O que é ver? O olho humano, tornado cego pela redução, colocado entre parêntesis, e reconhecido incapaz de cumprir a visão, converteu essa visão em sua natureza, no puro fato de ver, o qual pressupõe um horizonte de visibilidade, uma luz transcendental que Descartes “denomina” luz natural. A coisas e, notadamente, as essências matemáticas, podem ser vistas porque estão mergulhadas nessa luz e são esclarecidas por ela. Ver é olhar “em direção a” e atingir o que se tem diante do olhar, de tal maneira que é somente pela ob-jeção do que é assim lançado e posto “diante de” que esse último, o que é lançado, encontra-se simultânea e identicamente visto e olhado. Antes de ser a da coisa ou da essência, todavia, a ob-jeção do que é visto enquanto posto e situado “diante de” é, em primeiro lugar, a ob-jeção do ser-posto-diante como tal, a ob-jeção do horizonte puro, ela é a abertura do aberto como diferença ontológica sobre a qual se funda toda presença ôntica. A ek-stasis é a condição de possibilidade do videre e de todo o ver em geral. Mas essa ek-stasis originária é bruscamente abandonada pela redução. O que lhe resta, então, o que pretende ainda reter em suas mãos?
At certe videre videor — No mínimo, parece-me que eu vejo. Descartes sustenta que essa visão, por mais falaciosa que seja, no mínimo, existe. Mas o que é existir? Segundo a pressuposição do cartesianismo do começo, existir, ser significa aparecer, manifestar-se. Videor não designa nada mais do que isso. Videor designa a parecença [semblence] primitiva, a capacidade originária de aparecer e de se dar em virtude da qual a visão se manifesta e se dá originariamente a nós, qualquer que seja a credibilidade e a veracidade que lhe convém outorgar enquanto visão, independentemente daquele que vê ou acredita ver e de seu próprio ver. A partir desse momento, tão logo é capaz de fazer luz sobre si mesma, a questão crucial que traz em seu seio o cartesianismo, e talvez toda filosofia possível, ergue-se diante de nós de modo incontornável, inelutável: a parecença [semblence] que reina no videor e o torna possível como o aparecer originário, e como o aparecer a si em virtude do qual o videre se manifesta, em primeiro lugar, a si mesmo e se dá a nós — em virtude do qual me parece que vejo — será, por acaso, esta [60] parecença [semblence] primeira idêntica àquela em que o ver atinge seu objeto e se constitui propriamente como um ver? A essência originária da revelação será redutível à ek-stasis da diferença ontológica?
De modo algum. O que significará a duplicação do videre no videre videor, caso se trate justamente de uma simples duplicação, caso a essência visada há pouco no videre e a pressentida agora no videor seja a mesma? Em que o desdobramento dessa mesma essência será suscetível de lhe conferir o que lhe faltou no princípio, a saber, a possibilidade de constituir o começo, a possibilidade de se autofundar na certeza de si de sua autorrevelação? Pois a significação radical da crítica de Descartes não pode ser esquecida. Se o ver foi desacreditado em sua pretensão de estabelecer firmemente aquilo que vê, ainda que seja aquilo que vê clara e distintamente, se o foi, por conseguinte, em si mesmo, posto que essa visão talvez seja enganadora, talvez não seja um princípio de legitimação, de que modo então confiar a tarefa de se autolegitimar a esse ver e à sua própria capacidade? O ver se produz na ek-stasis como uma apreensão que não é somente duvidosa e confusa, mas também fundamentalmente errada (se tal for a vontade do Gênio Maligno). Mas se a aparência que retomava esse mesmo ver e o dá, primeiramente, a si mesmo antes que se dê seu objeto no vidente, se esta aparência primitiva, digamos, seja o próprio ver, ela redobra sua confusão e sua incerteza, em vez de poder descartá-las. Em outros termos, o princípio que foi destruído pela epoché não pode salvar a si mesmo: não tendo qualquer validade para fundar o que quer que seja, não poderá cumprir a obra prévia da autofundação. Assim a aparência primitiva que atravessa o videre e faz dele um “fenômeno absoluto” é e deve ser estruturalmente heterogênea a essa aparência que é o próprio ver na ek-stasis. Essa, na medida em que Descartes acaba justamente de recusar a sua visibilidade como duvidosa, não é mais e não poderá ser um fundamento suficiente para a fenomenalidade pura e para a verdade que lhe pertence por princípio.
Assim também, quando Descartes declara que, “no mínimo, parece-me que eu vejo” não significa “eu penso que eu vejo”, como se videre fosse o cogitatum do qual videor seria o cogito . Tal deveria ser, todavia, o sentido da proposição se videor fosse homogêneo a videre, se a parecença [semblence] que o habita fosse redutível à ek-stasis do videre. Estaria então na ek-stasis de um segundo ver como “ver que”, o qual nos entregaria o ser do primeiro a título de correlato intencional e como o que é visto. Uma tal interpretação não tem somente como efeito, como acaba de ser elucidado, arruinar definitivamente o cogito, ao substituir a certeza primitiva do “pensamento” pela incerteza do ver, mas ela tem contra si a crítica geral ensaiada por [61] Descartes à reflexão que, longe de poder fundar a “certeza do pensamento”, deve, pelo contrário, apoiar-se nele e pressupô-lo. Como Ferdinand Alquié observa com precisão, “Descartes não nega a certeza da visão em favor do pensamento que se tem dela, o que afirma não é a consciência refletida de ver, mas antes a impressão imediata de ver” [1] – o que demonstra, com efeito, a continuação do texto: “parece-me que vejo, que ouço, que me aqueço, sendo isso o que em mim propriamente se denomina sentir, e, considerado de mais preciso, não é nada mais do que pensar” [2].
No sentir, pois, Descartes decifra a essência originária do aparecer expresso no videor e interpretado como o último fundamento, é como sentir que o pensamento se desvencilha invencivelmente com a fulguração de uma manifestação que exibe a si mesma no que é e na qual a epoché reconhece o começo radical que procurava. Descartes não deixou de afirmar que sentimos nosso pensamento, sentimos que vemos, que ouvimos, que nos aquecemos. O ser é justamente definido por esse sentir primitivo, porquanto esse sentir é o que é, por essa aparência pura idêntica a si mesma e a esse ser que esse justamente define. Eu sinto que penso, logo eu sou. “Ver é pensar que se vê — “quando vejo ou (o que não distingo mais) quando penso ver…” [3] — mas pensar que se vê é sentir que se vê. Videor, em videre videor, designa esse sentir imanente ao ver e que faz dele um ver efetivo, um ver que se sente ver. O texto de Princípios (I, 9) não é menos explícito: ao substituir, na epoché, a marcha que se faz com as pernas e o ver que se vê com os olhos pelo videor originário do sentir, que faz com que o ver seja um sentir que se vê e a marcha um sentir que se marcha, Descartes declara categoricamente: “Pelo contrário, quando refiro-me somente à ação de meu pensamento ou de meu sentimento, quer dizer, do conhecimento que está em mim, que faz com me pareça que vejo ou que ande, essa conclusão é tão absolutamente verdadeira que não poderia duvidar dela, posto que se refere à alma a qual unicamente tem a faculdade de sentir ou mesmo de pensar de qualquer modo que seja” [4]. Da mesma maneira, a carta a Plempius de 3 de outubro de 1637 opõe à visão dos animais, que exprime somente a impressão sobre a retina de imagens que determinam os movimentos, a visão que é nossa na medida em que a experienciamos [l’éprouvons] em sua efetuação — “dum sentimus nos videre” [5].