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Genealogia da psicanálise

Henry (GP:347-350) – o inconsciente [Unbewusstheit]

O Símio do Homem

quarta-feira 20 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

Estranha doutrina [a psicanálise] que começa escandalosamente pela recusa do primado tradicional da consciência, em proveito de um inconsciente que a determina inteiramente, para declarar, em seguida, que nem um nem outro, nem o fato de ser-consciente considerado em si mesmo, nem o de não sê-lo, importam verdadeiramente! E isto embora a conversão do segundo no primeiro, do inconsciente no consciente, constitua, ao mesmo tempo, o fim de sua terapia e de sua condição.

Mas o descrédito dado ao inconsciente enquanto tal por uma teoria que se define por ele e crê, mais ou menos, tê-lo inventado, é menos paradoxal do que lhe parece. O puro fato, pois, de ser inconsciente considerado em si mesmo só é vazio porquanto o conceito antitético, a partir do qual é construído, permanece ele mesmo formal  , designando a consciência pura em geral, o aparecer, sem que nada seja dito sobre o que constitui o ser consciente, a saber, a natureza desse aparecer, a efetividade e a substancialidade fenomenológica da fenomenalidade pura como tal. Recordemos esta confissão desconcertante de Freud  : “Não há necessidade de explicar aqui o que nós denominamos consciente e que é a consciência mesma dos filósofos e a do grande público” [1]. É a ausência de qualquer elaboração ontológica da essência da fenomenalidade que leva, correlativamente, à indeterminação total do conceito ontológico do inconsciente e ao seu abandono da parte [330] de Freud em proveito dos diversos conteúdos empíricos que vão tomar seu lugar e servir para defini-lo: experiências infantis, representações recalcadas, pulsões etc. Assim se cumpre, com a substituição do sistema ics pela qualidade “inconsciente”, ela mesma correlativa da qualidade “consciente”, uma queda do ontológico no ôntico que vai laminar a psicanálise e, retirando-lhe sua significação filosófica implícita, fazer dela uma psicologia grosseira, enviscada na facticidade e no naturalismo, incapaz de produzir um conhecimento apriorístico qualquer, condenada ao erro desde o momento em que se tratar para ela de afrontar questões principiais como essa, incontornável para ela, da relação do consciente e do inconsciente, que pressupõe, em todo caso, a relação ontológica do consciente como tal e do inconsciente como tal, não sendo nem possível nem concebível sem ela.

Que significa, então, o inconsciente do ponto de vista ontológico? Qual o alcance filosófico da psicanálise antes da sua queda no naturalismo ôntico? As investigações que temos prosseguido situam-nos diante dessa série de evidências: a consciência à qual a psicanálise atribui intransponíveis limites, é a consciência do pensamento clássico, é a representação e o que lhe serve de fundamento, a fenomenalidade extática que encontra a condição de sua expansão no processo de exteriorização da exterioridade, na transcendência de um mundo. A intuição implícita, mas decisiva da psicanálise, a razão do eco imenso que ela encontrou apesar da insuficiência de seu aparelho conceitual, é que a essência da psique não reside no devir visível do mundo nem muito menos no que assim advém à condição de ob-jeto. Enquanto recusa radical da fenomenalidade extática assim como da pretensão de definir por ela a essência da psique, o inconsciente assegura no homem a guarda de seu ser mais íntimo, o inconsciente é o nome da vida. A esse respeito, Freud se situa no rastro direto de Schopenhauer   e de Nietzsche   (de Descartes   também, porquanto a “alma” chega a sua essência, na redução radical das duas primeiras Meditações, pela recusa fora dela de toda dimensão mundana e da mundanidade como tal), pertence a essa corrente subterrânea que, no seio mesmo de uma filosofia que confia o ser à exterioridade, ao conhecimento e finalmente à ciência, trabalha com obstinação para reconhecer e para preservar, pelo contrário, o domínio do invisível, a fase oculta das coisas. [2]

Mas logo que o inconsciente é apercebido na positividade de sua essência ontológica primitiva, a sua significação desdobra-se e o conceito [331] dito formal e vazio exige uma elucidação complexa. Com efeito, o inconsciente não é somente o outro da representação, o nome da vida. Na própria esfera da representação e em sua essência própria, pertencem, mostrouse, um horizonte de não-presença, a possibilidade principial em que tudo o que se mostra nela, também dela se retira dela e dela se oculta. Mas a possibilidade, ou antes, a necessidade para o representado de não mais sê-lo, para todo conteúdo ôntico, portanto, de desaparecer, enraíza-se na lei originária da desaparição que afeta toda presença extática como tal, de tal maneira que é o lugar mesmo da luz que se envolve de sombra e que o ente só esvaece continuamente no inconsciente pelo efeito de uma lei que não é, no início, a sua.

