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Merleau-Ponty (1945/2006:40-44) – juízo

sábado 23 de setembro de 2023, por Cardoso de Castro

Ribeiro de Moura

O intelectualismo propunha-se a descobrir a estrutura da percepção por reflexão, em lugar de explicá-la pelo jogo combinado entre forças associativas e a atenção, mas seu olhar sobre a percepção ainda não é direto. Nós o veremos melhor examinando o papel que a noção de juízo desempenha em sua análise. O juízo é frequentemente introduzido como aquilo que falta à sensação para tornar possível uma percepção. A sensação não é mais suposta como elemento real da consciência. Mas, quando se quer desenhar a estrutura da percepção, isso é feito voltando ao pontilhado das sensações. A análise encontra-se dominada por essa noção empirista, se bem que ela só seja admitida como o limite da consciência e só sirva para manifestar uma potência de ligação da qual ela é o oposto. O intelectualismo vive da refutação do empirismo e nele o juízo tem frequentemente a função de anular a dispersão possível das sensações. A análise reflexiva se estabelece levando as teses realista e empirista até as suas consequências, e demonstrando [61] a antítese por redução ao absurdo. Mas, nessa redução ao absurdo, o contato com as operações efetivas da consciência não é necessariamente estabelecido. Continua sendo possível que a teoria da percepção, se idealmente parte de uma intuição cega, chegue por compensação a um conceito vazio, e que o juízo, contrapartida da sensação pura, recaia em uma função geral de ligação indiferente aos seus objetos, ou até mesmo volte a ser uma força psíquica revelável por seus efeitos. A célebre análise do pedaço de cera salta de qualidades como o odor, a cor e o sabor para a potência de uma infinidade de formas e de posições, que está para além do objeto percebido e só define a cera do físico. Para a percepção, não há mais cera quando todas as propriedades sensíveis desapareceram, e é a ciência que supõe ali alguma matéria que se conserva. A cera “percebida” ela mesma, com sua maneira original de existir, sua permanência que não é ainda a identidade exata da ciência, seu “horizonte interior” de variação possível segundo a forma e segundo a grandeza, sua cor mate que anuncia a moleza, sua moleza que anuncia um ruído surdo quando eu a golpear, enfim a estrutura perceptiva do objeto, tudo isso é perdido de vista porque são necessárias determinações de ordem predicativa para ligar qualidades inteiramente objetivas e fechadas sobre si. Os homens que vejo de uma janela estão escondidos por seus chapéus e por seus casacos, e sua imagem não pode fixar-se em minha retina. Portanto, eu não os vejo, eu julgo que eles estão ali. Definida a visão à maneira empirista como a posse de uma qualidade inscrita no corpo por um estímulo, a menor ilusão, já que dá ao objeto propriedades que ele não tem em minha retina, basta para estabelecer que a percepção é um juízo. Como tenho dois olhos, eu deveria ver o objeto duplicado, e se só percebo um é porque construo, com o auxílio das duas imagens, a ideia de um objeto único à distância. A percepção torna-se uma “interpretação” dos signos que a sensibilidade [62] fornece conforme os estímulos corporais, uma “hipótese” que o espírito forma para “explicar-se suas impressões”. Mas também o juízo, introduzido para explicar o excesso da percepção sobre as impressões retinianas, em lugar de ser o próprio ato de perceber apreendido do interior por uma reflexão autêntica, volta a ser um simples “fator” da percepção, encarregado de fornecer aquilo que o corpo não fornece — em lugar de ser uma atividade transcendental  , ele volta a ser uma simples atividade lógica de conclusão. Através disso somos levados para fora da reflexão, e construímos a percepção em lugar de revelar seu funcionamento próprio; mais uma vez, deixamos escapar a operação primordial que impregna o sensível de um sentido e que toda mediação lógica assim como toda causalidade psicológica pressupõem. Resulta disso que a análise intelectualista termina por tornar incompreensíveis os fenômenos perceptivos que deveria iluminar. Enquanto o juízo perde sua função constituinte e torna-se um princípio explicativo, as palavras “ver”, “ouvir”, “sentir” perdem qualquer significação, já que a menor visão ultrapassa a impressão pura e assim volta a ficar sob a rubrica geral do “juízo”. Entre o sentir e o juízo, a experiência comum estabelece uma diferença bem clara. O juízo é para ela uma tomada de posição, ele visa conhecer algo de válido para mim mesmo em todos os momentos de minha vida e para os outros espíritos existentes ou possíveis; sentir, ao contrário, é remeter-se à aparência sem procurar possuí-la ou saber sua verdade. Essa distinção se apaga no intelectualismo, porque o juízo está em todas as partes em que não está a pura sensação, quer dizer, em todas as partes. O testemunho dos fenômenos, portanto, será recusado em todas as partes. Uma grande caixa de papelão me parece mais pesada do que uma caixa pequena feita do mesmo papelão e, atendo-me aos fenômenos, eu diria que previamente a sinto pesada em minha mão. Mas o intelectualismo delimita o sentir pela [63] ação, no meu corpo, de um estímulo real. Como aqui não há nenhum estímulo, será preciso dizer então que a caixa não é sentida, mas é julgada mais pesada, e este exemplo que parecia feito para mostrar o aspecto sensível da ilusão serve, ao contrário, para mostrar que não há conhecimento sensível e que sentimos como julgamos. Um cubo desenhado no papel muda de aspecto segundo é visto de um lado e por cima ou do outro lado e por baixo. Mas, se eu sei que ele pode ser visto de duas maneiras, ocorre que a figura se recusa a mudar de estrutura e que meu saber tem de esperar sua realização intuitiva. Aqui, novamente, se deveria concluir que julgar não é perceber. Mas a alternativa entre a sensação e o juízo obriga a dizer que a mudança da figura, não dependendo dos “elementos sensíveis” que, como os estímulos, permanecem constantes, só pode depender de uma mudança na interpretação e que, enfim, “a concepção do espírito modifica a própria percepção”, “a aparência adquire forma e sentido no comando”. Ora, se se vê aquilo que se julga, como distinguir a percepção verdadeira da percepção falsa? Como se poderá dizer, depois disso, que o alucinado ou o louco “acreditam ver aquilo que não veem de forma alguma”? Onde estará a diferença entre “ver” e “crer que se vê”? Se se responde que o homem não só julga segundo signos suficientes e sobre uma matéria plena, é porque há então uma diferença entre o juízo motivado da percepção verdadeira e o juízo vazio da percepção falsa, e, como a diferença não está na forma do juízo mas no texto sensível que ele põe em forma, perceber no sentido pleno   da palavra, que se opõe a imaginar, não é julgar, é apreender um sentido imanente ao sensível antes de qualquer juízo. O fenômeno da percepção verdadeira oferece portanto uma significação inerente aos signos, e do qual o juízo é apenas a expressão facultativa. O intelectualismo não pode levar a compreender nem este fenômeno, nem tampouco a imitação   que dele dá a ilusão.

