Página inicial > Fenomenologia > Jaspers: A Exigência de Cientificidade

Razão e anti-razão em mosso tempo

Jaspers: A Exigência de Cientificidade

Primeira conferência

quarta-feira 23 de março de 2022

Karl Jaspers  . Razão e anti-razão em mosso tempo. Trad. Álvaro Vieira Pinto. Conferências na Universidade de Heidelberg 1950

Textos de Filosofia Contemporânea. Instituto Superior de Estudos Brasileiros, 1958

Não temos hoje no filosofar nenhum terreno comum. Uma exceção é a filosofia tomista, para os seus crentes. Espiritualmente a grande distância desta, há as escolas e os movimentos literários, que se agrupam em redor de um mestre, entre eles os de maior êxito: o marxismo e a psicanálise.

No pouco tempo destas lições, não quero tratar de um problema. Isso seria pressupor aquele terreno comum. Desejaria referir-me ao que constitui o essencial e universal do filosofar, àquilo em que talvez encontremos de novo um terreno comum, a essa evidência que é a razão.

Refiro-me, com isso, à coisa mais antiga, pensada desde milênios, muitas vezes sepultada ou levianamente desprezada, que deve ser sempre de novo reconquistada, e que nunca está concluída. Desde quando um dia, em 1901, como estudante, entrei, com toda a veneração, na Universidade de Heidelberg, nestas mesmas salas, sempre considerei a razão como o autêntico filosofar. Depois de uma experiência de meio século no mundo e na Universidade, não cheguei finalmente a saber o que ela é.

Um elemento indispensável da razão é a ciência. Sobre esta vou falar hoje. Amanhã falarei da razão mesma; depois de amanhã, sobre a razão em luta.

Utilizarei hoje, como fios condutores, o marxismo e a psicanálise, a fim de, mediante a crítica destes fenômenos que vos são conhecidos, apontar a ciência como condição de toda verdadeira filosofia.

Aos olhos de Marx  , a história se apresenta como um todo. Partindo de um estado primitivo de comunidade sem violência, em que há igualdade dos homens, mas na letargia da consciência e na falta de todo desenvolvimento técnico, — o caminho da história, através do pecado original da divisão do trabalho, da propriedade privada e da diferença de classes, levou a um enorme desenvolvimento do saber e do poder, mais admirável que nunca na época da burguesia criadora da técnica moderna. Esta marcha continuará até o estado final de restabelecimento da comunidade com igualdade de todos numa sociedade sem violência, e por conseguinte sem Estado, que trará, em liberdade, uma nova e inaudita expansão da capacidade e da criação humanas.

A história da evolução do trabalho é a chave para a compreensão de toda a história. As leis econômicas não são leis eternas, mas pertencem a cada estádio dos modos de trabalho e de sua forma social. São leis historicamente condicionadas, que surgem e passam.

O método para compreender este movimento é a dialética, que, como forma do nosso pensamento, atinge ao mesmo tempo o próprio movimento da coisa. Pela transformação no oposto, toda coisa aparentemente estável é arrancada da sua imobilidade, até alcançar-se a síntese perfeita na harmoniosa liberdade de todos. Até lá, cada fase da história produz as forças em virtude das quais essa fase será superada.

Este movimento produz o Estado como função do poder, no interesse   da classe dominante em cada momento, produz as ideologias como ideias justificadoras, mas também a ciência e a técnica, que, como aquisições definitivas, servirão um dia à sociedade sem classes.

Tudo isto Marx procurou alicerçar, verificar e confirmar por conhecimentos econômicos e sociológicos. Mas, em todos os detalhes, na extensa coleção de materiais, nas suas engenhosas teorias econômicas, anima  -o esta convicção fundamental: a história está madura, está na iminência da última transformação, que produzirá a verdade, a justiça e a liberdade da sociedade sem classes.

Todas as revoluções até agora foram apenas reviravoltas devidas à tomada do poder por parte de novos grupos de homens, enquanto a situação geral, o gênero de atividade, de divisão do trabalho, do trabalho violentamente obrigatório no sentido da exploração, permaneceram inalterados. A revolução comunista, ao contrario, trará uma transformação da situação geral mesma, simultaneamente com a correspondente modificação dos homens como tais. O homem tornar-se-á completamente diferente e somente assim estará capacitado para a fundação da nova sociedade. Atualmente, devido à marcha da história, o homem ainda está alienado de si próprio, em virtude da divisão do trabalho, do falso maquinismo (que somente será superado em uma técnica futura perfeita), do dinheiro, do caráter das coisas como mercadorias, etc. Como proletário, o homem atingiu por fim o estado de extrema perdição. E somente por meio dessa perda total é que se realizará dialeticamente a transformação no seu contrário, a completa recuperação do homem.

Esta primeira e última revolução, esta verdadeira revolução, que abrange o ser inteiro do homem, virá certamente, mas será produzida pelos homens mesmo. A fatalidade do curso da história coincide com a liberdade da ação humana. Toda filosofia da história até aqui era passivamente contemplativa, esta agora é ativa, atuando já por meio do pensamento mesmo.

