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Jaspers: A Razão em Luta

domingo 9 de julho de 2023

Razão e anti-razão em mosso tempo
Karl jaspers  
Trad. Álvaro Vieira Pinto
Conferências na Universidade de Heidelberg 1950

Textos de Filosofia Contemporânea
Instituto Superior de Estudos Brasileiros
1958

TERCEIRA CONFERÊNCIA: A RAZÃO EM LUTA

TERCEIRA CONFERÊNCIA

A RAZÃO EM LUTA

A RAZÃO parece não ter adversário algum, enquanto almeja tornar claro tudo que existe, trazê-lo à sua linguagem, incluí-lo. Estende, por assim dizer, a mão para todos os lados, sem restrição.

Porém, não somente se choca com uma resistência, mas com um adversário que a quer aniquilar. Em face deste, a filosofia torna-se auto-afirmação da razão, é obrigada a suspender não o seu devotamento a compreender, mas a tudo admitir. Ela, que é a força da comunicação na luta amorosa pelo progresso crítico, torna-se polêmica, espiritualmente polêmica, lançando interrogações e fazendo afirmações, quando se defronta com o seu único adversário.

Esse adversário é o espírito antifilosófico (der Geist   der Unphilosophie), que nada sabe da verdade, nem quer saber. Sob o nome de verdade, faz valer no mundo tudo que é contrário à verdade, estranho à verdade, toda corrupção da verdade.

Onde predomina, sua violência impede o exame reflexivo. Permite o arbitrário e aniquila o autocontrole. Sua versatilidade extingue a seriedade em favor da paixão do momento. Obriga a existência concreta a passar da ausência de fé a uma fanática pseudo   fé e novamente a voltar ao nada.

Esse espírito, em sua manifestação, transforma-se como Proteu, que não se deixa agarrar. E, depois de refutado, parece ficar ainda mais vivo, como a hidra de Lerna, na qual para cada cabeça cortada nasciam duas novas.

Esse adversário, nós o defrontamos no mundo, porém, mais perigoso ainda, se aloja em cada um de nós. Se pensamos tê-lo vencido, já sucumbimos a ele.

De onde tira esse adversário a sua força?

Há em nós alguma coisa que deseja:

não a razão, mas o mistério;

não um pensamento penetrante, claro, mas o sussurro;

não a reflexão que vê e escuta, aberta a tudo, mas o caprichoso abandono a uma obscura multiplicidade;

não a compreensão humana, que modera as suas exigências, mas uma oniciência gnóstica no absurdo;

não a ciência, mas a feitiçaria com máscara científica;

não a eficácia racionalmente fundada, mas a magia;

não a fidelidade digna de confiança, mas a aventura;

não a liberdade, que é uma só coisa com a razão, a lei e a escolha da própria historicidade, mas um cego excesso de liberdade, ao mesmo tempo que uma obediência cega, sob uma opressão que não tolera questão alguma.

Qual a razão desse desejo de mistério, sussurro, absurdidade, feitiço, magia, aventura e, por fim, de cego excesso de liberdade ao mesmo tempo que de cega obediência?

Sempre que a razão não é mais sustentada e preenchida pelo ser autêntico de um homem, resvalando para o mero entendimento, nasce do mundo desse entendimento a insuportável insatisfação. A razão, não mais compreendida, aparece agora como vazia, como um nada, um mundo de abstrações, de formas pálidas, indiferentes, que se acumulam ao infinito.

O fundamento do nosso ser anseia por plenitude, presença e corporeidade. Mas o acesso a essas coisas é dúplice. Ou se tornam verdadeiras como plenitude genuína, sob a direção da razão e como construção na continuidade histórica, por obra da razão; ou se transformam em ilusão, na dispersão e desorientação da multiplicidade e da eventual variação, sem a razão e contra a razão.

Aqui está a encruzilhada entre a razão e a não-razão. Nela começa a marcha para o desastre, com a traição da simples verdade, a qual, na maioria das vezes, se revela à boa-fé do homem sincero, na vida diária e nas suas situações.

Depois da traição, só existe remédio na conversão radical, que tenha uma visão penetrante de si mesma, que aceite a sua culpa. A todo momento, estamos interiormente diante desta encruzilhada: a possibilidade de nos tornarmos nós mesmos mediante a razão.

