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Jaspers: § 2. A Questão da Essência do Homem (a)

quarta-feira 23 de março de 2022

Psicopatologia Geral
Psicologia Compreensiva, Explicativa e Fenomenologia
Karl Jaspers  
Trad. Dr. Samuel Penna Reis
Atheneu. 1979

§ 2. A Questão da Essência do Homem

Os retrospectos à psicopatologia levaram à questão da essência do homem, questão a que têm respondido a biologia, a antropologia, a teologia, e a filosofia. Tema vastíssimo, limitar-nos-emos a comentá-lo com umas poucas observações, que tiro de outros escritos meus, nos quais se encontram a exposição e a fundamentação do que vai aqui brevemente esboçado. (Para esclarecer a ideia da essência do homem, são importantes, sobretudo, Platão  , Sto. Agostinho  , Pascal  , Kant  , Kierkegaard  , Nietzsche  .)

a) A atitude filosófica básica. Vamos expor, numa série de frases curtas, os pressupostos sob os quais (e só sob eles), se pode representar de forma significativa a essência do homem.

1. Dizemos, por exemplo: O homem existe, a qualquer momento, como um todo. Caminha, como indivíduo, pelo mundo, é uma coisa — este corpo — no espaço; isso constitui, porém, a modalidade conceituai mais externa. Se eu trato, digamos, o homem como sendo esse todo corpóreo, aniquilo o próprio homem, que se transforma, corpo que é, num pedaço de matéria, a qual preenche o espaço; alguma coisa que pode servir, talvez, como peça de uma máquina etc. Mas se eu vejo o homem como esse corpo particular, sou levado, sem mais tardar, mesmo concebendo biologicamente o todo corpóreo, por uma quantidade de tangibilidades que nunca são o todo. Nada no homem é diferente do que ocorre em qualquer ente vivo, mesmo uma planta, mesmo o mundo total. Assim que se concebam para fins de conhecimento, todos esses objetos se dilaceram. O todo mais não é do que ideia e muitas-ideias existem.

2. Teríamos o todo singular se pudéssemos preencher o sentido de unidade; sentido este que, entretanto, é múltiplo; por exemplo: o objeto singular é o objeto que tenho, a qualquer momento, quando penso, diante de mim (a unidade formal   de tudo quanto se possa pensar). — O indivíduo singular é uma unidade infinita: se tivermos de conhecê-lo, ele se partirá em muitas modalidades de individualidade; quando o conhecermos, perderá sua unidade em favor dessas unidades que é. — A existência singular é pensamento filosófico que, em ideação transcendente, usa a singularidade no esclarecimento da incondicionalidade da existência. Quando conhecemos, apreendemos unidades; nunca, entretanto, a unidade final, nem a do indivíduo, nem a da existência.

3. Quando conhecemos, possuímos todo o existir na cisão sujeito-objeto, apenas, isto é, como objeto de nossa consciência, tal qual se apresenta, cindido, a esta consciência em geral; e não tal qual é em si. É por isto que, na realidade empírica, só temos o existir na forma por que se nos apresenta, dentro das categorias da consciência, como fenômeno que ocorre nas muitas modalidades básicas da experiência, da explicabilidade, da compreensibilidade.

4. Porque conhecemos fenômenos e não o existir em si mesmo, esbarramos, quando conhecemos, em limites que fazemos sensíveis mediante conceitos marginais. Os conceitos marginais (por exemplo, "existir em si") não são vazios, e sim podem preencher-se mediante uma realidade presente; não dizem respeito a um objeto, mas àquilo que me suporta e me abrange com toda a objetividade.

5. As modalidades daquilo que é abrangente não se conhecem, decerto, mas se esclarecem. O abrangente é o existir em si (mundo e transcendência), ou o abrangente que nós somos. Inverte-se nossa ideia basicamente quando queremos transformar o abrangente em objeto e, por sua vez, tratá-lo como alguma coisa possível de conhecer. Nosso pensamento pode tocar e representar mais do que lhe é possível transformar em objeto do conhecimento; representação esta que não nos aumenta o saber objetivo, mas nos ensina a ver em seus limites o sentido e a aplicabilidade desse saber. É do abrangente que emerge diante de nós, vem a nosso encontro, toda objetividade, mostrando o existir em perspectivas e aspectos de tipo necessário e geralmente válido; por conseguinte, cognoscível. Mas o abrangente, mostrando-se no fenômeno do conhecimento progressivo cada vez mais rico e mais variado, sempre reflui e permanece inobjetivo em si mesmo.

6. O abrangente que temos de esclarecer é de variados tipos (o existir em si e o existir que somos). Representar o abrangente que somos (existir, consciência em geral, mente — razão e existência mesma) é fundamental para a filosofia do existir humano.

7. A consciência do abrangente recalca para a profundidade o conhecimento do fenômeno. O cognoscível, movendo-se sempre no fenômeno, é de primeiro ou segundo plano. Para a consciência filosófica, todo cognoscível possui, por assim dizer, uma linguagem, uma espécie de código, cuja escuta impulsiona para diante nossa ânsia de saber. "É assim", "Isso aconteceu", "Há isso" são expressões que manifestam este espanto quando se ouve.

8. Como em todas as ciências, também na psicopatologia nos cabe fazer sensíveis os limites, ver os enigmas concretos, a fim de, por uma parte, percebermos o espaço livre multilateral da investigação científica em cada um de seus métodos possíveis; e a fim de, por outro lado, não ultrapassarmos os limites da ciência, quando avaliamos e utilizamos os respectivos resultados. Só então, exatamente pela ciência, é que podemos, quando esbarramos nos limites, sentir o abrangente de maneira única, insubstituível, além de evitar a esquematização por sua vez erroneamente racional desse abrangente.

A posição filosófica, e não um saber filosófico dogmático, é decisivo para a teoria e a prática quando lidamos com o homem.


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