Porque, para agir acertadamente em favor desta revolução, nela e depois dela, isto é, na linha da necessidade histórica, a ciência é indispensável. Esta ciência, Marx a traz. Sabe o que está fazendo com ela, quando escreve estas palavras ameaçadoras: "Os filósofos têm apenas interpretado o mundo diversamente; o que importa, porém, é transformá-lo."

A paixão da justiça, a revolta contra a injustiça, antiquíssimas e sempre inúteis, transformam-se, para Marx, graças a esta ciência, ao sair do mundo intemporal do Dever e ingressar na história real. Mantendo-se dentro dela, o homem pode dar realidade histórica àquilo que está maduro para o seu tempo, como um passo para a justiça. Quando, porém, passa ao lado da história real, agindo a partir de um espaço abstrato, é aniquilado. Por conseguinte, Marx rejeitou, em princípio, o critério absoluto, em favor do critério histórico. E este é adquirido pelo conhecimento da história na sua totalidade como um critério que varia. Para isto a ciência é necessária.

Para encontrar a salvação, os homens até agora conceberam utopias de instituições políticas justas, projetos de uma idílica e pacífica vida em comunidade. O passo, dado por Marx, "da utopia à Ciência" proíbe essas futilidades, a fim de, conhecendo o curso real da história, fazer o que é eficaz.

As massas revoltadas muitas vezes têm intentado ações para melhorar a sua condição, desde os levantes de escravos na antiguidade até as guerras de camponeses e outras. Foram ações cegas, dando em resultado o aniquilamento dos rebeldes e maior agravação na condição da sua classe. Agora, porém, na base de um conhecimento científico, se está preparando a política eficiente, a fim de produzir, pela força, a transformação total, agora de qualquer forma iminente.

A influência de Marx é tríplice: científica, filosófica e política.

a) Marx situa-se como importante teórico da economia política ao lado de outros. Sua influência no pensamento sociológico é grande. A primeira leitura de suas obras tem, ainda hoje, um efeito iluminador. Com seus pontos de vista, fez, como historiador, sagazes observações, e lançou uma luz penetrante nos acontecimentos contemporâneos. Marx está presente em tudo no curso da investigação científica, nos prós e nos contras, na confirmação e na refutação. O que Marx incorporou à ciência e o que refutou pela crítica, abrange um grande campo. Mas nem por tudo isto Marx é a figura predominante e única, tal como aparece hoje no plano mundial.

b) Marx é filósofo. Já o é nas suas investigações científicas, pois nunca se interessa pelo conhecimento particular. Possui a visão total: todas as suas investigações especiais visam a dar confirmação e a desdobrar esta visão total fixa da história. Mas esta visão total é elemento de uma crença filosófica, que se pode caracterizar aproximadamente da seguinte maneira:

A filosofia foi até o presente um membro das ideologias. Somente agora se torna verdadeira: primeiro, porque passou da especulação sobre o mundo à modificação do mundo, e segundo, porque agora não é outra coisa senão a única Ciência propriamente. Com esta dupla transformação, chegou o fim da filosofia até hoje existente.

A nova filosofia despoja-se também do seu nome; denomina a si mesma "materialismo". Não se trata do materialismo da química e da física, mas do materialismo enquanto reconhecimento de que a realidade humana fundamental é o trabalho, a produção, e enquanto tese que declara que todas as outras realidades humanas devem ser derivadas desta. Esse materialismo ignora toda transcendência. O mundo é toda a realidade. E o mundo é o mundo material do trabalho e nada mais. Por ele, o homem se cria a si mesmo. O homem é o ser último, basta-se a si mesmo, criador de si mesmo e do seu mundo. A religião, ao contrário, oculta a realidade, paralisa a atividade humana, é um instrumento da opressão, tendo por fim dissimular esta opressão e fazê-la suportável: a religião é ópio para o povo.

Ora, esta fé crê no Um, não no Deus único, mas na ciência unitária que inclui a unidade da ciência e da prática, da ciência e da filosofia. Esta ciência unitária é entendida mais ou menos assim:

A história é uma parte da história natural, da evolução da natureza até chegar ao homem. A ciência natural, portanto, já é em toda a sua extensão referida ao homem, é essencialmente ciência do homem. Mas a ciência do homem, por outro lado, abrange a ciência natural, como algo que é produzido pelo homem, e que se transforma. Haverá, portanto, apenas uma ciência, e esta ciência única é a da história.

A verdadeira ciência unitária foi definitivamente alcançada por Marx. A imparcialidade e a objetividade são falsas, porque, por elas, se perde a unidade e se afirma uma verdade absoluta, não-histórica. Há agora a exigência de participar desta fé, que é, daqui em diante, conhecimento científico e não, como antes, uma simples fé ideológica. Esta participação significa o repúdio da objetividade em favor da verdade dialética do devir histórico no ponto em que se acha presentemente. O mérito desta fé é que permite ao mesmo tempo ter a consciência tranquila numa investigação tendenciosa, porque este caráter tendencioso mesmo já é historicamente verdadeiro.

