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Meditações Cartesianas

Husserl (MC:71-73) – Reflexão natural e reflexão transcendental

§15. Reflexão natural e transcendental

quarta-feira 13 de outubro de 2021

HUSSERL  , Edmund. Meditações cartesianas e Conferências de Paris. Ed. Stephan Strasser. Tr. Pedro M. S. Alves. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 71-73

Para uma clarificação mais avançada, deve ser acrescentado que deveremos distinguir entre, de um lado, a captação perceptiva, o recordar-se, o predicar, o valorar, a posição de fins etc., diretamente consumados, e, do outro, as reflexões por meio das quais, enquanto atos de captação de um novo nível, os atos diretos por vez primeira para nós se descobrem. Percepcionando diretamente, captamos, por exemplo, a casa e não o próprio percepcionar. Só na reflexão nos dirigimos para o próprio ato e para o seu estar-dirigido perceptivo para a casa. Na reflexão natural da vida quotidiana, mas também na da ciência psicológica (portanto, na experiência psicológica das nossas próprias vivências psíquicas), permanecemos no terreno do mundo que está dado de antemão como um ser, tal como quando dizemos, na vida quotidiana, “vejo ali uma casa” ou “recordo-me [71] de ter ouvido esta melodia” etc. Na reflexão fenomenológico-transcendental  , deslocamo-nos deste terreno através da epoche   universal a respeito do ser ou do não ser do mundo. A experiência assim modificada, a transcendental, consiste então, podemos dizê-lo, em que olhamos para o respectivo cogito   transcendentalmente reduzido e o descrevemos, mas sem que, enquanto sujeitos que refletem, consumemos conjuntamente aquela posição natural de ser que a percepção originariamente realizada de modo direto (ou outro qualquer cogito) contém em si, ou seja, aquela posição que foi efetivamente consumada pelo eu que diretamente se entrega à vida no mundo. Sem dúvida que, com isso, entra em cena, no lugar da vivência originária, uma outra essencialmente diferente; nessa medida, dever-se-ia dizer, portanto, que a reflexão altera a vivência originária. Mas isto é válido para toda e qualquer reflexão, mesmo para a natural. A reflexão natural altera bem essencialmente a vivência que antes era ingênua; esta perde o modo originário do estar diretamente dirigido, precisamente porque a reflexão torna objeto o que antes era vivência, mas não algo objetivo. Contudo, a tarefa própria da reflexão não consiste em repetir a vivência originária, <73> mas antes em considerá-la e em explicitar o que nela se pode encontrar. Naturalmente que a passagem para esta consideração fornece uma nova vivência intencional que, na sua peculiaridade intencional de se retrorreferir à vivência anterior, torna consciente essa própria vivência - eventualmente de modo evidente e não uma outra qualquer. Precisamente por isso, torna-se possível um saber de experiência, de início um saber descritivo - aquele a que devemos todo o contato e todo o conhecimento pensáveis acerca da nossa própria vida intencional. Isto deve, portanto, continuar a verificar-se também na reflexão fenomenológico-transcendental. O fato de o eu que reflete não coefetuar a tomada de posição de ser que está presente na percepção direta da casa não altera em nada que a experiência de reflexão seja, precisamente, uma experiência da percepção da casa, com todos os momentos que lhe pertenciam anteriormente e que continuam a tomar forma nela. E a isso pertencem, no nosso exemplo, os momentos da própria percepção, enquanto vivência fluente, e os da casa percepcionada puramente enquanto tal. Não falta nem, de um lado, a posição de ser (a crença perceptiva) no modo da certeza, que é peculiar ao percepcionar (normal), nem, do lado [72] da casa aparecente, o caráter da existência pura e simples. O não coefetuar, o abster-se, por parte do eu na atitude fenomenológica, é coisa sua, não da percepção por ele reflexivamente considerada. De resto, temos acesso a isso através de uma reflexão correspondente, e só por ela sabemos algo a seu respeito.

Podemos descrever o que aqui se verifica também dessa maneira; se chamarmos ao eu que naturalmente se entrega à experiência do mundo, ou que de outro modo se abandona à vida nele, um eu interessado no mundo, então a atitude fenomenológica alterada, que se deve constantemente assim manter, consiste em que na realização de uma cisão do eu, na qual, por sobre o eu ingenuamente interessado, se estabelece o eu fenomenológico enquanto espectador desinteressado. Que isto aconteça, é coisa a que temos acesso através de uma nova reflexão que, enquanto transcendental, exige, mais uma vez, precisamente a realização desta atitude do espectador desinteressado, sendo o único interesse   remanescente o de ver e descrever adequadamente.


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