Essa é a decisão sempre retomada: poder ser autenticamente si mesmo, isto é, poder ser livre, o que coincide com o caminho para a verdade, com esta simples retidão que se manifesta até nos menores gestos do homem que é êle mesmo e fala como tal. Aqui tem suas raízes o trabalho do pensamento que pensa ao mesmo tempo as coisas e a si mesmo, aqui começa a construção do conteúdo histórico da vida no âmbito da razão, no qual nada é esquecido.

Se, porém, nessa encruzilhada se renuncia à possível vontade de ser racionalmente si mesmo, ela reaparece, contudo, modificada mas em forma invertida. Então, o impulso deste nosso ser, que não se basta a si mesmo, faz-se no sentido de conquistar apaixonadamente, mesmo renegando a verdade, a direção de uma suposta verdade. Essa paixão, em seu desvario, quer iludir-se sobre a própria traição, prendendo-se a alguma coisa de imponente importância, algo que não pode conceber mas que no entanto existe objetivamente no mundo, e a que o homem pode abandonar a possibilidade de ser si mesmo, a fim de receber-se de volta, como admitida obstinação da existência concreta.

Esse impulso, enquanto fuga ante si mesmo até ao esquecimento de si, leva a nebulosidades que se oferecem como autêntica verdade, leva ao irracional, ao próprio absurdo, tomado por profundidade, ao poético na disponibilidade estética, às super-construções refinadas, nas quais a rigor nada mais se está dizendo, leva à dialética, pela qual podemos subtrair-nos a toda decisão, podemos tudo justificar e tudo refutar, à dialética, expressão da fluente mutabilidade do arbítrio - numa palavra, conduz ao sabbath infernal do discurso em metáforas, dogmas e absolutismos - ¦, à dialética, expressão de uma volta atrás sem fim, de uma reinterpretação da vida interpretante, para a qual, afinal, a interpretação não é mais um caminho para alcançar a origem, mas é um fim por si mesmo, privado de fundamento: a interpretação e interpretação da interpretação.

As formas da contra-razão, tendo por origem a traição tanto à verdade quanto ao ser si mesmo, são as formas da perversão de uma verdade originária; a anti-razão serve-se da linguagem da razão, toda antifilosofia serve-se da linguagem da filosofia.

Assim, o mito é a linguagem indispensável da verdade transcendente. A criação do autêntico mito é verdadeira iluminação. Esse mito alberga em si a razão e está sob o controle da razão. Por meio do mito, por meio da imagem e do símbolo, é que conquistamos, no limite, nossa mais profunda intuição.

Na perversão, porém, é completamente diferente. O pendor para o mito sem controle entrega-se às imagens enquanto tais. O sentido não é mais a penetração racional da essência, tornada presente em imagens, que representam um aspecto da realidade na prática da vida cotidiana do homem. Ao contrário, o impulso conduz a nos desprendermos da nossa realidade própria pela qual somos responsáveis, conduz a transferi-la a outra coisa, a uma coisa misteriosa, a um ente em si mesmo, cedendo à sedução do horror que nos causa a irracionalidade. Resta apenas, como suposta verdade da essência (Wesen  ), uma livre fantasia, juntamente com inconsequentes sentimentos de emoção. Este pensar mítico transviado, por falta do movimento de autocrítica existencial, é um não-pensar.

Desde o começo do filosofar, em oposição à filosofia da razão está a in-filosofia (Unphilosophie), mas não como nulidade inoperante, e sim como poderosa feitiçaria.

A feitiçaria encontra-se muitas vezes em grandes espíritos. Entender de feitiços é às vezes poderoso talento. Grandiosas manifestações do idealismo alemão são dessa natureza: a construção, por exemplo, feita por Fichte  , relativa ao ponto de transição da sua época e a da filosofia fichteana como façanha desse momento de transição. Essa mesma forma de pensamento reaparece ainda em Nietzsche  . A profética visão pessoal de Nietzsche tem a fatal oscilação entre uma profunda intuição e uma fraudulenta ilusão. A escatologia de Marx   apresenta esse mesmo traço. Já nesses grandes homens se encontra esta obsessão, esta inobjetividade objetiva, que, a seguir, nos medíocres só nos pode repugnar: essa tendência a fazer do próprio pensamento um absoluto, o único verdadeiro, a identificar a si mesmo, enquanto interesse   egocêntrico, com o objeto, e a repelir o que não favorece o próprio modo de pensar. Procuram admiradores e súditos, não amigos. Qualquer outro homem, como se isso fosse muito natural, é por eles considerado pelo que possa significar em relação à própria encenação.