Por isso, este pensamento na sua comunicação é ao mesmo tempo propaganda. O estilo dos escritos não é o estilo da investigação, ou seja, a constante evocação das instâncias contrárias, a procura de fatos que falam contra a própria tese; mas esses escritos proclamam, de forma inequívoca, a verdade agora definitiva, e só apresentam o que a confirma. Constituem um pensamento de advogado de defesa e não um pensamento investigador, porém um pensamento de advogado que tem a certeza da verdade perfeita não em bases científicas, mas em virtude de fé.

A autêntica ciência moderna em qualquer das suas formas — na qual o conhecimento tem caráter necessário e universal, metódico e objetivo — por oposição à ciência unificada marxista, é particular, não conhece nenhum método universal, mas se dirige, em cada caso, com métodos particulares a objetos determinados.

A ciência, enquanto ciência unitária marxista, em princípio nada tem a ver com esta ciência moderna. A forma marxista da ciência é, antes, uma forma de conhecimento que foi válida durante séculos em grandes sistemas filosóficos como saber total. Para a ciência crítica moderna, essa forma tornou-se caduca, por ser uma ciência apenas aparentemente. O "saber total" de Marx pode ser desmascarado como forma deste suposto saber, tal como ainda Hegel   o tinha realizado, e que Marx repetiu em forma antiquada e conteúdo especificamente moderno.

É característico de toda fé o repúdio da incredulidade. Enquanto possuidor de um saber total, Marx, como os teólogos, era inimigo do agnosticismo e do cepticismo. Repudiava, por exemplo, a Kant  , que para ele é um céptico, em cuja filosofia, segundo ele, se reflete "a impotência, o desânimo e a miséria da burguesia alemã".

É evidente que a força do pensamento marxista está precisamente na sua falsidade primordial, que consiste em fazer passar uma fé por ciência. Da fé vem-lhe o fanatismo da certeza, o nome de ciência dá-lhe o disfarce. O que é fé pessoal passa a ser chamado de ciência. A fé nunca se denomina a si mesma de fé, mas se comporta como toda fé dogmática, cega a tudo que lhe é contrário, agressiva, incapaz de comunicação.

c) Marx, como homem de ciência e como homem de fé filosófica, é inseparável de Marx como político. Ou antes, a vontade política é que tem a predominância. Sua ação política é a ação de uma fé, sua fé mesma já é política. Marx e os marxistas são combatentes da fé.

E porque Marx conhece sem ilusões as realidades que são a força e o poder, estabelece-as como elementos decisivos no seu programa de ação. Pensa sempre na eficiência real dos processos planejados. Quer fugir da discussão e do palavreado, quer adeptos. O objetivo é primeiramente a ditadura do proletariado. Esta só pode ser realizada pela violência.

Não há nele nenhuma auto-limitação consciente a essa vontade de poder. Pois o objetivo, a verdade da fé, tudo justifica.

E esta política, com apoio no seu conhecimento, julga poder realizar o que nenhuma outra anteriormente pôde. Já que tem uma visão total da história, pode conceber um planejamento total e realizá-lo.

Se, de acordo com Marx, vemos como numa unidade os três elementos, ciência, fé e política, então a fatalidade espiritual está nisto: a aniquilação da ciência executada por Marx, em nome da ciência.

Talvez possa compreender-se isso mais rapidamente considerando o sentido da dialética. A dialética é o movimento por opostos nas transformações, movimento que tem lugar no pensamento e nas coisas mesmas.

Marx leva ao absoluto: tudo é dialético; e acrescenta: o que até hoje acontecia de fato dialeticamente, mas sem que se tivesse consciência disso, far-se-á agora dialeticamente de modo consciente, e será assim ao mesmo tempo liberdade e necessidade.

As espantosas consequências dessa concepção são as seguintes:

A dialética torna-se causalidade. As leis da dialética são concebidas como leis causais. E esta dialética torna-se a única causalidade de tudo quanto acontece; quer explicar os acontecimentos, na sua totalidade, por transformações radicais; e espera, pela intensificação ativa de um processo, produzir a sua mutação. Concretamente, isto quer dizer: se levo ao extremo a destruição do mundo capitalista e de todas as suas ideologias, da ética e dos chamados "direitos do homem", que contudo só pertencem à época burguesa, espero então a mutação que dará em resultado o nascimento do novo homem, autêntico, total. O que destrói é o que cria. Se produzo o nada, o ser por si mesmo aparece. Isto, porém, é de fato, tanto no conceito como no ato, uma repetição de práticas mágicas, sob a roupagem de uma pseudociência. Nos marxistas, a afirmação de que possuem um saber superior corresponde à magia.

