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Genealogia da psicanálise

Henry (GP:59-61) – O que é ver?

Videre videor

segunda-feira 13 de setembro de 2021

Excerto de HENRY, Michel. Genealogia da psicanálise. O começo perdido. Tr. Rodrigo Vieira Marques. Curitiba: Editora UFPR, 2009, p. 59-61.

O que é ver? O olho humano, tornado cego pela redução, colocado entre parêntesis, e reconhecido incapaz de cumprir a visão, converteu essa visão em sua natureza, no puro fato de ver, o qual pressupõe um horizonte de visibilidade, uma luz transcendental   que Descartes   “denomina” luz natural. A coisas e, notadamente, as essências matemáticas, podem ser vistas porque estão mergulhadas nessa luz e são esclarecidas por ela. Ver é olhar “em direção a” e atingir o que se tem diante do olhar, de tal maneira que é somente pela ob-jeção do que é assim lançado e posto “diante de” que esse último, o que é lançado, encontra-se simultânea e identicamente visto e olhado. Antes de ser a da coisa ou da essência, todavia, a ob-jeção do que é visto enquanto posto e situado “diante de” é, em primeiro lugar, a ob-jeção do ser-posto-diante como tal, a ob-jeção do horizonte puro, ela é a abertura do aberto como diferença ontológica sobre a qual se funda toda presença ôntica. A ek-stasis é a condição de possibilidade do videre e de todo o ver em geral. Mas essa ek-stasis originária é bruscamente abandonada pela redução. O que lhe resta, então, o que pretende ainda reter em suas mãos?

At certe videre videor — No mínimo, parece-me que eu vejo. Descartes sustenta que essa visão, por mais falaciosa que seja, no mínimo, existe. Mas o que é existir? Segundo a pressuposição do cartesianismo do começo, existir, ser significa aparecer, manifestar-se. Videor não designa nada mais do que isso. Videor designa a parecença [semblence] primitiva, a capacidade originária de aparecer e de se dar em virtude da qual a visão se manifesta e se dá originariamente a nós, qualquer que seja a credibilidade e a veracidade que lhe convém outorgar enquanto visão, independentemente daquele que vê ou acredita ver e de seu próprio ver. A partir desse momento, tão logo é capaz de fazer luz sobre si mesma, a questão crucial que traz em seu seio o cartesianismo, e talvez toda filosofia possível, ergue-se diante de nós de modo incontornável, inelutável: a parecença [semblence] que reina no videor e o torna possível como o aparecer originário, e como o aparecer a si em virtude do qual o videre se manifesta, em primeiro lugar, a si mesmo e se dá a nós — em virtude do qual me parece que vejo — será, por acaso, esta [60] parecença [semblence] primeira idêntica àquela em que o ver atinge seu objeto e se constitui propriamente como um ver? A essência originária da revelação será redutível à ek-stasis da diferença ontológica?

De modo algum. O que significará a duplicação do videre no videre videor, caso se trate justamente de uma simples duplicação, caso a essência visada há pouco no videre e a pressentida agora no videor seja a mesma? Em que o desdobramento dessa mesma essência será suscetível de lhe conferir o que lhe faltou no princípio, a saber, a possibilidade de constituir o começo, a possibilidade de se autofundar na certeza de si de sua autorrevelação? Pois a significação radical da crítica de Descartes não pode ser esquecida. Se o ver foi desacreditado em sua pretensão de estabelecer firmemente aquilo que vê, ainda que seja aquilo que vê clara e distintamente, se o foi, por conseguinte, em si mesmo, posto que essa visão talvez seja enganadora, talvez não seja um princípio de legitimação, de que modo então confiar a tarefa de se autolegitimar a esse ver e à sua própria capacidade? O ver se produz na ek-stasis como uma apreensão que não é somente duvidosa e confusa, mas também fundamentalmente errada (se tal for a vontade do Gênio Maligno). Mas se a aparência que retomava esse mesmo ver e o dá, primeiramente, a si mesmo antes que se dê seu objeto no vidente, se esta aparência primitiva, digamos, seja o próprio ver, ela redobra sua confusão e sua incerteza, em vez de poder descartá-las. Em outros termos, o princípio que foi destruído pela epoché   não pode salvar a si mesmo: não tendo qualquer validade para fundar o que quer que seja, não poderá cumprir a obra prévia da autofundação. Assim a aparência primitiva que atravessa o videre e faz dele um “fenômeno absoluto” é e deve ser estruturalmente heterogênea a essa aparência que é o próprio ver na ek-stasis. Essa, na medida em que Descartes acaba justamente de recusar a sua visibilidade como duvidosa, não é mais e não poderá ser um fundamento suficiente para a fenomenalidade pura e para a verdade que lhe pertence por princípio.