Um homem individual, porém, nunca é só feiticeiro, e nenhum de nós está livre de todas as seduções da feitiçaria. Quando contrastamos a imagem do homem que filosofa com a do feiticeiro, verificamos que ninguém pode ser classificado em uma ou em outra:

Quem filosofa sabe o que faz, quando pensa e age; o feiticeiro não sabe o que faz nem como. Ambos acertam e não acertam na verdade, mas o homem que filosofa corrige incessantemente o conteúdo da verdade e se torna senhor das suas ideias; o feiticeiro investiga menos a verdade do que os seus gestos, seus modos de expressão, seus efeitos. O homem que filosofa põe à prova a verdade, procurando os contra-argumentos e os seus adversários. O feiticeiro não se quer pôr à prova na sua verdade; é como se fosse cego para a diferença entre verdadeiro e falso, entre realidade e aparência. Não pode realmente falar com outra pessoa, não pode discutir lealmente. Está prisioneiro de ideias que êle mesmo formou ou que lhe foram transmitidas. Vai através da vida como vontade de poder, sem perceber os seus próprios motivos.

Mas, esse inimigo se encontra em cada um de nós. É conosco mesmo que temos de nos haver, quando o combatemos. Nenhuma filosofia se torna verdadeira se não voltar as costas conscientemente à feitiçaria, a toda forma de feitiçaria, ainda a mais sublime, mesmo a que se apresenta sob a capa de ciência, por mais poeticamente sedutora que seja. Kant   realizou uma autopurificação desta espécie, na sua obra sobre os visionários.

Ora, a possibilidade de ação da feitiçaria filosófica repousa sobre o seu bom acolhimento por parte do enfeitiçado. Os feiticeiros deixam-se seduzir. São provocados por aqueles que anseiam por venerá-los. São confirmados e exaltados pela multidão daqueles que nomeiam um deles para ser ponto culminante na história do mundo, que se põem à sua disposição, servem-no e são por êle desprezados.

Até agora as massas têm sempre seguido a feitiçaria. Os feiticeiros as têm sempre iludido, mediante promessas de um conhecimento absoluto, mediante a pretensão de um significado sobrenatural do seu próprio pensamento e ação, que é feito tendo em vista o público. A sua encenação pessoal tem sido sempre bem sucedida, consistindo em oferecer uma visão total das coisas, em cujo curso o feiticeiro passa a ocupar o centro e o ponto culminante. Tem-se conseguido criar uma aura de efeito mágico. Múltiplo e variado é este reino dos sofistas, estetas, charlatães, daqueles impostores do fim da antiguidade, de que Luciano zombava, e dos magos científicos de hoje. Sócrates   e Platão   foram os primeiros que, fundamentalmente, empreenderam a luta contra eles com clara compreensão.

Pode bem parecer como se os feiticeiros, embora concorrentes entre si, sentissem contudo o seu parentesco e se tratassem com simpatia. Pois, em comum, todos eles têm apenas o seu único inimigo mortal, a razão, contra a qual imediatamente se ligam em uma aliança instintiva e não premeditada.

O processo da anti-razão, que se intensifica no intercâmbio entre feiticeiros e enfeitiçados, é incentivado pelos homens de meio termo, os indecisos, que admitem a anti-razão, quando na sua forma de objetividade cientifica, e tomam a sério as suas absurdidades. Muitos tentam fazê-lo, com a secreta restrição de que, conforme a marcha dos acontecimentos, podem jogar fora a coisa, como um fetiche malogrado (assim foi outrora em relação a Hitler), mas isso não é possível nem psicologicamente nem no mundo real. Quem se entrega a essa atitude, em vez de lançar logo a luz da razão sobre essa obscuridade, quando esta surge dentro dele, já está quase perdido.

