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A Obra de Arte

Haar (2000:87-92) – A relação mundo-terra em Heidegger

terça-feira 5 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

O conflito entre a terra e o mundo é impossível de ser apaziguado. O mundo exige a clarificação das formas, espirituais e materiais: ele quer que tudo seja signo e significante. A terra exige o obscurecimento das formas, o nascimento dos símbolos. É o combate do dia e da noite.

Sem a obra, este combate, sempre mais “velho” do que ela, permanecería latente. O que ela deixa adivinhar sob suas figuras audíveis ou visíveis, sob o percurso de uma melodia, sob o arabesco de um desenho, sob tal ou qual junção de cores, é uma fenda (Riss  ) invisível ou o elo rasgante que une terra e mundo. “O equilíbrio da obra que repousa em si mesma tem sua essência na intimidade do combate.” [1] Toda obra seria, assim, um terceiro termo, [87] e até mesmo a mais feliz seria a resolução sempre provisória de uma tensão dolorosa. A brecha ontológica resolve-se e se expressa no retraçar de um traço que dá lugar a uma figura. Aproximar as duas potências adversas, inscrever um mundo em uma terra, é esta a essência do trabalho artístico. Razão por que este trabalho não pode de maneira alguma ser reduzido a um trabalho artesanal, em que o artesão controla e combina perfeitamente a fabricação. A criação artística é o eco deste combate originário, em que se disputa a partilha entre o que está a descoberto, acessível, e o que está velado, encoberto. Pois o combate terra-mundo depende de um combate mais profundo ainda entre o clarão que brilha (Lichtung  ) e o oculto ou a dissimulação (Verbergung  ), combate este que se trava na essência da verdade concebida como desvelamento ou desvendamento (Unverborgenheit  ). A obra de arte é tudo, exceto uma fabricação arbitrária e uma ficção. Ela só é uma obra porque nela aparece a relação mundo-terra, clarão-recolhimento (manifesto-oculto), relação que constitui a essência da verdade. A obra não é verdadeira por imitar alguma realidade exterior, ôntica, ou alguma dimensão interior (a do sentimento, segundo Hegel  ), e sim porque ela incorpora, encarna em um ente, a relação de desvelamento. “Instalando um mundo e fazendo vir à terra, a obra é a batalha em que se conquista o desvelamento de um ente em seu conjunto, a verdade.” [2] [88] A verdade não se institui somente na arte, mas também na radicalidade do pensamento filosófico, ou ainda na fundação de um Estado, ou no que é enigmaticamente chamado de um “sacrifício autêntico”.

O artista obedece à verdade sobre a qual ele não decide e que tem por si mesma uma tendência (Zug) que a leva à obra, isto é, à encarnação ou à instituição. Nessa instituição, a terra desempenha o papel central. No entanto, mesmo quando a terra é sobretudo a base não revelada que se recolhe e se faz esquecer, ela não se identifica com o que não pode ser revelado. Há também do lado do mundo, a todo momento, em cada época, uma dimensão inacessível, um recolhimento. O que o mundo nos dissimula, justamente sob suas evidências mais constritivas, faz parte da verdade em seu recolhimento e, portanto, do que a arte pode tornar manifesto, desde que ela esteja inscrita em uma terra. Uma das dificuldades de “A origem da obra de arte” é que as duas relações mundo-terra e clarão-recolhimento não podem ser superpostas. E exatamente a obra de arte que, modificando o equilíbrio habitual dessas relações, manifesta uma verdade maior. A obra na realidade faz aparecer a terra como terra, ela realiza o impossível, faz vir à tona, em aberto, o que não está revelado. “A fenda (Riss) deve reconstituir-se na teimosa solidez da pedra, na muda [89] dureza da madeira, no sombrio brilho das cores. É na medida em que a terra retoma em si a fenda que esta última é primeiro estabelecida no aberto e assim colocada, isto é, imposta ao que emerge no aberto, como que se recusando e preservando-se. A figura (Gestalt) é o combate travado contra a fenda, por ele recolocado na terra e por ele instituído.” [3]