Assim também, quando Descartes declara que, “no mínimo, parece-me que eu vejo” não significa “eu penso que eu vejo”, como se videre fosse o cogitatum do qual videor seria o cogito  . Tal deveria ser, todavia, o sentido da proposição se videor fosse homogêneo a videre, se a parecença [semblence] que o habita fosse redutível à ek-stasis do videre. Estaria então na ek-stasis de um segundo ver como “ver que”, o qual nos entregaria o ser do primeiro a título de correlato intencional e como o que é visto. Uma tal interpretação não tem somente como efeito, como acaba de ser elucidado, arruinar definitivamente o cogito, ao substituir a certeza primitiva do “pensamento” pela incerteza do ver, mas ela tem contra si a crítica geral ensaiada por [61] Descartes à reflexão que, longe de poder fundar a “certeza do pensamento”, deve, pelo contrário, apoiar-se nele e pressupô-lo. Como Ferdinand Alquié observa com precisão, “Descartes não nega a certeza da visão em favor do pensamento que se tem dela, o que afirma não é a consciência refletida de ver, mas antes a impressão imediata de ver” [1] – o que demonstra, com efeito, a continuação do texto: “parece-me que vejo, que ouço, que me aqueço, sendo isso o que em mim propriamente se denomina sentir, e, considerado de mais preciso, não é nada mais do que pensar” [2].

No sentir, pois, Descartes decifra a essência originária do aparecer expresso no videor e interpretado como o último fundamento, é como sentir que o pensamento se desvencilha invencivelmente com a fulguração de uma manifestação que exibe a si mesma no que é e na qual a epoché reconhece o começo radical que procurava. Descartes não deixou de afirmar que sentimos nosso pensamento, sentimos que vemos, que ouvimos, que nos aquecemos. O ser é justamente definido por esse sentir primitivo, porquanto esse sentir é o que é, por essa aparência pura idêntica a si mesma e a esse ser que esse justamente define. Eu sinto que penso, logo eu sou. “Ver é pensar que se vê — “quando vejo ou (o que não distingo mais) quando penso ver…” [3] — mas pensar que se vê é sentir que se vê. Videor, em videre videor, designa esse sentir imanente ao ver e que faz dele um ver efetivo, um ver que se sente ver. O texto de Princípios (I, 9) não é menos explícito: ao substituir, na epoché, a marcha que se faz com as pernas e o ver que se vê com os olhos pelo videor originário do sentir, que faz com que o ver seja um sentir que se vê e a marcha um sentir que se marcha, Descartes declara categoricamente: “Pelo contrário, quando refiro-me somente à ação de meu pensamento ou de meu sentimento, quer dizer, do conhecimento que está em mim, que faz com me pareça que vejo ou que ande, essa conclusão é tão absolutamente verdadeira que não poderia duvidar dela, posto que se refere à alma a qual unicamente tem a faculdade de sentir ou mesmo de pensar de qualquer modo que seja” [4]. Da mesma maneira, a carta a Plempius de 3 de outubro de 1637 opõe à visão dos animais, que exprime somente a impressão sobre a retina de imagens que determinam os movimentos, a visão que é nossa na medida em que a experienciamos [l’éprouvons] em sua efetuação — “dum sentimus nos videre” [5].


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[1FA, II, p. 422, nota 2.

[2Seconde Méditation, FA, II, p. 422 ; AT, XI, p. 23.

[3Seconde Méditation, FA, II, p. 428 ; AT, IX, p. 26.

[4FA, III, p. 96; AT, IX, p. 28.

[5FA, I, p. 786; AT, I, p. 413. Os primeiros cartesianos tinham compreendido essa imanência ao pensamento do sentir que lhe confere a efetividade fenomenológica, deixando-a surgir como um aparecer primitivo irredutível e imediato. Inspirando-se nas Réponses aux Sixièmes Objections, Dilly em seu tratado De l’âme des bêtes afirma que “quando vejo, minha visão faz sentir que ela é, sem que seja preciso outra coisa (p. 116-117). Apoiando-se essa vez sobre o De libro arbitrio de santo Agostinho, Régis declara que “a alma não vê nada pelo sentido que não se apercebe que o vê” e que assim “a alma conhece suas sensações por si mesmas” (Système de philosophie, I, p. 150), proposição estendida ao pensamento em geral e a todos os pensamentos, os quais são “conhecidos por si mesmos”. Sobre isso, cf. Geneviève Lewis, Le problème de l’inconscient et le cartésianisme, Paris, PUF, 1960, p. 107-123).