No seu vazio sem a dignidade do ser autêntico do homem, a irracionalidade vai atrás de um sedutor, como aquele encantador de ratos da cidade de Hameln, que semiconscientemente encena a fraude. Sua in-filosofia parece a princípio inofensiva, se, num mundo livre, produz um ruído estranho. Mas tem significação política.

Com o abandono da liberdade da razão, a in-filosofia prepara o homem para a escravidão política. No declive mítico, faz naufragar o conhecimento da liberdade. Ensina o homem a retirar-se para o terreno da indiscutibilidade de uma fé irracional. Depois, quando não se vive mais da liberdade, em breve não se sabe mais o que ela é. E porque nos sentimos vazios, porque perdemos a nós mesmos e à verdade, queremos, em nosso temor, ser subjugados. Sem percebê-lo, ao renunciar à razão, renuncia-se também à liberdade. Estamos prontos para qualquer totalitarismo, e seguimos, em comum com o rebanho, o carneiro-guia, para a desgraça, o crime e a morte vergonhosa.

Há decênios que ouvimos dizer, em relação ao nazismo e ao comunismo: contra uma fé é necessário ter outra fé que se lhe oponha. O mundo livre está fraco, diz-se, porque nenhuma fé o sustenta.

Também na filosofia, muitas vezes, o pensamento racional parece desanimado. Podem fazer-se as seguintes reflexões:

1 . Atualmente parece como se a razão - este poder envolvente de toda comunicação, que, ainda, produz a compreensão mútua dos que são estranhos entre si - estivesse paradoxalmente compelida a um isolamento sem comunicação. É como se todas as potências do espírito, sem plano premeditado, e como por si mesmas, se aliassem, porque têm apenas uma coisa em comum, o ímpeto de fazer desaparecer a razão e colocar em seu lugar algum grandioso absurdo. Quem nega a possibilidade da autêntica comunicação em geral, encontra fundamentos na experiência e encontra aplausos ao afirmar, com heroísmo barato, a inevitável solidão de iodos os homens.

2. A existência da razão age como o ar, como se não existisse. Como seria de esperar que agisse? Mas é de fato o ar puro, de que se precisava como da coisa mais necessária à vida, e que contudo não se deseja, porque o que se quer é a atmosfera narcotizante e embriagadora. A filosofia, que apenas produz o ar em que é possível crescer, vir a si mesmo, experimentar-se a si mesmo, é também inapreensível como o ar. Nada ela dá, nenhuma ordem procede dela, não exige obediência alguma, nada oferece que se possa então tomar. Deseja que cada um pense por si e se torne si mesmo, ajuda a chegar a esse resultado, mas não o dá de presente. Comete a falta de piedade de supor a liberdade como possibilidade, quando o homem, secretamente, aspira a ser tomado pela mão - êle, que desejaria, sob o nome de liberdade, viver na ilusão de uma liberdade de obediência. A filosofia exige que se respire livremente, mas supõe que existam os que podem respirar. Será uma pretensão falsa, esta de que os homens devam ser livres e cada qual si mesmo? Não será isto a ilusão de uma época já vivida? Não estaremos caminhando para outra humanidade, nova e melhor, na qual será verdade que ninguém mais é si mesmo, mas cada um é todos e todos são cada um, e em que individualidade e personalidade fazem parte dos trastes do passado e das suas auto-ilusões?

Deste ponto de vista, o filosofar da razão é hoje invectivado ou amavelmente posto de lado, como fora de moda, como "Iluminismo" (Aukfklärertum), como "século XVIII", como "tradicional", como "inatual".

3. Uma consideração histórica parece mostrar que todos os grandes movimentos de fé tiveram em sua raiz algo absurdo e justamente devido a esse absurdo é que alcançaram a sua grande influência. A razão encontra-se sempre diante do fato de que os crentes, que não são mais capazes de escutar, não aceitam argumento algum, sustentam inabalavelmente o absurdo como pressuposto intangível - e realmente parecem crer.

Com estas e outras reflexões, a razão nos parece, em vez de estar somente desiludida, ter-se tornado desanimada.

Esse abatimento, ou já é mesmo expressão de uma fé na liberdade - esta fé não dogmática, própria da razão - em via de dissolver-se em simples pensamento do entendimento. E então, na consciência da própria vacuidade, o homem desejaria criar uma fé política. Mas em vão.