A segunda consequência é a utilização da dialética para legitimar o que no momento se deseja. A dialética torna-se a forma mais eficaz da sofistica. Não existe nenhuma verdade eterna, nenhuma razão eterna. Toda realidade é história. A história é movimento. Movimento é transformação dialética. Quem dele participa mudará sem hesitação, em virtude desse saber superior, qualquer posição na posição contrária. A quem quer manter firme alguma coisa, e se baseia sobre o que Marx ou o Partido lhe ensinaram, ou até mesmo em fatos, lhe farão ver que o seu modo de pensar é reacionário e burguês, e que de agora em diante deve aprender a pensar dialeticamente. A cabeça dos pobres crentes põe-se a rodar, é tomada de vertigem e, em virtude do saber superior, é capaz de adotar qualquer posição, de praticar qualquer ação, de prestar qualquer obediência — pois é a obediência à dialética da história, que o sábio Mestre conhece melhor do que eu, que ainda tenho a aprender. Esta nova ciência termina por dominar os espíritos crédulos numa completa confusão, em que nada mais resta a fazer senão cumprir ordens.

Este erro fundamental é tão perigoso, porque parece ser próprio da nossa época, reaparecendo em outros movimentos. Devido aos êxitos científicos dos últimos séculos, surgiu uma superstição científica: caiu-se em um ilimitado desejo de produzir, espera-se simplesmente tudo da ciência e da sua consequência, a técnica. Há a tendência a colocar o homem, já que nada mais existe acima dele, no lugar de Deus, e a considerar a História, em vez da Divindade, como a instância suprema.

Com Marx surgiu o homem que, num mundo abandonado por Deus, se tornaria profeta, nas formas que satisfazem a esse mundo; isto é, como anunciador da ciência, mas de uma ciência que não é mais tal, como autoridade que dá ordens não em nome de Deus, mas em nome do conhecimento da História.

A unidade de fé, ciência e ação, e mais a fundamentação e a justificação de tudo pela dialética, esta síntese que não é uma unidade real, mas uma pretensão gratuita, parece tão fácil de desvendar na sua monstruosa falsidade, que nos sentimos tomados de espanto e de temor ao ver que esta fé é um fato. Pois, da marcha no sentido de tentar a realização do absurdo, só pode resultar destruição e violência inútil.

A psicanálise, atualmente uma força ativa cm todo o mundo, promete coisas extraordinárias. Pretende ser pura e simplesmente o conhecimento do homem e a portadora da nossa salvação.

Originada no domínio da medicina, fêz a sua marcha de conquista sobre todas as manifestações do ser humano e prepara-se para submeter a si toda a medicina.

É indiscutível que o movimento psicanalítico conduziu à aquisição de conhecimentos efetivos, principalmente graças a Freud  . Estes conhecimentos tornaram-se um elemento da psiquiatria científica. A crítica dos métodos de investigação, da significação e dos limites dos resultados adquiridos já foi realizada há muito tempo, e não vou repeti-la. Quem quer ter um conhecimento científico, deve apropriar-se do que há de conhecível neste terreno, tal como no caso do hipnotismo, mas não superestimará a sua importância.

Há atualmente psicoterapeutas de espírito independente, que amam os homens e desejam ajudá-los. De forma, em cada caso, pessoal, única, fazem tudo que é razoavelmente possível. Utilizam também os métodos psicanalíticos, sem deixar-se dominar por eles. Não organizam nem transformam em técnica o que há de ser sempre matéria de comunicação histórica entre os indivíduos. Admitirão a chamada análise didática para quem, por livre vontade, a desejar, mas não a exigirão por motivos científicos ou dogmáticos, e repudiam-na enquanto condição necessária à aprovação legal do médico como psicoterapeuta.

Mas em uma corrente dentro do movimento psicanalítico, que se vai tornando, ao que parece, cada vez mais forte, trata-se de fato de coisa muito diferente. Assim como o marxismo não exerce sua influência pelos conhecimentos particulares que trouxe para a ciência, mas pela sua visão de conjunto e pela sua fé de caráter não científico, o mesmo se dá com esta espécie de psicanálise.

A psicanálise como fé é possível devido a erros científicos fundamentais, dos quais indico brevemente os seguintes:

1. Confunde-se a compreensão do sentido com a explicação causal.

A compreensão do sentido realiza-se na comunicação recíproca; a causalidade tem que se conhecer à distância, como outra coisa, estranha ao sentido.

Pela compreensão não determino um efeito, mas faço um apelo à liberdade do indivíduo. Pela explicação causai sou capaz, em certa medida, de intervir racionalmente, previsivelmente, nos acontecimentos, no sentido dos objetivos desejados.

Se, porém, confundo a possibilidade de compreensão do sentido, que se processa no âmbito da liberdade, com a explicação causai, cometo um atentado à liberdade. Trato-a então como um objeto, como se fosse conhecível, e devido a isso a degrado. E, ademais, perco possibilidades causais que realmente existem.

