Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Luijpen: Filosofia como tarefa social

quarta-feira 31 de maio de 2017

A ideia precedente necessita de um importante complemento e, ao mesmo tempo, de uma diferenciação. Ainda que o filósofo tenda a um pensamento pessoal, seria ilusório crer que o poderia levar a termo sem a tradição. Como filósofo sou uma pessoa, um eu, e meu filosofar só é legítimo sendo o meu filosofar. Toda pessoa, porém, acha-se inserta em uma história que não é pessoal, que o indivíduo mesmo não fez. Trata-se de uma inserção inevitável. Não posso, pois, começar a pensar do ponto zero, porque o que penso já foi pensado, e em tal pensamento fui acolhido. Sou levado pelo pensamento da tradição, pelo menos porque falo sua linguagem e me acho imbuído dos pensamentos encarnados nessa linguagem. Pensar sem linguagem é impossível; não menos impossível, pensar sem tradição. [1]

[21] Isso não quer dizer que o filósofo precise abandonar a pretensão de pensar pessoalmente. De maneira alguma. Ainda que levado pela história do pensamento, o filósofo é chamado a despertá-la para uma nova vida. Acontece isso ao se aprofundar nas obras dos que o precederam. Os filósofos do passado têm coisas importantes a dizer-nos. Exprimiram, à sua maneira, sua experiência da realidade, deixando-a gravada em suas obras. Por estas falam-nos, têm contato conosco. Qual, porém, sua intenção ao falar-nos ? Será, talvez, a de forçar-nos a tornar nosso seu aparato de conceitos e aceitar seu sistema ? Equivaleria tal intenção a querer levar-nos à inautenticidade, ao filosofar ilegítimo, o que apagaria em nós nossa vocação de filósofos. O propósito e o valor das obras dos filósofos anteriores são bem diferentes. Nelas deixaram registada sua experiência da realidade com o intuito de nos tornar sensíveis ao significado da mesma realidade, dando-nos acesso à riqueza do ser que eles viram.

Ao filosofar, trata-se sempre de uma experiência e expressão pessoais da riqueza do ser. Mas é só porque outros nos precederam que podemos ver pessoalmente coisas perante as quais seríamos cegos. [2] Se não tivesse existido Platão  , nossa compreensão da totalidade do real e seu mais profundo significado seria muito mais banal e material: talvez não experimentássemos a riqueza na totalidade do ser, não a víssemos nem a compreendêssemos como a concebemos agora ao pensar filosoficamente a realidade. Se não fosse Agostinho  , talvez não percebêssemos o sentido da inquietação em nosso ser-no-mundo. A Darwin, Marx   e Freud   devemos, apesar de tudo, nossa vitória sobre o espiritualismo exagerado. Os filósofos do passado falam-nos a fim de nos permitir uma experiência pessoal da realidade, tornando-nos sensíveis à riqueza na totalidade do que é. [3] Há "clássicos" entre os filósofos, a saber, aqueles que [22] ninguém toma ao pé da letra e com os quais tem a ver cada um que pensa de um modo realmente pessoal, porque sua "visão" continua frutuosa e inspiradora. [4] "Você é cartesiano ou não ?" — certa vez alguém perguntou. A interrogação em si não tem sentido. Quem poderia permitir-se não ser cartesiano ? Essa frase significaria que Descartes   não "viu" nada, de modo a não ser útil de forma alguma ao filosofar moderno. Seja como for, em nossos dias ninguém é cartesiano como Descartes o foi. Mas ele pertence ao número dos "clássicos", precisamente porque os que não são cartesianos podem permitir-se isso graças a seu "melhor ver" tornado possível pelo próprio Descartes. [5] Platão, Tomás de Aquino  , Descartes, Marx etc, todos os verdadeiramente grandes vivem ainda entre nós. [6] Continuam a "falar-nos" e a inspirar-nos, malgrado todas as suas expressões explícitas.

Admitido o que acabamos de dizer, não nos escandalizaremos mais com a existência de muitos e contraditórios sistemas. [7] Pouco importa o sistema; só tem valor a realidade. E em cada sistema há a expressão de alguma realidade. Toda filosofia verdadeiramente grande foi atingida por haver um determinado aspecto do real. Talvez tenha considerado sem razão um aspecto limitado da riqueza do ser como a realidade, proclamando certa experiência como a experiência. Eis porque tal ou tal sistema é antiquado, mas nem por isso podemos abandoná-lo. [8]

[23] O fato de estar até o autêntico filósofo imerso em uma história que ele não fez, não o impossibilita de pensar de maneira autônoma, independente e pessoal. A condição é que tome o passado criadoramente, despertando-o de novo para a vida (SZ  , p. 339). Isso, entretanto, ele mesmo o deve fazer. Não firma um contrato com nenhuma escola e não se obriga a nenhuma fórmula. [9] Não acumula conhecimentos, mas escuta a realidade, pouco importando a fonte dela. [10] Quando estuda as obras do passado, começa com uma atitude de confiança e amor por aqueles que lhe falam, certo de que nada mais desejam do que sua própria aceitação ou repulsa das opiniões propostas. Porque, em última instância, só reconhece como verdadeiro o que pode tornar convicção própria num pensamento autônomo. [11]