Ou este desânimo não é propriamente um desânimo: se a fé na liberdade, por falta de ar - na ausência de ressonância - respira demasiadamente pouco, então, apesar de, no fundo, ter confiança em si, não confia mais na sua realização atual no presente mundo.

Contra o desânimo só há um remédio: quem quer seriamente sair do mundo das nebulosidades, conhece, por sua liberdade própria, a experiência fundamental, a qual nunca é dado da natureza; possui uma certeza que nenhuma garantia objetiva sustenta; segue o seu caminho com a consciência de servir à verdade sem possuí-la.

Quer, num mundo de fogos-fátuos, salvar a razão, quer deixá-la falar com imperturbável paciência, embora na impotência de uma ressonância que aparentemente vai desaparecendo.

A fé da razão é de caráter diferente do de toda outra fé, que é determinada por um conteúdo confessional, por objetividades, por garantias.

Não pode fazer propaganda, não pode sugestionar, não pode dar na mão algo palpável - mas onde existe, é inflexível no seu fundamento mais profundo, e flexível em todos os seus primeiros planos.

Para fortalecer o seu pensamento na afirmação de si mesma, podem ser intentados vários movimentos de ideias, ideias favoráveis à razão, capazes de dar coragem, tanto quanto aquelas outras pareciam desencorajar.

Quem já sentiu alguma vez o gosto da razão, pergunta: que posso ainda desejar, se me recusar à razão?

Porque então não posso querer a unidade, nem o Um, nem a construção histórica, guiada pela origem e pelo fim. Deixo-me, em tudo, arrastar e, irrefletidamente, quero algo finito, hoje isto, amanhã aquilo; numa finitude forçada, sou talvez consequente com o entendimento, que se tornou, por assim dizer, uma razão às avessas.

Vemos hoje, como em qualquer época histórica, homens sinceros que pensam lucidamente. Muitos, desde a juventude, seguem originàriamente o caminho da razão, embora em segredo. Pois a razão não faz ruído.

Quando a razão ouve aquelas censuras - "Iluminismo", "fora de moda", "tradicional" - censuras que, no fundo, são para ela outros tantos elogios - então adquire consciência de que, de fato, em seus modos de expressão, é um fenômeno histórico, porém não na sua essência. Enquanto razão, está sempre na hora, porque somente no ambiente da razão é que se manifesta o que é eternamente verdadeiro, e os homens escutam, hoje como sempre, para saber se a razão lhes oferece uma linguagem para exprimir aquilo que experimentam.

Que se faça o pior prognóstico de decadência, e se calculem de acordo com ele todas as probabilidades da situação histórica, das qualidades médias de bilhões de homens, da marcha, que até agora é um fato, da humanidade para a servidão, para o esquecimento de si e do ser, - mesmo assim todo prognóstico, quanto à razão, é, primeiramente, incerto, mesmo em caso extremo. Experiências reais de inesperados desfechos favoráveis em uma situação aparentemente sem esperança, impressionam profundamente. Embora não constituam a prova de que se venham a repetir, são, contudo, por assim dizer, fios condutores para a atitude fundamental da razão, que é a seguinte:

Suportar a tensão; não contar com um futuro certo; mesmo no caso mais feliz, ter presente a desgraça que paira sempre como uma ameaça, e, no caso aparentemente desesperado, não esquecer a margem das possibilidades, e conservar a esperança; em qualquer caso - com toda a precaução razoável que seja possível e toda consciência na escolha do caminho de vida dentro dos limites das possibilidades - viver com atividade criadora, como os camponeses do Vesúvio que, sob a constante ameaça de lava, fazem amadurecer os seus esplêndidos frutos.

Isto me parece ser válido também para o curso da história universal. Em face de probabilidades desanimadoras, nenhum saber pode demonstrar a probabilidade do contrário. Mas abre-se uma possibilidade para a razão, e estar pronto para ela e, enquanto indivíduo, contribuir para prepará-la, com a pequena parte que lhe compete, esta é a luta da razão. A cada momento, pode também ter lugar no grande público a transmutação, que sempre ocorre, em primeiro lugar, no indivíduo. Podem então dissipar-se as nuvens brumosas que pareciam sufocar quase tudo; o ser si mesmo, despertando nos homens, os fará mutuamente se conhecerem, se escutarem e se unirem.

