sair de si e de cair no nada. Eis a falta: ek-sistir. Não se trata dum mal moral, mas duma infelicidade Existencial: «A estrutura do estar lançado, tal como a da projeção, comporta essencialmente uma nulidade. E é ela que está na origem da possibilidade da nulidade do Dasein inautêntico na sua decadência, tal como ele é já a cada instante facticamente. O cuidado está ele próprio na sua essência totalmente impregnado de nulidade. O cuidado — o ser do Dasein — significa, assim, enquanto projeção lançada: o ser fundamento (nulo) duma nulidade. O que indica que o DASEIN ESTÁ COMO TAL EM FALTA…». Do mesmo modo, a seguir: «Um ente cujo ser é cuidado não pode apenas ser culpado de falta fáctica, pelo contrário, ele está, no fundamento do seu ser, em falta…». [p. 138-141]


Ver online : SCHULD


[1Schuldigsein é traduzido por ser culpado ou estar em falta (N. R.)

[2Aqui, Heidegger joga com o duplo sentido da palavra Schuld.