Exatamente porque a filosofia constituída não pode subsistir e ser continuada senão em afirmações e juízos expressamente formulados, corre-se o perigo de se ficar nos juízos. Contudo, assim como a ética não consiste em normas gerais, mas na guia da vida mesma, graças à experiência própria e às exigências morais pessoalmente aceitas, também a filosofia não se cifra em afirmações e teses, mas exige expressão pessoal da realidade, com base numa presença pessoal à mesma realidade. [12]

Idêntica afirmação vale para os princípios da filosofia. Estes não são os juízos mais gerais, mas sim a própria experiência em sua mais fundamental e decisiva dimensão. Nas filosofias constituídas, as experiências fundamentais são igualmente fixadas em juízos expressos. Precisam, entretanto, ser despertadas de novo para a vida pela filosofia, concebida [28] como palavra falante, se é que hão de ter um significado real.

Voltemos à realidade mesma (zurück zu den Sachen selbst  ), foi o lema de Husserl  , o fundador da fenomenologia. Esse imperativo se aplica a todo autêntico filosofar. Ao estudar as filosofias constituídas, tratará o filósofo de retornar à realidade, visada em toda e qualquer afirmação. Só na presença da realidade, na experiência, será possível chegar ao incontestável e conseguir aceitá-lo pessoalmente. Então a verdade será de fato minha verdade, superando-se o falatório e a ambiguidade. (p. 20-28)


Ver online : FILOSOFIA


[1R. C. Kwant, Sociale filosofic, Utrecht-Antwerpen, 1963, Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception. 89-95.

[2"O homem, despertando sempre numa situação criada historicamente, só encontra em cada geração novas possibilidades, porque já está baseado numa tradicional substância de vida. Deveria existir — o que apenas é pensável em casos-limite — a partir do nada de seu vital ser-ai do entendimento, se a situação o atirasse no sem-mundo do isolamento atomizado; viveria num doloroso, mas cego desespero, sem saber o que propriamente quer; apreenderia coisas dispersas sem transparência, agarrándose ao vazio de sustentação do nada". K. Jaspers, Philosophie, 1948, p. 263.

[3A. Dondeyne, L’historicité dans la philosophie contemporaine em: Revue philosophique de Louvain, 54 (1956), p. 6.

[4"São os clássicos. Reconhecem-se pelo tato de ninguém os tomar ao pé da letra, e porque os acontecimentos novos nunca estão absolutamente fora de sua competência, tirando deles novos ecos e mostrando neles novos relevos". M. Merleau-Ponty, Signes, Paris, 1960, Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception. 16-17.

[5M. Merleau-Ponty, op. cit., p. 17.

[6Merleau-Ponty, Sens et Non-sens, p. 189.

[7A. Dondeyne, Dieu et le matérialisme contemporain, em: Essai sur Dieu, l’homme et l’univers, publié sous la direction et avec une introduction de Jacques de Bivort de la Saudée, Paris, 1957, Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception. 22-32.

[8"Veem-se assim um grande número de cosmovisões, a que se atribuíram as designações de materialismo (tudo é matéria e processos mecânicos da natureza), espiritualismo (tudo é espírito), hilozoísmo (o todo é uma matéria animada) e outras, de diversos pontos de vista. Em todos os casos, respondeu-se à questão acerca do que é propriamente o ser, apontando-se a um Sendo que ocorre no mundo e que deveria ter o caráter de ser a origem de tudo. Mas o que é certo ? Durante séculos e milênios, a opinião das escolas em luta não conseguiu mostrar um desses pontos de vista como verdadeiro. Cada concepção viu alguma coisa certa, a saber, uma visão e um método de pesquisa que faz ver algo no mundo. Mas cada uma é falsa ao constituir-se como única, querendo explicar tudo o que é por sua ideia fundamental". K. Jaspers, Einführung in die Philosophie, Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception. 28-29.

[9"A descoberta anterior de certas ’verdades definitivas’ não impede que tenhamos ura trabalho próprio a desempenhar. Essas verdades precisam ainda ser nossas, ser descobertas por nós como verdades, ser vistas em sua evidência por nossos próprios olhos. A atividade filosófica é bem um empreendimento intersubjetivo, mas é igualmente — e antes de tudo — uma aventura a arriscar-se sozinho: toda filosofia tem um momento de solipsismo. Mesmo os que seguem uma escola não devem crer preconcebidamente na verdade desta ou daquela tese, mas quando muito suspeitar que assim seja: uma tradição não é um credo, e cada um precisa percorrer por si o caminho da intelecção, fazendo a descoberta ou redescoberta da verdade". G. van Riet, Geschiedenis van de Wijsbegeerte en Waarheid, em: Tijdschrift voor Philosophie XIX (1957), p. 177.

[10K. Jaspers, op. cit., p. 115.

[11K. Jaspers, op. cit., Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception. 143-145.

[12J. Plat, Geschiedenis van de filosofie en waarheid, em: Handelin-gen van het XXIIe Vlaams Filologencongres, Eeuven, 1957, Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception. 68-74.