Mas todos os argumentos e possibilidades de pensamento não são decisivos para a razão. A razão vive da sua origem, e não de argumentos ou da rejeição de argumentos contrários, consciente, em toda situação, de nunca estar de fato na posse da verdade, mas de estar no caminho para ela.

A razão vive portanto na consciência de estar em frente às portas. Cresce a força que talvez permita, àqueles que resistirem, atravessá-las, - e isto só parece possível no luminoso reino da liberdade. Ou talvez o caminho conduza, primeiramente, às trevas da servidão (Unfreiheit) presa a símbolos, divinizadora de homens, privada de ideias. Em face desse extremo, pode tornar-se mais firme e mais consciente a decisão do indivíduo de tornar-se ele mesmo e, com isso, de estabelecer confiantemente aliança com o amigo, de resistir interiormente em qualquer condição e de não colaborar (por qualquer forma, ainda que inconsciente) na preparação da sua entrega total e uma existência humana sem autodeterminação, que vive de uma outra coisa, do mecanismo, tornado vazio, do poder, do "movimento", do povo, dos quais o indivíduo participa sem verdade e sem veracidade.

A razão, mesmo então, não pode afirmar, sem dúvida, - mas também não pode considerar como impossível - , que a experiência dos maiores horrores só ocorre para possibilitar uma conversão do homem. O homem seria exposto ao extremo, numa ignorância que toca os limites da perda de si mesmo, para que um dia a razão, com força irresistível, penetre de novo na realidade do homem.

O que é decisivo, porém, é que nada do que é razão se produz espontaneamente, mas somente por meio da razão que se realiza ativamente. Toda razão faz surgir, na medida da sua atividade, a esperança de que a sua auto-afirmação será vitoriosa contra as potências da anti-razão e da não-razão.

Todos sabemos que estamos à mercê de acontecimentos que não estão em nossas mãos. Mas, dentro desta fatalidade que nos é imposta, o homem, pela sua decisão, quer tentar, por sua parte, viver racionalmente, quer, mediante a razão, experimentar autonomia e sentido.

A resistência da razão só é possível, portanto, por meio da própria razão. Se ela se compreende a si mesma no seu significado, identifica-se então com uma confiança fundamental na origem das coisas, nos outros homens e nela mesma.

Falei sobre a razão em luta, sobre a sua auto-afirmação, na consciência da sua impotência, e sobre a sua animadora esperança, quando é ativa. Tudo isto se passa no homem individual.

A luta da razão pela sua realização, na medida em que esta pode ser preparada pelo conhecimento, tem seu lugar nas universidades. Aqui, tudo que é acessível à investigação científica se torna objeto de estudo. Aqui, a vida científica torna-se uma totalidade, mediante o intercâmbio recíproco e a discussão dos investigadores. Aqui, a filosofia e a teologia têm o seu lugar para, numa tensão fecunda, alcançar o máximo de autoconsciência racional no conjunto das ciências.

Esta é a ideia ocidental. O fato de que sempre a realidade só parcialmente a satisfaz e somente se aproxima passo a passo dessa ideia ou dela se afasta, não é objeção contra a sua verdade. E até agora a ideia, sempre em segredo, é ativa ou é possível. Acusar em conjunto as Universidades, declará-las irremediavelmente decadentes e perdidas, parece-me desprezível. É o caminho do pensamento arruinador.

Mas, pertence à ideia da Universidade a sua autocrítica. Em todo tempo, quem aí atua, como estudante ou como docente, deve saber o que se passa com ela, e saber o que ela era e o que poderia ser.

