Página inicial > Hermenêutica > Gadamer, Hans-Georg (1900-2002) > Gadamer (VM): vida

Gadamer (VM): vida

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Já dessa segunda frase infere-se que Oetinger associa de antemão o significado humanista-político da palavra, com o conceito peripatético do sensus communis  . Em parte, a definição acima soa (immediato tactu et intuitu) à maneira da doutrina aristotélica do nous; a questão aristotélica da dynamis   comum, que reúne ver, ouvir etc., é por ele assumida e serve-lhe para a confirmação do verdadeiro segredo divino da VIDA. O segredo divino da VIDA é sua simplicidade. Caso o homem a tenha perdido através do pecado original, poderá ainda reencontrar a unidade e a simplicidade através do desígnio da graça de Deus operatio “logou  ”s. praesentia Dei   simplificai diversa in unum (162). A presença de Deus manifesta-se simplesmente na própria VIDA, nesse “sentido comum”, que diferencia tudo o que é vivo do que é morto — (o pólipo e a estrela do mar que, apesar de toda retaliação, voltam a se regenerar em um novo indivíduo, não são citados por Oetinger casualmente). No homem atua a mesma força de Deus como instinto e excitação interna, a fim de perceber indícios de Deus, e para reconhecer aquilo que tem o maior parentesco com a felicidade e a VIDA humana. Oetinger diferencia expressamente a suscetibilidade para as verdades comuns, que são úteis aos homens em todos os tempos e em todos os lugares, enquanto verdades “dos sentidos”, das racionais. O sentido comum é um complexo de instintos, isto é, um impulso natural sobre o qual repousa a verdadeira felicidade da VIDA, sendo, desse ponto de vista, um efeito da presença de Deus. De acordo com Leibniz  , os instintos não devem ser compreendidos como afetos, isto é, como confusae repraesentationes. Isso porque não são efêmeros, mas tendências enraizadas e possuem um poder ditatorial, divino e irresistível. O sensus communis, que se apoia neles, é de especial significação para o nosso conhecimento, justamente porque são uma dádiva de Deus. Oetinger escreve: “A ratio rege-se por leis, muitas vezes até mesmo sem Deus, o sentido sempre se rege com Deus. Tal como a natureza se diferencia da arte, assim também se diferencia o sentido da ratio. Deus atua através da natureza num progresso de crescimento concomitante, que se expande regularmente pelo todo — a arte, ao contrário, inicia-se com uma parte determinada qualquer… O sentido imita a natureza, a ratio imita a arte (247). VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Isso se mostra também no uso da linguagem. A redução de Kant  , do conceito de gênio ao artista, que tratamos acima, não conseguiu se impor. Ao contrário, no século XIX o conceito de gênio elevou-se a um conceito de valor universal e experimentou — em união com o conceito da criatividade — uma verdadeira apoteose. Era o conceito romântico-idealista da produção inconsciente, que suportou esse desenvolvimento e que alcançou uma enorme repercussão através de Schopenhauer   e da filosofia do inconsciente. É verdade que mostramos que uma tal posição preferencial sistemática do conceito do gênio em contraste com o conceito do gosto respondia, de forma alguma, à estética kantiana. Porém a preocupação essencial de Kant veio a produzir uma fundamentação da estética que é autônoma e liberta do padrão do conceito, e de maneira alguma chegou a colocar a questão relativa à verdade no âmbito da arte, mas, fundamentou o julgamento estético sobre o a priori   subjetivo do sentimento vital, a harmonia de nossa capacidade para “o conhecimento como tal”, que perfaz a essência comum do gosto e do gênio, anteposto ao irracionalismo e ao culto do gênio do século XIX. A doutrina de Kant sobre a “elevação do sentimento vital” no prazer estético promoveu o desenvolvimento do conceito “gênio” para um conceito de VIDA abrangente, principalmente depois que Fichte   havia elevado o ponto de vista do gênio e a produção genial a um ponto de vista universal e transcendental  . Assim aconteceu que o neokantianismo, na medida em que procurava derivar tudo que tivesse valor de objeto da subjetividade transcendental, terminou caracterizando o conceito de vivência como a genuína realidade do consciente. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