2. O modo da ação terapêutica é discutível. Sabe-se que todos os processos psicoterapêuticos na mão de personalidades eficientes têm êxito, através dos séculos. Vê-se que os processos psicanalíticos têm o mesmo número de êxitos e de insucessos que os outros métodos. A satisfação de muitos pacientes em ver que se ocupam minuciosamente deles e de toda a sua biografia, não deve ser chamada de cura. Enquanto na medicina propriamente dita, em virtude dos conhecimentos adquiridos nos últimos 150 anos, tornaram-se possíveis extraordinários, quase fabulosos, êxitos terapêuticos, de tal modo que a vida do homem ocidental aumentou em média de cerca de 20 anos, os sucessos da psicoterapia, segundo todas as aparências, não aumentaram. Dada a natureza das coisas, dificilmente poderiam tê-lo feito.

3. O que se chama neurose não é caracterizado pelos conteúdos inteligíveis dos fenômenos, mas pelo mecanismo de tradução do psíquico em corpóreo, do sentido em acontecimento somático privado de sentido. Somente um número percentualmente diminuto de homens sofre deste mecanismo, desta aptidão ou desta fatalidade, pela qual os seus próprios atos anímicos e espirituais, atos da sua liberdade, se lhe apresentam transpostos em fenômenos somáticos, como coisa estranha, que não podem dominar. A maioria dos homens, ao contrário, recalcam, esquecem, deixam em suspenso, sofrem e toleram o máximo, sem que, por isso, cheguem a transtornos físicos.

Estes erros pertencem ao domínio das ciências médicas. Mas conduzem quem sucumbe a eles, por motivo das suas falsas esperanças, para muito além da medicina e das ciências. Tornam possível uma coisa completamente diferente:

Em primeiro lugar, a pretensão a possuir um conhecimento total do homem, do seu verdadeiro ser, anterior ainda à separação em corpo e alma. Esta totalização da concepção do homem, que, como estrutura de pensamento, é análoga ao totalitarismo na concepção política, repousa sobre a confusão de cognoscibilidade com liberdade. A liberdade tornada objeto não é mais liberdade. A cognoscibilidade reduzida a um fluxo de interpretações e re-interpretações sem fim não é mais cognoscibilidade.

O saber total está em correlação com a prática. A psicanálise e o fazer-se psicanalisar passam a ser a vida autêntica, a mais profunda satisfação. É a realização de uma fé no curso de infinitas metamorfoses de símbolos e de descidas ao inferno. Esta fé, aparentemente em constante movimento crítico, opõe-se à crítica dos seus princípios. É como se nada ouvisse a esse respeito. Mas pode comprazer-se no material infinito das possíveis interpretações e respectivas fixações simbólicas. O que começou com o anátema de Freud contra discípulos dissidentes, — a formação de uma ortodoxia, com declarações de heresia — representa uma tendência existente na doutrina mesma. Essa tendência, atravessando sociedades que pretendem para si o poder de definição da fé, poderia levar à formação de seitas, cujas consequências, na forma de alheamento e hostilidade à ciência, de desumanidade e irracionalismo, são incalculáveis. Começam com a exigência incondicional da chamada análise didática.

Tal fé — denominando-a assim em razão dos seus efeitos, mas de fato uma pseudo   fé — pode ser examinada quanto às suas condições e à sua origem.

Exteriormente, está vinculada ao mundo capitalista no qual os homens podem permitir-se essa espécie de luxo. E está ligada à semi-cultura. Tanto o homem primitivo, inculto, quanto o homem racional, culto, parecem inacessíveis a esses processos.

Os extraordinários êxitos na literatura, na afluência da clientela e no interesse, mesmo por parte de pessoas alheias a estes assuntos, produzem nos psicanalistas o júbilo e a certeza da vitória, embora eles, como os marxistas, constantemente se apresentem na atitude de prejudicados e perseguidos, e muitos tenham a tendência à revolta e à negação universal de tudo que é humano e não pertence ao seu círculo. Em face deste êxito, não podemos deixar de pens.ir que uma tão extensa e duradoura moda tem a sua razão de ser. Presumivelmente nela se contém um desejo verdadeiro, que é satisfeito de forma falsa.

Pode dizer-se que, em nossa época, um mundo humano transviado anseia por libertação. A psicanálise oferece-lhe uma libertação ilusória, tão falsa como este mundo humano mesmo, que nela se reflete. Aquela exigência de evadir-se do transvio é genuína. Uma resposta válida mediante uma ordem do mundo tal que, nela incluído, o homem se torne seguro de si, não existe em nossa época. Em lugar dessa ordem, o que há são violências, fanatismos, terrorismos. Como, em verdade, é possível esta ordem, por meio de um esclarecimento do ser, com uma realização na qual a Existência humana se cumpra plenamente e ascenda ao infinitamente aberto, — tal é a grande questão do nosso tempo. Enquanto durar a decadência, para esta questão só há resposta de indivíduo a indivíduo, partindo das profundezas do nosso fundamento humano e histórico. Mas instituir esta ordem de verdade é muito mais difícil do que descobrir o erro. Tanto quanto me é dado ver, no caminho da psicanálise só há soluções ilusórias.

