Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Hume: vício e virtude – dor e prazer

sábado 11 de janeiro de 2020

Excerto de HUME  , David. Tratado da Natureza Humana. Tr. Déborah Danowski. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 329-331

De fato, mesmo admitindo que a moralidade não tem fundamento na natureza, deve-se reconhecer que o vício e a virtude, seja por interesse   próprio, seja pelos preconceitos da educação, produzem em nós uma dor e um prazer reais; e podemos notar que esse ponto é vigorosamente sustentado pelos defensores dessa hipótese. Toda paixão, hábito ou traço de caráter (dizem eles) que tenda a nos trazer algum benefício ou prejuízo proporciona, respectivamente, um contentamento ou um mal-estar; e é daí que surge a aprovação ou a desaprovação. Sempre ganhamos com a liberalidade dos outros, mas corremos perigo de perder por sua avareza; a coragem nos protege, mas a covardia nos deixa expostos a qualquer ataque; a justiça é a sustentação da sociedade, mas a injustiça, se não controlada, rapidamente traria sua ruína; a humildade nos enaltece, mas o orgulho nos humilha. Por essas razões, as primeiras qualidades são consideradas virtudes, e as últimas, vícios. Ora, como aqui ainda se continua admitindo que existe um contentamento ou um mal-estar acompanhando todos os tipos de mérito ou demérito, isso é suficiente para meu propósito.

Vou mais adiante, contudo, e observo que não apenas essa hipótese moral   concorda com meu presente sistema, mas também o reconhecimento de que aquela é correta constitui uma prova absoluta e irresistível deste último. Pois, se toda moralidade se funda na dor ou no prazer gerados pela perspectiva de algum prejuízo ou vantagem que possam resultar de nosso próprio caráter ou do caráter alheio, todos os efeitos da moralidade têm de ser derivados da mesma dor ou prazer entre eles, as paixões do orgulho e da humildade. A essência mesma da virtude, segundo essa hipótese, é produzir prazer, e a do vício é causar dor. Para suscitar orgulho ou humildade, a virtude e o vício devem fazer parte de nosso caráter. Ora, que outra prova podemos desejar para a dupla relação, de impressões e de ideias?

O mesmo argumento irrefutável pode ser extraído da opinião   daqueles que sustentam que a moralidade é algo real, essencial e fundado na natureza. A hipótese mais provável já proposta para explicar a distinção entre vício e virtude, bem como a origem dos direitos e das obrigações morais, é que, por uma constituição primitiva da natureza, certos caracteres e paixões, só de vistos e contemplados, produzem um desprazer, e outros, de maneira semelhante, suscitam um prazer. O desprazer e a satisfação não são apenas inseparáveis do vício e da virtude; constituem sua própria natureza e essência. Aprovar um caráter é sentir um contentamento original diante dele. Desaprová-lo é sentir um desprazer. A dor e o prazer, portanto, sendo as causas originais do vício e da virtude, devem ser também as causas de todos os seus efeitos e, consequentemente, do orgulho e da humildade, que acompanham de maneira inevitável essa distinção.

Supondo-se, no entanto, que essa hipótese da filosofia moral seja considerada falsa, ainda assim é evidente que a dor e o prazer, se não são as causas do vício e da virtude, são ao menos inseparáveis destes. A mera consideração de um caráter generoso e nobre nos proporciona uma satisfação; e quando ele se apresenta a nós, ainda que apenas em um poema ou romance, nunca deixa de nos encantar e agradar. Em contrapartida, a crueldade e a traição nos desagradam por sua própria natureza; é impossível aceitar essas qualidades, estejam elas em nós mesmos ou em outros. Assim, a primeira hipótese moral é uma prova inegável do sistema anterior, e a segunda, no pior dos casos, concorda com ele.


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