A obra mostra a terra: a pedra, a madeira, as cores, mas também os sons da música ou da língua, como tais; mas, ao fazê-lo, ela não explora a terra como uma matéria submetida a uma forma. Ao contrário do utensílio, cujo material não se faz notar, desaparece na utilidade, a obra faz ressaltar expressamente sua própria dimensão “terrestre”. Como já demonstrara Valéry [4], o que distingue um poema de um trecho comum de prosa é um movimento cadenciado pelo qual a atenção às palavras se desloca, primeiro normalmente, de uma sonoridade a uma significação, para voltar, indefinidamente e de maneira não-habitual, àquela sonoridade, como que a um outro sentido, inesgotável e misterioso. Mas esta quase independência, esta emancipação do material-terra (as cores da pintura, os sons da poesia), não caracterizariam mais a arte moderna (por exemplo, a pintura abstrata) [90] que a arte tradicional? Heidegger aparentemente não crê nisso. Para ele, toda obra faz explodir o quadro do que é habitual e ordinariamente admitido. Toda obra digna deste nome perturba, é fora da norma, e, por isso, se deixamos de tomá-la como objeto de estudo ou de prazer, ela é capaz de “transformar as relações ordinárias com o mundo e a terra”. [5] O choque que provoca, então, a obra não é mais o de uma “experiência estética”, é o do advento da verdade, do momento em que a História começa ou recomeça. Pois toda obra tem uma dimensão abrupta, inicial, auroral, porque ela repete ou retoma a relação mundo-terra à qual estamos incessantemente expostos, mas que, sob a pressão do cotidiano, seguidamente esquecemos. A arte nos devolve mundo e terra em estado nascente, isto é, com tudo que eles ainda têm de indeterminado, de desmesurado e inquietante.

Quanto mais inquietante é o mundo, mais terrível e estranha é a arte. Se, por efeito da técnica, que neutraliza todas as diferenças, em particular a do próximo e do distante, nosso mundo tornou-se um “não-mundo”, não há por que espantar-nos de que a arte se tenha tornado uma não-arte ou antiarte. Heidegger não o diz expressamente, pois a situação poderia ser ainda mais grave: a arte poderia realmente estar morta. Lembrando [91] a expressão de Hegel: “A arte é para nós uma coisa do passado”, ele comenta que, de qualquer modo, a questão de saber “se a arte ainda é, ou se não é mais” um modo decisivo de advento da verdade permanece como uma questão em aberto.

O fato de uma obra pertencer ao que homem algum, por mais genial que seja, pode criar — uma terra e um mundo —, rompe com o primado romântico do artista-demiurgo, que modelaria uma matéria inerte ao sabor da própria inspiração. É a verdade colocando-se ela mesma no lugar da obra que cria o artista e não o inverso.

Enfim, toda obra, para existir e para brilhar precisa de uma comunidade humana que a receba e preserve. Sem essa preservação fiel, e deliberada, que não é um “culto”, a obra recai no esquecimento. Preservar uma obra não significa pô-la de lado em um museu, nem igualmente gozar de seus encantos, e sim saber e sobretudo querer preservar a perturbadora verdade que ela abre no cotidiano. O que a obra exige é um compromisso para com sua própria verdade. O artista está também duplamente afastado do enfoque central, pois estas duas coisas essenciais, a verdade a ser posta em obra e sua preservação, não vêm dele.


Ver online : Michel Haar


A obra de arte. Ensaio sobre a ontologia das obras. Tr. Maria Helena Kühner. São Paulo: Difel, 2000, p. 87-92


[1Heidegger, Chemins qui ne mènent nulle part, p. 54.

[2Ibid., p. 61 (tradução modificada).

[3Ibid., p. 71.

[4P. Valéry, “Poésie et pensée abstraite” (Poesia e pensamento abstrato), em Oeuvres, I, Col. “Bibliothèque de Ia Pleiade”, Gallimard, p. 1.314.

[5Heidegger, Chemins…, p. 74.