A psicanálise torna-se a realidade de uma atitude vital que — correspondendo à exigência da época — se concebe a si mesma cientificamente, e não como magia, come culto, ou como feitiço, mas, apesar disso, é magia em nova forma e perde a ciência verdadeira. Origina-se uma disposição tanto ao cepticismo universal, quanto, juntamente com isso, à aceitação de qualquer interpretação arbitrária, mais ou menos do seguinte modo: se a interpretação pelo recalque falhar, recorre-se a uma inconcebível biografia total como drama   de uma vida; se falhar também esta interpretação, surge algo assim como a doutrina indiana do Karma, relativa a um ato de liberdade pré-temporal  , a uma culpa proveniente da vida anterior, mais ou menos como se, por exemplo, o câncer tivesse que ser concebido como resultado de uma causa livre no próprio homem. Desta maneira, a psicanálise torna-se a desorganização da cientificidade.

Trata-se de um poderoso processo de auto-ilusão, condicionado pela nossa época, e que se faz por um enfeitiçamento dos homens, que nele encontram o conteúdo de sua vida, mas pela falsidade da origem são levados a cair em uma confusão irremediável, não apenas do seu saber mas da sua própria essência.

A clareza da nossa atitude científica somente é assegurada pela reflexão metodológica. Esta reflexão nos conduz a distinguir, de um lado, os múltiplos modos do conhecimento científico, e, de outro, os métodos filosóficos de pensar. Este é um campo vasto e essencial para o estudo e a reflexão.

Desejaria indicar aqui apenas uma ideia fundamental, coisa simples, mas que, sendo compreendida, acarreta uma transformação do sentido de todo o nosso saber. É a ideia seguinte:

Todo conhecimento no mundo refere-se a objetos particulares, é adquirido com métodos definidos a partir de pontos de vista definidos. Daí ser falso fazer de qualquer saber um saber total e dar-lhe caráter absoluto.

Este erro, porém, resulta de uma ilusão que sempre nos é natural, que consiste em considerar, em cada caso, o ser do objeto conhecido como o ser absoluto, em considerar as coisas como coisas em si, o objeto como o Ser mesmo. Temos que nos arrancar, como por uma operação cirúrgica, a esta obnubilação, que tem lugar justamente no caso do conhecimento mais exato, quando confundimos o seu sentido de orientação particular no mundo (por força do saber irrecusável daquilo que se tornou objeto para nós) com o conhecimento do Ser mesmo. Temos que nos arrancar, por meio de uma operação filosófica fundamental do acorrentamento aos objetos, para nos lançarmos no Envolvente.

Isto é fácil de dizer e difícil de fazer. Corro princípio fundamental, é simples de compreender, e contudo talvez nunca se possa realizar completamente. Pois toda a claridade do Envolvente só é partilhada por nós mediante a objetividade definida e distinta, que encontramos na cisão sujeito-objeto. O Envolvente mesmo só pode ser apreendido indiretamente nesta cisão, na qual todo Ser para a nossa consciência tem que aparecer como objetividade. Com toda a nossa natureza buscamos o Ser mesmo, mas no conhecimento científico só o achamos nos objetos, os quais, em virtude da tendência que temos a torná-los absolutos, imediatamente o encobrem.

Se compreendemos isto, modifica-se a estrutura do sentido do saber — não a do saber fático — nas ciências mesmas. Este sentido não aparece mais como a possibilidade de uma única e englobante teoria do Ser, como imagem dogmática do saber total, — sem dúvida incompleto, mas existente em princípio e que apenas se trata de acabar de construir — mas este sentido somente aparece como uma sistemática metodológica, que me indica por que caminhos e com que meios, em dado momento, encontro quais objetos. Este saber metodológica -mente consciente preserva-nos da tentação da absolutização dogmática do conhecimento particular, livra-nos de toda teoria particular, graças à consciência do sentido da teoria era geral.

A consciência metodológica pode especialmente preservar-nos de um extravio que se impõe a nós contra a nossa vontade e quer sempre subjugar-nos. Nosso conhecimento científico só alcança até onde a realidade é apreendida em nossas categorias e métodos. Estes pressupostos para a marcha das ciências experimentais não significam um conhecimento da totalidade da experiência. Sem dúvida, sob estes pressupostos e sob outros novos que ainda aparecerão, posso conhecer ao infinito; mas não posso conceber antecipadamente o infinito e fazer dele supostamente um objeto, já conhecido na totalidade em seus traços fundamentais.

Somente na atitude científica metodologicamente consciente é que sei o que sei e o que ignoro. Com critérios particulares para cada conhecimento particular, posso adquirir uma certeza forçosa sobre as coisas que existem no mundo.

É a diferença entre entender-se dentro de um edifício fechado e estar aberto no mundo ilimitado, com suas perspectivas. Quando compreendi isto em minha juventude, tentei realizar este caráter científico na minha "Psicopatologia" — na forma de um esclarecimento metodológico e não de uma exposição dogmática de todo o conhecimento psiquiátrico. Considero esse livro, quanto ao seu conteúdo, um livro científico especializado, mas, ao mesmo tempo, quanto à consciência de sua forma, um livro filosófico.