A luta pela razão tem lugar em todas as ciências, porém com mais clara consciência na filosofia. Sabemos que hoje a filosofia desempenha papel diminuto na Universidade. Um sinal disso é a seguinte ninharia: até mesmo a Faculdade que, de acordo com ela, se chama Faculdade de Filosofia (e da qual na época positivista a respectiva Faculdade de Ciências Matemáticas e Naturais fora absurdamente separada, com esquecimento da filosofia), mesmo este resto de Faculdade, que ainda se chama "de Filosofia", escolhe habitualmente para as comissões de nomeação representantes das especialidades afins à cátedra a ser provida - mas a filosofia não é considerada como afim de nenhuma dessas ciências. Se a filosofia ainda é ensinada, devemos isso à tradição que vem da Idade Média e que é mantida e tolerada. Não se dá a ela importância alguma. É matéria de diletantismo individual. Desde Marx, fala-se do fim da filosofia. Na moderna Universidade de Jerusalém, construída de acordo com as necessidades e a situação da nossa época, foi eliminado até mesmo o nome de Faculdade de Filosofia. Somente na "Faculty of Humanities", no grupo particular das "General Humanities", que se segue a outros grupos, a filosofia tem o seu modesto lugar.

De onde deriva esse estado de coisas? A causa parece-me, primeiramente, a dispersão do pensamento contemporâneo na massa das ciências especializadas, o colapso que precipita do amplo espaço da razão no mero trabalho do entendimento; em seguida, também, e decisivamente, a falta de uma filosofia atual que satisfaça a extensão da razão moderna já existente de fato; e a falta de filósofos à altura dessa tarefa.

A crítica da filosofia universitária é fácil. Desde o tempo de estudante, crescemos no meio desta crítica, e, no entanto, viemos a ser nós mesmos objeto desta crítica. Faziam-se as seguintes acusações: acadêmica, alheia ao mundo, somente científica, a preocupação com coisas indiferentes, a cômoda impassibilidade. Foi nela que Nietzsche irrompeu, ele que arrebatou naquele tempo os jovens ansiosos por uma autêntica filosofia. Ridicularizavam-se os traços edificantes da filosofia e seu sentimento patético conformista. Ouvia-se acentuar as vivências e a vida; mas, se isto interessava, contudo se reconheceu, rapidamente, que era apenas a metade da questão, como sendo a linha que deriva de Dilthey  , no qual a seriedade da filosofia, aparentemente sentida, desaparecia inteiramente, em favor de um saber compreensivo de toda espécie de filosofias do passado. Via-se a objetividade artificialmente operante, à imitação   dos matemáticos, a simplicidade intencional que tinha por fim acentuar a autenticidade e, por isso mesmo, de outro lado, dava a impressão de inautêntica e parcial.

A esta negligência da verdadeira filosofia, apesar da qual houve muita pesquisa proveitosa, correspondia um auditório relutante, que, por seu lado, nenhum caminho certo encontrava. Com o nome de filosofia, aspirava-se, quase sempre com demasiada rapidez, a algo diferente da filosofia. Preocupações pessoais, que não alcançaram o âmbito puro da razão, encontraram satisfações na psicanálise. A revolta contra o existente, o impulso para grandes acontecimentos e a participar da história universal, encontraram a grande ilusão no marxismo. A consciência do desamparo no puro âmbito da razão desejava secretamente um sucedâneo da religião e o encontrou em escolas sectárias, com a entrega a grandes homens fabricados, os quais, em níveis diversos, se prestaram a ser objeto de uma espécie de deificação humana. E todos estes, em vez de filosofarem racionalmente, queriam no fundo o conhecimento universal, cuja verdade lhes parecia garantida pela autoridade de seus feiticeiros.

Quando se vêem tais quadros, parece resultar de fato que seja conveniente riscar a filosofia da lista dos trabalhos intelectuais que se devam levar a sério, e, quando muito, deixá-la, num lugar à parte, arrastar-se ainda por algum tempo em seu jogo a bem dizer supérfluo. As perguntas: "quem filosofa?", "a quem êle se dirige?", não encontram resposta clara, a não ser que se diga que é o próprio homem, o ser racional pensante, que se dirige a outros homens pensantes, que deles espera respostas e perguntas, para em comum chegarem à verdade. Isto porém é dito de forma tão vaga que bem poderia igualmente ser expresso assim: a filosofia fala de um lugar vazio para um lugar vazio.

Desse grandioso indeterminado vem-nos um critério para o nosso filosofar concreto. Com os olhos fixos na ideia alta, tentamos sempre a sua realização concreta. E, se deve mesmo subsistir algum indício visível da possibilidade do filosofar, é imprescindível, para isso, uma instituição. Para o Ocidente, é a Universidade que mantém de pé a possibilidade do retorno e da ação da razão. Continua problemática, mas é a nossa "chance" real. A luta espiritual pela razão, tem que procurar a Universidade. Esta é o lugar legitimo da razão pura.

