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Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica

Husserl (IFP1:114-116) – O ser absoluto da consciência

§ 49. A consciência absoluta como resíduo do aniquilamento do mundo

sábado 24 de março de 2018

HUSSERL  , Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica: introdução geral à fenomenologia pura. Tr. Márcio Suzuki. Aparecida: Ideias & Letras, 2006, p. 114-116

Por outro lado, com tudo isso não está dito que tem de haver um mundo, que tem de haver alguma coisa. A existência de um mundo é o correlato de certas diversidades empíricas que se destacam por certas configurações eidéticas. Não há, porém, evidência de que as experiências atuais só possam transcorrer nessas formas de concatenação; isso não pode ser tirado puramente da essência da percepção em geral e das outras espécies de intuição empírica dela co-participantes. Pode-se muito bem pensar, ao contrário, que o conflito não dissolve a experiência em aparência apenas no singular, que a aparência, como de facto ocorre, não anuncia uma verdade mais profunda, e o conflito não é exigido naquele lugar justamente por nexos mais abrangentes a fim de que a coerência do todo seja preservada; pode-se pensar que a experiência fervilha de conflitos irreconciliáveis, não apenas para nós, mais irreconciliáveis em si, que ela se mostra de uma vez por todas refratária à suposição de que suas posições de existência das coisas se manterão coerentes, que sua concatenação carece de ordenações seguras para regular os perfis, as apreensões, as aparições — enfim, que já não há mundo. Pode ser que se chegasse, numa certa medida, à constituição de grosseiras configurações de unidade, pontos de apoio passageiros para as intuições, as quais seriam meros análogos das intuições de coisa, porque totalmente incapazes de constituir “realidades” conservadas, unidades de duração que “existiríam em si, fossem elas percebidas ou não”.

[115] Ora, se a isso agora acrescentamos os resultados obtidos ao final do último capítulo, e pensamos, portanto, na possibilidade do não-ser contida na essência de toda transcendência da coisa: então fica claro que o ser da consciência, todo fluxo de vivido em geral seria necessariamente modificado por um aniquilamento do mundo de coisas, mas permanecería intocado em sua própria existência. Modificado, certamente. Pois aniquilamento do mundo não quer dizer, correlativamente, senão que em todo fluxo de vividos (o fluxo total pleno   de vividos de um eu, isto é, considerado sem limite em nenhuma das duas direções) estariam excluídos certos nexos empíricos ordenados e, consequentemente, também os nexos da razão teórica que se orientariam por elas. Isso não implica, porém, que estariam excluídos outros vividos e nexos de vividos. Portanto, nenhum ser real, nenhum ser que se exiba e ateste por aparições à consciência, é necessário para o ser da própria consciência (no sentido mais amplo do fluxo de vivido).

O ser imanente é, portanto, indubitavelmente ser absoluto no sentido de que ele, por princípio, nulla “re” indiget ad existendum. [1]

Por outro lado, o mundo da “res” transcendente é inteiramente dependente da consciência, não da consciência pensada logicamente, mas da consciência atual.

Isso já ficou claro em seu caráter mais geral pelos desenvolvimentos feitos acima (no parágrafo precedente). Um transcendente é dado mediante certos nexos empíricos. Dado diretamente e em perfeição crescente, em contínuos de percepção que se mostram coerentes, em certas formas metódicas de pensamento fundado em experiência, o transcendente recebe, de maneira mais ou menos mediada, determinação teórica evidente e sempre progressiva. Admitamos que a consciência, com seu conteúdo de vivido e seu transcurso, seja realmente em si de tal espécie que o sujeito da consciência possa efetuar todos esses nexos, procedendo de maneira teórica livre na experiência e no pensamento da experiência (onde precisaríamos contar com o auxílio da compreensão recíproca dos outros eus e seus fluxos de vivido); admitamos, além disso, que a consciência esteja realmente em sua regulagem adequada, que do lado dos cursos de consciência não falte nada que possa ser exigido para a aparição de um mundo em sua unidade e para o conhecimento teórico racional dele. Tendo pressuposto tudo isso, perguntamos então: é ainda pensável, e não antes um contra-senso, que o mundo transcendente correspondente não exista?

[116] Vemos, portanto, que consciência (vivido) e ser real são tudo menos espécies de ser de mesma ordem, que habitam pacificamente um ao lado do outro, que ocasionalmente se “referem” um ao outro ou se “vinculam” um com o outro. No sentido verdadeiro, a vinculação, a formação de um todo só é possível para aquilo que é aparentado por essência, para aquilo que tem, tanto um quanto outro, uma essência própria no mesmo sentido. De ambos, sem dúvida, do ser imanente ou absoluto e do ser transcendente, se diz que eles “são”, que são “objeto” e que ambos têm seu conteúdo de determinação objetiva: é, no entanto, evidente que aquilo que, nos dois casos, se chama objeto e determinação objetiva só recebe a mesma denominação em categorias lógicas vazias. Um verdadeiro abismo de sentido se abre entre consciência e realidade. Aqui, um ser que se perfila, que não se dá de modo absoluto, mas meramente contingente e relativo; lá, um ser necessário e absoluto, que não pode por princípio ser dado mediante perfil e aparição.

A despeito de todos os discursos que falam, certamente com bom fundamento de sentido, de um ser real do eu humano, de seus vividos de consciência no mundo e de tudo o que a ele pertence em termos de nexos “psicofísicos” —, a despeito disso tudo, está claro, portanto, que a consciência, considerada em sua “pureza  ”, tem de valer como uma concatenação de ser fechada por si, como uma concatenação do ser absoluto, no qual nada pode penetrar e do qual nada pode escapulir; que não tem nenhum lado de fora espaço-temporal   e não pode estar em nenhum nexo espaço-temporal, que não pode sofrer causalidade de coisa alguma, nem exercer causalidade sobre coisa nenhuma — supondo-se que causalidade tenha o sentido normal de causalidade natural, enquanto relação de dependência entre realidades.

Por outro lado, todo o mundo espaço-temporal, no qual o homem e o eu humano se incluem como realidades individuais subordinadas, é, segundo seu sentido, mero ser intencional, portanto, tal que tem o sentido meramente secundário, relativo, de um ser para a consciência. Ele é um ser de que a consciência põe a existência em suas experiências, que por princípio só é intuível e determinável como o idêntico de multiplicidades de aparições motivadas de modo coerente —- mas, além disso, um nada.


Ver online : Ideias para uma fenomenologia pura


[1“Não carece de coisa alguma para existir”. Em latim, no original. (NT)