Agora, porém, chegamos ao ponto decisivo: se compreendemos a significação da cientificidade, — e esta significação só apareceu universalmente, enquanto ciência moderna, nos últimos séculos, e é talvez o maior acontecimento da história mundial desde o "período axial" criador, cerca de 500 a. C. — a ciência torna-se para nós condição de toda verdade da filosofia mesma. Sem ciência, não é mais possível hoje veracidade no filosofar. Confessamo-nos irrestritamente favorável ã ciência moderna como caminho para a verdade.

O abalo radical do espírito moderno — tantas vezes descrito e discutido — não é precisamente um abalo da ciência moderna. Na medida em que esta é pura nos seus métodos e limpa na sua crítica, não é de modo algum abalada, antes, ao contrário, progride em segurança, clareza e certeza, — dentro dos seus limites.

O que, porém, está abalado em muitos homens é a significação desta ciência, é a evidência de que a ciência é necessária. Para recuperar-se esta significação, requerem-se outras fontes, diferentes das que a própria ciência pode proporcionar.

Não é fácil compreender o que é a ciência. — É preciso ter tomado parte no trabalho da ciência para ter na consciência, a todo momento, de maneira fidedigna, o que ela é. Se isso não se dá, e se pensamos nas suas exterioridades, nos seus desvios, nas transposições de meios de pesquisa em fins de pesquisa, no seu aproveitamento por meio da técnica, deixamos de compreendê-la, tal como fizeram Scheler   e o Conde Keyserling, tomando-a como expressão da vontade de poder. Vê-se, então, a ciência guiada somente pela técnica, nascida pela vontade de poderio técnico, e vê-se nela uma perversão do significado da verdade, de importância passageira e historicamente funesta. Esta falsa interpretação é como um atentado espiritual à própria razão, que quer a ciência e precisa dela. Aconteceram aquelas más consequências decorrentes da ciência se pôr a serviço de uma vontade de poder. Devem ser combatidas pela razão e pela ciência mesma. Mas a origem da ciência não é a vontade de poder sobre as coisas (embora esta tenha tido às vezes uma ação estimulante), porém a vontade de verdade mesma. Os homens mais dignos de respeito, mais desinteressados, sem desejo de poderio, animados pela capacidade de saber, encontram-se na série dos grandes pesquisadores e sábios dos últimos séculos (e outras figuras, como Bacon e Descartes  , em relação aos quais é verdade que se poderia pensar nessa falsa interpretação da ciência). A vontade de verdade, esta dignidade do homem, é a origem da ciência moderna na sua essência, a soberania da sua liberdade de poder conhecer.

Estas afirmações depreciativas sobre a ciência só são possíveis por uma cegueira para o sentido de ciência; emanam, em parte, de um estado de espírito fundamental de absoluto desespero histórico, de uma atitude escatológica que em verdade não se pode refutar, — a não ser filosoficamente, pela discussão da própria razão, — mas que também não se pode demonstrar. Esse estado de espírito encontra há decênios uma ressonância que prepara os homens a promover, por seu próprio comportamento, a desgraça que veem em progresso. Os que estão nesta disposição de espírito costumam ficar à margem da vida real, ou participar dela tumultuariamente, com cego fanatismo, contribuindo para provocar a ruína em que creem.

Ora, esta incompreensão da ciência, contudo, dificilmente seria possível, se a ciência se bastasse a si mesma. Mas, até mesmo a escolha dos objetos da investigação é incompreensível unicamente a partir da ciência. Seu próprio sentido, a necessidade da sua existência, não pode fundamentar-se a partir dela. Não se suporta a si mesma. Quando o intenta, cai numa infinidade de afirmações exatas indiferentes. A investigação científica sempre chega a um ato primordial, que é um pressuposto da ciência, e não ela própria, quando mais não seja no sentido trivial do interesse em alguma coisa.

A insatisfação com a ciência é a expressão da vontade de verdade, e é maior e atinge mais longe do que aquilo que pode ser satisfeito dentro das ciências. Marxismo, psicanálise e todos os outros muitos movimentos dessa espécie não seriam tão eficientes, se não se dirigissem a uma outra ânsia de verdade, que reclama os seus direitos. Quais são os limites da ciência em que essas teorias se oferecem a nós? Estes: a ciência, quando é pura, não atinge o Ser mesmo, não atinge a verdade inteira, mas apenas objetos no mundo, num progredir sem fim. Originariamente, queremos mais do que ciência.

É aqui onde temos que tomar uma decisão. Procuraremos este "mais" numa vivência, no obscuro, no irracional como tal, ou partindo da origem da Existência possível, por meio da razão?

Se tomamos o segundo caminho, o pensamento fica livre para iluminar aquilo que não é conhecível cientificamente, utilizando, também aqui, uma consciência metodológica, a saber, a consciência dos métodos filosóficos.