No entanto, mesmo nos primeiros trabalhos de Dilthey   nota-se uma certa insegurança no significado da palavra vivência. Verifica-se isso bastante bem, principalmente num trecho em que Dilthey, nas edições posteriores, faz desaparecer a palavra vivência: “Em correspondência ao que ele vivenciou e, de acordo com a sua ignorância do mundo, ele co-fantasiou como vivência”. De novo volta-se a falar de Rousseau. Mas uma vivência co-fantasiada já não quer se adequar corretamente ao sentido originário da palavra “vivenciar” — nem mesmo quanto ao uso que Dilthey deu à sua própria linguagem científica mais tarde, onde vivência significa justamente o imediatamente dado, que é o último material para toda a configuração de uma fantasia. A cunhagem da palavra “vivência” lembra, claramente, a crítica ao racionalismo do Aufklärung, que, partindo de Rousseau, deu validade ao conceito da VIDA. Deve ter sido a influência de Rousseau sobre o classicismo alemão que deu vigor ao padrão do “ser vivenciado”, possibilitando assim a formação da palavra “vivência”. O conceito da VIDA forma, porém, também o pano de fundo metafísico, que sustenta o pensamento especulativo do idealismo alemão, e que desempenha um papel fundamental tanto para Fichte como para Hegel  , mas também para Schleiermacher  . Em face da abstração do entendimento, bem como em face da particularidade da percepção ou da representação, esse conceito implica a vinculação à totalidade, e ao infinito. Isso é o que se pode perceber nitidamente no tom da palavra vivenciada até os nossos dias. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Havemos de ver que para o pensamento de Dilthey é de decisiva importância que não se denomine a “sensation” ou a percepção, como a última unidade do consciente, o que era natural para o kantianismo e mesmo para a teoria do conhecimento positivista do século XIX, até Ernst   Mach, já que Dilthey chama a isso de “vivência”. Ele delimita, assim, o ideal   construtivo de uma estrutura do conhecimento a partir de átomos de percepção e contrapõe a ele uma versão mais aguda do conceito do dado. A unidade da vivência (e não elementos psíquicos, sob os quais ela pode ser analisada) compõe a unidade real do dado. Dessa maneira, apresenta-se na teoria do conhecimento das ciências do espírito um conceito da VIDA que limita o modelo mecânico. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Esse conceito de VIDA é imaginado teleologicamente: VIDA é, para Dilthey, produtividade, sem mais nem menos. Na medida em que a VIDA se objetiva em imagens dos sentidos, todo o entendimento de sentido é “uma retro-transposição das objetivações da VIDA na vivacidade espiritual, da qual são procedentes”. É assim que o conceito da vivência forma o fundamento epistemológico para todo o conhecimento do que seja objetivo. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Vê-se assim que, em Dilthey, como em Husserl  , na filosofia da VIDA, tal como na fenomenologia, o conceito da vivência se mostra, de início, como um conceito puramente epistemológico. Em ambos ele é reivindicado com a sua significação teleológica, mas não é determinado conceitualmente. Que é a VIDA que se manifesta na vivência, significa apenas que é a última coisa a que tornamos a voltar. Para essa cunhagem conceitual, do ponto de vista do desempenho, a história da palavra forneceu uma certa legitimação. Pois vimos que uma significação condensadora e intensiva faz parte da formação da palavra vivência. Quando algo é denominado ou avaliado como uma vivência, isso ocorre através de sua significação associada à unidade de sentido total. O que vale como vivência é realçado tanto por outras vivências — nas quais se experimenta algo diferente — bem como pelo restante do decurso da VIDA — no qual “nada” é experimentado. O que vale como uma vivência não é mais meramente uma fugaz torrente passageira na torrente da VIDA consciente — é vista como unidade e ganha, através disso, uma nova maneira de ser una. Nesse sentido é muito compreensível que a palavra apareça na literatura biográfica e que se origine, ao final das contas, do uso autobiográfico. O que se pode denominar vivência constitui-se na lembrança. Aludimos com isso ao conteúdo significante que, para quem teve a vivência, fica como uma posse duradoura. É isso o que ainda legitima o discurso da vivência intencional e da estrutura teleológica, que o consciente possui. Por outro lado, porém, há no conceito da vivência também a contraposição da VIDA para com o conceito. A vivência possui uma acentuada imediaticidade, que se subtrai a todas as opiniões sobre o seu significado. Tudo o que foi vivenciado é auto-vivência e colabora para perfazer seu significado o fato de que este pertence à unidade do “auto”, contendo assim uma correlação insubstituível e imprescindível com o todo dessa VIDA. Nesse sentido e de acordo com a natureza da coisa, não desabrocha nele o que se pode obter por intermédio dele e se pode fixar como seu significado. A reflexão autobiográfica ou biográfica, em que se determina seu conteúdo significante, fica fundida no todo do movimento da VIDA e continua acompanhando-a ininterruptamente. Ser assim tão determinada, a ponto de a gente não conseguir dar conta dela, é, por assim dizer, a maneira de ser da vivência. Nietzsche   diz: “Nos homens profundos as vivências duram longo tempo”. Com isso ele quer dizer o seguinte: elas não são esquecidas rapidamente, sua elaboração é um longo processo e justamente nisso reside seu ser específico e seu significado e não somente no conteúdo, como tal, experimentado originariamente. O que denominamos enfaticamente de vivência significa pois algo inesquecível e insubstituível, que é basicamente inesgotável para uma determinação compreensível de seu significado. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

