Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Merleau-Ponty (S:224-225) – a morte em Montaigne

quinta-feira 22 de outubro de 2020

Descartes   irá considerar rapidamente a união entre a alma e o corpo, e preferirá pensá-los separados porque então ficam claros para o entendimento, A “mistura” da alma com o corpo é, ao contrário, o campo de Montaigne, ele só se interessa pela nossa condição de fato, e seu livro descreve sem cessar esse fato paradoxal que somos. Isso significa que ele pensa na morte, contraprova de nossa encarnação. Em viagem, nunca se deteve numa casa sem se perguntar se ali poderia ficar doente e morrer sem ser incomodado. Sinto a morte apertando-me continuamente a garganta ou os rins… Falou muito bem contra a meditação da morte. Esta deforma e não alcança seu objeto, já que concerne à morte longínqua, e a morte longínqua, estando em toda parte em nosso futuro, é mais dura do que a morte presente, que se aproxima sob nossos olhos em forma de acontecimento. Não se trata de corromper a vida pelo pensamento da morte. O que interessa a Montaigne não é o patético da morte, sua feiura, os últimos suspiros, o aparato fúnebre, motivos habituais dos discursos sobre a morte, imagens da morte para o uso dos vivos. Estes não consideram a morte em si, não a julgam: não é ai que detêm o pensamento; buscam, visam um ser novo. Aqueles que ouvem as consolações do padre, erguem os olhos e as mãos ao céu, rezam em voz alta, fogem à luta, desviam da morte seu pensamento, como divertimos as crianças quando lhes queremos dar uma lancetada. Montaigne quer que meçamos o não-ser com um olhar seco, e que, conhecendo a morte inteiramente nua, conheçamos a vida inteiramente nua. A morte é o ato com uma única personagem. Ela destaca na massa confusa do ser essa zona particular que somos nós, põe numa evidência sem-par essa fonte inesgotável de opiniões, de sonhos e de paixões que animava secretamente o espetáculo   do mundo, e assim nos ensina melhor do que nenhum outro episódio da vida o acaso fundamental que nos fez aparecer e nos fará desaparecer.

[Excerto de MERLEAU-PONTY  , Maurice. Signos. Tr. Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 224-225]


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