O ensino da filosofia tem lugar na base e no pressuposto do estudo científico especializado. Conserva a tradição filosófica; tem por tarefa o conhecimento das categorias e métodos do pensamento, o que não é ainda a filosofia própriamente dita, mas o ofício sem o qual não se torna clara; e em seguida, tem a tarefa de achar, na massa incalculável de tudo quanto foi pensado, o que há de simples e de essencial.

Uma filosofia que se isolasse seria desprovida de razão. A filosofia como especialidade é coisa duvidosa. Como ensino, sua função é despertar a atenção.

O estudo da filosofia dá-se portanto por meio do estudo das ciências e por meio da prática da vida pessoal, despertado pela grande filosofia da tradição.

O professor de filosofia tem a sua significação na luta em favor da razão por meio da razão. Para esta luta, em que só há as armas do espírito e que sempre fornece todas as armas ao adversário, vale talvez o seguinte:

Para que surja completa imparcialidade no mundo do pensamento, é preciso que os pensadores sejam interiormente independentes. Isto o homem só será quando estiver extinta a sua vontade de poderio e talvez mesmo só quando estiver, de verdade, em estado de fraqueza. A ausência de poder parece ser a condição para agir de forma realmente livre e para despertar a liberdade. É na humildade, sem obstinações, que cada homem individualmente tem uma "chance" de colaborar, na parte infinitamente pequena que lhe toca, para o nascimento de um espaço em que floresça a verdade.

O ensino das Universidades, nosso trabalho, está, juntamente com todo o mundo tradicional, à sombra de uma grande ameaça. Desde 1914 esta só tem crescido.

Desde então, a pergunta, rapidamente esquecida em alguns anos de paz, tem sido: diante desta ameaça, diante de um possível fim de tudo quanto nos é caro no mundo, que é ainda o essencial? Quais são os critérios, que, em face do fim de tudo, se mantêm de pé e têm valor?

Sem dúvida parece-nos indigno oscilar de um lado para outro, entre uma angústia aniquiladora - que torna sem sentido toda atividade - e uma tranquilidade com o esquecimento de si, na qual, com desviar o olhar, continuam a existir os velhos hábitos mentais, na qual a vida espiritual não é mais Eros  , porém a agitação sem finalidade passa a ser, sem reflexão, o próprio sentido; o trabalho é feito então como trabalho, sem que se tenha consciência, afinal, daquilo a serviço de que se realiza.

Nesta ameaça, é tarefa da razão suportar a tensão; fazer e essencial; submeter a sua vida cotidiana a critérios de valor dos quais tenha uma clara noção; prosseguir infatigavelmente naquilo que, pela sua mesma natureza, só é possível a longo prazo. Ninguém sabe se terá êxito nisso ou se a sua significação será o malogro. Na aparente situação sem saída, a razão nunca perderá todas as esperanças. Quem age espiritualmente deve dizer a si mesmo: enquanto eu permanecer com vida, no curso dos terríveis acontecimentos, quero estar preparado, na medida das minhas forças. Procuro construir uma vida, na minha ação interior, à vista do fim que, obscuro no todo, é contudo claro quanto ao passo que me compete dar hoje, fim que, dentro das condições reais da minha existência, me foi imposto pelo meu bom Gênio.

Devemos dar plenitude a todo momento atual. Este nos é dado de presente, mas não para que o percamos. Só no verdadeiro momento presente e em cada verdadeiro presente, reside um sentido do futuro. O fato de fazermos o que podemos, torna possível o futuro, mesmo sem plano nosso.

Se, porém, as realidades conhecíveis da existência humana concreta nos transviarem, levando-nos a duvidar da razão, podemos, antes, dizer, julgando-as pelo seu próprio critério: é um milagre que a filosofia siga através da história, e que, uma vez surgida, nunca tenha desaparecido completamente, que haja na razão uma força de auto-conservação que sempre se torna real como liberdade. A razão é como um segredo público, que em todo tempo pode ser conhecido por qualquer um, é o silencioso espaço em que cada um pode penetrar por meio do próprio pensamento.


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