Então, a linguagem de todas as coisas torna-se audível, o mito, pleno   de sentido; poesia e arte tornam-se o "organon   da filosofia" (Schelling  ). Mas não se confundirá a linguagem do mito com o conteúdo do saber. Aquilo que é percebido na contemplação e, em seguida, nos anima na vida real, não deve nem ser extinto nem adquirir o caráter de um saber, quando a razão nos obriga a pôr à prova a verdade. Esta comprovação da verdade não é uma verificação que se faz na experiência, mas em nossa própria essência, na elevação ou no rebaixamento do nosso próprio ser por essa verdade, no conteúdo do nosso amor.

Mas esse pensamento, esse ato de perceber que se ilumina ao pensá-lo, tem lugar sempre na cisão sujeito-objeto. Estamos em face de um objeto, e somente nessa forma de cisão é que há clareza para a nossa consciência, mesmo com relação àquilo que, por seu sentido, está antes ou além dessa cisão. Tudo o que nos deve aparecer de maneira clara deve ingressar na cisão sujeito-objeto. Esta cisão não pode ser negada mas só pode ser compreendida. Só dentro dela mesma, pela clareza que nela exista, é que podemos verdadeira e realmente superá-la.

Filosoficamente, chegamos a ver com clareza que sujeito e objeto pertencem um ao outro, que um não existe sem o outro. Mas, nessa relação, que nos é sempre presente, há uma diferença de essência entre sujeito e objeto — de certo modo o sujeito enquanto "Dasein  " (existência concreta), enquanto consciência em geral, enquanto Existência possível — e com isso uma diferença essencial na maneira como sujeito e objeto se relacionam um com o outro. As perguntas seguintes conduzem a um esclarecimento: Qual sujeito relacionamos a qual objeto? Como está estruturada a multiplicidade das relações sujeito-objeto? Com qual sujeito realizamos em cada caso a evidência de uma verdade? Onde cometemos acaso confusões entre os diferentes modos do sujeito e do objeto? Onde e como é o caminho que conduz à unidade de todos os modos do ser-sujeito e do ser-objeto?

Eu resumo:

No aparecimento de substitutos da Fé, dentre os quais destacamos o marxismo e a psicanálise, e na rejeição, por parte deles, da verdadeira ciência moderna em nome de uma "Ciência" que lhes é própria, não vemos apenas um erro.

Uma tendência fundamental arrasta a isso — o afã de livrar-se da liberdade. Quer-se esquecer a possibilidade de ser si mesmo autenticamente, em favor de um mundo de História supostamente apreendida, ou em favor de uma realidade psicologicamente conhecida, considerada como aquilo que se é e se pode ser; numa palavra, em favor de um falso saber total.

Desejar-se-ia descarregar sobre a totalidade de uma coisa conhecida aquilo de que só o indivíduo é capaz, aquilo a partir de que o Estado, a sociedade e a realidade do homem adquirem o seu fundamento, sua direção e seu sentido in-condicionado. Desejar-se-ia, por meio de uma planificação total, atingir uma situação que crie automaticamente a felicidade. Julga-se realizar o ser do homem em um análogo de um Estado de animais ordenado, em vez de realizá-lo na comunidade de seres cognoscentes, que se mantém sob constante exigência no caminho da sua liberdade.

Mas não devemos de modo algum considerar o curso das coisas como algo inevitável, que acontece necessariamente, e no qual ninguém pode alterar coisa alguma.

Partindo da consciência da efetiva impotência do indivíduo em cada situação momentânea da história universal, esta visão total é objetivada em um suposto saber absoluto. O saber total, metafísico ou gnóstico, de uma realização do Ser não será, então, senão um sonho, mau ou belo.

Mas podemos, sem dúvida, conhecer este processo em algumas de suas conexões; por exemplo, como o saber total e sua consequência, a planificação total, conduzem a um caos crescente, à aniquilação da ordem vital e sua substituição por uma ordem terrorista e mecânica, — ou, como a psicanálise tende a transformar o homem segundo a imagem que dele faz, e como o homem, por causa dela, cai em uma confusão da alma, a que chama de doença, que ele faz produzir-se de novo em virtude deste modo de conhecer, sempre na expectativa de uma cura.

Mas, que é que se abandona em todos estes caminhos errôneos? Não é coisa que se possa indicar precisamente, que se possa demonstrar como existente objetivamente, que se possa observar, ou pôr diante dos olhos numa intuição, por meio de um mito ou de uma ficção poética. É aquilo que o homem pode ser, quando se torna ele mesmo. É a Existência possível e é esta por meio da razão.

Os erros apontados devem ser superados mediante dois atos: primeiro, pela aquisição do método científico, com o qual é devassada a falsidade do saber total, das objetivações pseudo-míticas, com o qual — mais do que isso — é assentado o fundamento de toda veracidade. Foi sobre isso que falei hoje. E em segundo lugar, pelo salto na origem de nós mesmos, esta origem da qual não temos imagem, inobjetivável, que se impulsiona a si mesma, e que é a Razão. Sobre isso desejaria falar amanhã.


Ver online : Karl Jaspers