No mesmo ano de 1888, em que Natorp   se antepôs dessa maneira à psicologia dominante, foi publicado o primeiro livro de Henri Bergson  , Les données immédiates de la conscience, um ataque crítico contra a psicologia contemporânea, que, tão decididamente quanto Natorp, fazia sobressair o conceito da VIDA contra a tendência objetivante, e especialmente desordenadora da formação do conceito psicológico. Aqui encontram-se expressões muito semelhantes sobre o “consciente” e sua indivisível concreção, como se vê em Natorp. Para isso Bergson cunhou a expressão durée, que se tornaria famosa, e que proclama a absoluta continuidade do psíquico. Bergson a entende como organização, isto é, a determina a partir da maneira de ser do ser vivo (être vivant), no qual cada elemento é representativo do todo (représentatif du tout). A interpenetração interna de todos os elementos no consciente, compara ele à maneira pela qual se interpenetram, quando a ouvimos, todos os tons de uma melodia. Também Bergson defende o momento anticaracterístico do conceito da VIDA contra a ciência objetivadora. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Se pusermos à prova a exata determinação daquilo que aqui se chama VIDA e o que disso é atuante no conceito da vivência, teremos o seguinte: a relação da VIDA e da vivência não é a de um geral para um particular. A unidade da vivência, determinada pelo seu conteúdo intencional, encontra-se, antes, numa relação direta com o todo, com a totalidade da VIDA. Bergson fala da représentation do todo, e justamente assim é o conceito da relação recíproca, utilizado por Natorp, uma expressão para a relação “orgânica” entre a parte e o todo, que se encontra aqui. Foi principalmente Georg Simmel que analisou o conceito da VIDA sob esse aspecto, como “a VIDA estendendo seus tentáculos para além de si mesma”. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

O fato de que a contradição do profano e do sagrado se mostra como relativa, sob as nossas premissas, é algo que está perfeitamente em ordem. Basta nos lembrarmos do significado e da história do conceito da profanidade. Profano é o que está posto frente ao santuário. O conceito do profano e o conceito da profanação, que dele deriva, está sempre pressupondo a sacralidade. De fato, o oposto do profano e do sagrado no mundo da antiguidade, de onde procede, só pode ser relativo, já que o âmbito total da VIDA é ordenado e determinado pelo sagrado. Somente a partir do cristianismo torna-se possível compreender a profanização num sentido restrito. Porque somente o Novo Testamento desdemonizou de tal maneira o mundo, que se abriu espaço para a oposição pura e simples entre o profano e o religioso. A promessa da salvação da Igreja significa que o mundo é apenas ainda “este mundo”. A peculiaridade dessa reivindicação produz, ao mesmo tempo, a tensão entre a Igreja e o Estado, que conduz à ruína do mundo antigo, e, com isso, o conceito da profanidade alcança a sua verdadeira atualidade. Como se sabe, a tensão entre a Igreja e o Estado dominou toda a história da Idade Média. O aprofundamento espiritual do pensamento da igreja cristã acaba liberando o estado secular. E o significado histórico-mundial da alta Idade Média que forma o mundo profano, de tal maneira que dá sua cunhagem amplamente moderna ao conceito do profano. Mas isso não muda nada no fato de que a profanidade permaneceu um conceito jurídico-sacral e que só pode ser determinado a partir do sagrado. A profanidade consumada é um não-conceito. VERDADE E MÉTODO PARTE I 2