Original

L’intellectualisme se proposait bien de découvrir par réflexion la structure de la perception, au lieu de l’expliquer par le jeu combiné des forces associatives et de l’attention, mais son regard sur la perception n’est pas encore direct. On le verra mieux en examinant le rôle que joue dans son analyse la notion de jugement. Le jugement est souvent introduit comme ce qui manque à la sensation pour rendre possible une perception. La sensation n’est plus supposée comme élément réel de la conscience. Mais lorsqu’on veut dessiner la structure de la perception, on le fait en repassant sur le pointillé des sensations. L’analyse se trouve dominée par cette notion empiriste, bien qu’elle ne soit reçue que comme la limite de la conscience et ne serve qu’à manifester une puissance de liaison dont elle est l’opposé. L’intellectualisme vit de la réfutation de l’empirisme et le jugement l’a souvent pour fonction d’annuler la dispersion possible des sensations. L’analyse réflexive s’établit en poussant jusqu’à leurs conséquences les thèses réaliste et empiriste et en démontrant par l’absurde l’antithèse. Mais dans cette réduction à l’absurde, le contact n’est pas nécessairement pris avec les opérations effectives de la conscience. Il reste possible que la théorie de la perception, si elle part idéalement d’une intuition aveugle, aboutisse par compensation à un concept vide, et que le jugement, contre-partie de la sensation pure, retombe à une fonction générale de liaison indifférente à ses objets ou même redevienne une force psychique décelable par ses effets. La célèbre analyse du morceau de cire saute de qualités comme l’odeur, la couleur, et la saveur, à la puissance d’une infinité de formes et de positions, qui est, elle, au-delà de l’objet perçu et ne définit que la cire du physicien. Pour la perception, il n’y a plus de cire quand toutes les propriétés sensibles ont disparu, et c’est la science qui suppose là quelque matière qui se conserve. La cire « perçue » elle-même, avec sa manière originale d’exister, sa permanence qui n’est pas encore l’identité exacte de la science, son « horizon   intérieur » de variation possible selon la forme et selon la grandeur, sa couleur mate qui annonce   la mollesse, sa mollesse qui annonce un bruit sourd quand je la frapperai, enfin la structure perceptive de l’objet, on les perd de vue parce qu’il faut des déterminations de l’ordre prédicatif pour lier des qualités tout objectives et fermées sur soi. Les hommes que je vois d’une fenêtre sont cachés par leur chapeau et par leur manteau et leur image ne peut se peindre sur ma rétine. Je ne les vois donc pas, je juge qu’ils sont là. La vision une fois définie à la manière empiriste comme la possession d’une qualité inscrite par le stimulus sur le corps, la moindre illusion  , puisqu’elle donne à l’objet des propriétés qu’il n’a pas sur ma rétine, suffit à établir que la perception est un jugement. Comme j’ai deux yeux, je devrais voir l’objet double, et si je n’en perçois qu’un, c’est que je construis à l’aide des deux images l’idée d’un objet unique à distance. La perception devient une « interprétation » des signes que la sensibilité fournit conformément aux stimuli corporels, une « hypothèse » que l’esprit fait pour « s’expliquer ses impressions ». Mais aussi le jugement, introduit pour expliquer l’excès de la perception sur les impressions rétiniennes, au lieu d’être l’acte même de percevoir saisi de l’intérieur par une réflexion authentique, redevient un simple « facteur » de la perception, chargé de fournir ce que ne fournit pas le corps, — au lieu d’être une activité transcendantale, il redevient une simple activité logique de conclusion. Par là nous