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INVESTIGAÇÕES LÓGICAS I

Husserl (IL1:84-86) – Irredutibilidade das leis lógicas

quarta-feira 13 de outubro de 2021

Investigações Lógicas, I, trad. H. Élie, A. L. Kelkel e R. Schérer, Presses Universitaires de France, pp. 84-86

Todo o conhecimento «começa com a experiência», mas isso não quer dizer que «derive» da experiência. O que afirmamos é que toda a lei relativa aos fatos deriva da experiência, o que implica precisamente que não pode ser fundada senão pela indução resultante de experiências singulares. Se é verdade que há leis captadas com evidência, não podem, portanto, ser (imediatamente) leis que se aplicam aos fatos. Onde quer que se tenha admitido, até ao presente, a possibilidade de evidência imediata das leis relativas a fatos, verificou-se que se confundiu, ou autênticas leis que se aplicam aos fatos, isto é, leis de coexistência e de sucessão, com leis ideais, às quais qualquer relação seja com o que for de determinado no tempo é, em princípio, estranha, ou então se confundiu a potência viva de persuasão que as generalidades empíricas que nos são tão familiares comportam com o carácter de evidência que experimentamos (erleben) somente no domínio do puro conceptual.

Ainda que um argumento deste gênero não possa ter valor decisivo, sempre pode aumentar a força de outros argumentos. Juntemos ainda mais um.

Negar-se-á dificilmente que todas as leis puramente lógicas sejam de um só e mesmo carácter; se pudermos demonstrar que é impossível conceber algumas delas como leis empíricas, deverá suceder o mesmo com todas as outras. Ora, entre as leis, encontram-se também algumas que se relacionam a verdades em geral e nas quais, por conseguinte, os «objetos» que foram submetidos a uma regra são verdades. Por exemplo, admite-se de toda a verdade A que a sua contraditória não é uma verdade. De cada par de verdades A, B, admite-se que as suas combinações conjuntivas ou disjuntivas[fn]Entendo assim o sentido das proposições «A e B», isto é, as duas são verdadeiras, ou, consoante o caso «A ou B», isto é, uma das duas é verdadeira — o que não implica que apenas uma seja verdadeira.[/fn] são também verdades. Se três verdades A, B, C, estão em relação tal que A é razão (Grund  ) de B e B razão de C, A é, então, também razão de C, etc. Mas é absurdo qualificar como leis relativas a fatos leis que se aplicam a verdades como tais. Nenhuma verdade é um fato, isto é, algo de determinado no tempo. Uma verdade pode sem dúvida significar que uma coisa é, que um estado de coisas existe, que uma modificação acontece, etc. Mas a verdade mesma transcende toda a temporalidade, isto é, não faz sentido nenhum atribuir-lhe uma existência temporal  , uma aparição ou uma desaparição. Este absurdo revela-se na sua maior clareza no que diz respeito às próprias leis da verdade. Se fossem leis do real, seriam regras da coexistência ou da sucessão de fatos, mais especialmente de verdades, e elas mesmas deveriam, isto é, enquanto verdades, cair sob a jurisdição desses fatos que elas submetem a uma regra. Uma lei prescreveria, assim, a aparição e a desaparição de certos fatos, chamados verdades, e, entre estes fatos, deveria, portanto, encontrar-se, como um entre outros fatos, a própria lei. A lei nasceria ou deixaria de existir segundo a lei — o que seria um manifesto absurdo. E o mesmo seria se quiséssemos interpretar a lei de verdade (Wahrheitsgesetz) como lei de coexistência, como um fato singular no tempo e, não obstante, como uma regra geral determinante para tudo o que existe no tempo. Semelhantes absurdos são inevitáveis quando não se observa ou não se compreende, no seu verdadeiro sentido, a diferença fundamental entre objetos ideais e objetos reais e, por conseguinte, a diferença entre leis ideais e leis reais; tornaremos a ver, sem cessar, que esta diferença é decisiva para as questões controversas entre a lógica psicologista e a lógica pura.


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