Assim o conceito ontológico de inconsciente reveste necessariamente em virtude da estruturação da fenomenalidade pura e de sua divisão segundo as dimensões co-originárias da representação e da vida, duas significações fundamentalmente diferentes consoantes o que se refere a uma ou a outra. Examinando mais de perto o inconsciente, tal como é tomado habitualmente enquanto negação pura e simples da fenomenalidade, enquanto consciência barrada , só se entende de que modo a sua relação com a consciência representativa, é sua luz que, todavia, acaba por abolir, enquanto lhe pertence como seu limite, como o horizonte de não-presença, que circunscreve toda presença extática e a determina como essencialmente finita. É essa co-pertença da presença e da não-presença extáticas que funda a incessante passagem de uma na outra em virtude da qual toda aparição no mundo é identicamente uma desaparição, assim como é sobre o fundo de uma tal co-pertença enquanto lei ontológica pura, que repousa o destino de tudo o que está aí, o de nascer e de morrer. A questão, essencial no freudismo, da transformação do inconsciente no consciente e, reciprocamente, do consciente no inconsciente encontra aqui sua condição apriorística de possibilidade enquanto possibilidade ontológica. Em conformidade com ela, semelhante transformação é, ao mesmo tempo, reversível e absolutamente livre, todo conteúdo inconsciente pode revestir, também, a qualidade da consciência e entrar em sua luz, todo conteúdo consciente está destinado a sair dela para retornar ao inconsciente.

Com esse inconsciente que denominaremos para simplificar de inconsciente da representação (ics = cs), não tem nada haver o inconsciente que se refere secretamente à essência da vida. A barra colocada aqui sobre a fenomenalidade concerne justamente apenas à fenomenalidade da representação e a sua recusa libera a dimensão originária do aparecer onde o ser se revela a si mesmo fora e independentemente da ek-stasis, na imanência radical de sua autoafecção enquanto vida. Como o ser segundo [332] a essência originária de seu autoaparecer expulsa de si a ek-stasis, a possibilidade dele se mostrar nela é excluída por princípio. A questão, essencial no freudismo, da transformação recíproca do consciente e do inconsciente um no outro recebe agora um solução totalmente diferente: de possível ela tornou-se justamente impossível . O mistério do duplo destino atribuído aos conteúdos inconscientes para uns submeter-se, em condições convenientes, ao devir-consciente, no caso de outros, de se lhe recusar obstinadamente – esclarece-se agora. A existência dos segundos não precisa ser explicada por algum processo ôntico inventado para esse fim, por um recalque primário ele mesmo misterioso. Tampouco pode ficar apenas como uma constatação, como uma propriedade factícia de certos representantes de pulsões: ela se enraíza em uma prescrição de ordem ontológica, é o estatuto da vida que ela formula. Assim o discurso freudiano sobre o inconsciente, longe de surgir do único trabalho de análise e como seu resultado, refere-se secretamente às estruturas fundamentais de ser que expõe à sua maneira. É o que importa estabelecer com mais precisão.


Ver online : Michel Henry


HENRY, Michel. Genealogia da psicanálise. O começo perdido. Tr. Rodrigo Vieira Marques. Curitiba: Editora UFPR, 2009.

HENRY, M. Généalogie de la psychanalyse: le commencement perdu. 2e éd ed. Paris: Pr. Univ. de France, 2003.


[1Abrégé de psychanalyse, op. cit., p. 22 ; GW, XVII, p. 81.

[2É porque a crença na ciência e o que é preciso denominar o cientificismo de Freud estão em
contradição com sua intuição mais profunda.