sommes entraînés hors de la réflexion et nous construisons la perception au lieu d’en révéler le fonctionnement propre, nous manquons encore une fois l’opération primordiale qui imprègne d’un sens le sensible et que présuppose toute médiation logique comme toute causalité psychologique. Il en résulte que l’analyse intellectualiste finit par rendre incompréhensibles les phénomènes perceptifs qu’elle est faite pour éclairer. Pendant que le jugement perd sa fonction constituante et devient un principe explicatif, les mots de « voir », « entendre », « sentir » perdent toute signification, puisque la moindre vision dépasse l’impression pure et rentre ainsi sous la rubrique générale du « jugement ». Entre le sentir et le jugement, l’expérience commune fait une différence bien claire. Le jugement est pour elle une prise de position, il vise à connaître quelque chose de valable pour moi-même à tous les moments de ma vie et pour les autres esprits existants ou possibles ; sentir, au contraire, c’est se remettre à l’apparence sans chercher à la posséder et à en savoir la vérité. Cette distinction s’efface dans l’intellectualisme, parce que le jugement est partout où n’est pas la pure sensation, c’est-à-dire partout. Le témoignage des phénomènes sera donc partout récusé. Une grande boîte de carton me paraît plus lourde qu’une petite boîte faite du même carton et, à m’en tenir aux phénomènes, je dirais que je la sens d’avance pesante dans ma main. Mais l’intellectualisme délimite le sentir par l’action sur mon corps d’un stimulus réel. Comme ici il n’y en a pas, il faudra donc dire que la boîte n’est pas sentie mais jugée plus lourde, et cet exemple qui paraissait fait pour montrer l’aspect sensible de l’illusion sert au contraire à montrer qu’il n’y a pas de connaissance sensible et que l’on sent comme l’on juge. Un cube dessiné sur le papier change d’allure selon qu’il est vu d’un côté et par-dessus ou de l’autre côté et par-dessous. Même si je sais qu’il peut être vu de deux façons, il arrive que la figure se refuse à changer de structure et que mon savoir ait à attendre sa réalisation intuitive. Ici encore on devrait conclure que juger n’est pas percevoir. Mais l’alternative de la sensation et du jugement oblige à dire que le changement de la figure, ne dépendant pas des « éléments sensibles », qui, comme les stimuli, restent constants, ne peut dépendre que d’un changement dans l’interprétation et qu’enfin « la conception de l’esprit modifie la perception même », « l’apparence prend forme et sens au commandement ». Or si l’on voit ce que l’on juge, comment distinguer la perception vraie de la perception fausse ? Comment pourra-t-on dire après cela que l’halluciné ou le fou « croient voir ce qu’ils ne voient point » ? Où sera la différence entre « voir » et « croire qu’on voit » ? Si l’on répond que l’homme sain ne juge que d’après des signes suffisants et sur une matière pleine, c’est donc qu’il l’a une différence entre le jugement motivé de la perception vraie et le jugement vide de la perception fausse, et comme la différence n’est pas dans la forme du jugement mais dans le texte sensible qu’il met en forme, percevoir dans le plein sens du mot, qui l’oppose à imaginer, ce n’est pas juger, c’est saisir un sens immanent au sensible avant tout jugement. Le phénomène de la perception vraie offre donc une signification inhérente aux signes et dont le jugement n’est que l’expression facultative. L’intellectualisme ne peut faire comprendre ni ce phénomène, ni d’ailleurs l’imitation qu’en donne l’illusion.


Ver online : Maurice Merleau-Ponty


MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Tr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 60-63