História universal, história do mundo — não são, na verdade, sumidades conceituais de natureza formal  , nas quais se intenta o todo do acontecer, mas, no pensamento histórico, o universo, enquanto criação divina, é elevado à consciência de si mesmo. Evidentemente que não se trata de uma consciência conceitual: o resultado último da ciência histórica é “sim-patia, co-ciência do todo”. Sobre este pano de fundo panteísta compreende-se bem a famosa frase de Ranke, segundo a qual ele mesmo desejaria acabar apagando-se. Obviamente que este auto-apagamento, como objeta Dilthey, representa a ampliação do eu (Selbst  ) a um universo interior. Todavia, não é por acaso que Ranke não completa essa reflexão, a qual leva Dilthey à sua fundamentação psicológica das ciências do espírito. Para Ranke, o auto-apagamento continua sendo uma forma de participação real. O conceito da participação não deve ser entendido como psicológico-subjetivo, mas tem de ser concebido a partir do conceito da VIDA que lhe é subjacente. Porque todos os fenômenos históricos são manifestações do todo da VIDA, participar deles é participar da VIDA. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Essa questão se intensifica se ponderarmos a cunhagem central com a qual Dilthey caracteriza a VIDA, esse fato básico da história. Como se sabe, ele fala do “trabalho formador de ideias, próprias da VIDA”. Não é fácil precisar em que se distingue isso, de Hegel. Por mais “insondável” que seja a fisionomia da VIDA, por mais que Dilthey faça troça desse aspecto demasiado amável da VIDA, que vê nela somente progresso da cultura — no entanto, na medida em que é compreendida na perspectiva das ideias que a formam, a VIDA é submetida a um esquema de interpretação teleológica e é pensada como espírito. Concorda com isso o fato de que, em seus últimos anos, Dilthey se apoia cada vez mais em Hegel e começa a falar de espírito onde antes dizia “VIDA”. Com isso ele não faz mais do que repetir um desenvolvimento conceitual que o próprio Hegel realizou. E, à luz desse fato, parece digno de nota o fato de que devamos a Dilthey o conhecimento dos chamados escritos teológicos da juventude de Hegel. Nesses materiais para a história do desenvolvimento do pensamento de Hegel aparece muito claramente, que ao conceito hegeliano de espírito, subjaz um conceito pneumático da VIDA. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

A ela corresponde também a transformação do conceito do espírito objetivo, que coloca a consciência histórica no lugar da metafísica. Mas aqui se apresenta a questão de se saber se a consciência histórica está realmente em condições de ocupar este posto, que em Hegel estava ocupado pelo saber absoluto do espírito que se concebe a si mesmo no conceito especulativo. O próprio Dilthey aponta o fato de que somente conhecemos historicamente porque nós mesmos somos históricos. Isso deveria representar uma facilitação epistemológica. Mas poderá sê-lo? É realmente correta a fórmula de Vico, tantas vezes citada? Não é isso uma transposição da experiência do espírito artístico do homem e para o mundo histórico, onde já não se pode falar de “fazer”, isto é, de planos e execuções face ao decurso das coisas? Aonde entra aqui a facilitação epistemológica? Não se torna, com isso, mais difícil? O condicionamento histórico da consciência não deveria representar, antes, uma barreira intransponível para sua própria consumação como saber histórico? Hegel podia crer que havia superado essa barreira com sua subsunção da história no saber absoluto. Mas se a VIDA é realmente criadora e inesgotável, tal como pensa Dilthey, a constante transformação do nexo de significado da história não terá, em última instância, um ideal utópico, que contém em si mesmo uma contradição? VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Entretanto, já em Husserl se verifica um momento que de fato ameaça despedaçar essa moldura. Sua posição é, na verdade, bem mais do que uma radicalização do idealismo transcendental, e para esse “mais” é característica a função que nele alcança o conceito “VIDA”. “VIDA” não é meramente o “ir vivendo” da atitude natural. “VIDA” é também e não menos a subjetividade transcendentalmente reduzida, que é a fonte de todas as objetivações. Assim, sob o título “VIDA” encontra-se o que Husserl destaca como sua contribuição própria à crítica da ingenuidade objetivista de toda a filosofia precedente. Aos seus olhos, ela consiste em haver revelado o caráter de aparência da controvérsia epistemológica habitual entre idealismo e realismo e, em seu lugar, em haver tematizado a atribuição interna de subjetividade e objetividade. É assim que se esclarece a formulação: “VIDA produtiva”. “A consideração radical do mundo é pura e sistemática consideração interior da subjetividade que se exterioriza a si mesma no ‘fora’. É como na unidade de um organismo vivo, o qual se pode observar e analisar de fora, mas que somente se pode compreender quando se retrocede até suas raízes ocultas…” Também o comportamento mundano do sujeito, deste modo, não é compreensível nas vivências conscientes e em sua intencionalidade, mas nos “desempenhos” anônimos da VIDA. A comparação do organismo, que Husserl aqui utiliza, é mais do que uma comparação. Como ele diz expressamente, quer ser tomado ao pé da letra. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Se acompanharmos essas e outras indicações linguísticas e conceituais parecidas, que se encontram de quando em quando em Husserl, sentimo-nos próximos do conceito especulativo da “VIDA” do idealismo alemão. O que Husserl pretende dizer é, sem dúvida, que não se deve pensar a subjetividade como oposta à objetividade, porque esse conceito de subjetividade estaria então sendo pensado de maneira objetivista. Sua fenomenologia transcendental pretende ser, ao contrário, uma “investigação de correlações”. Mas isso quer dizer que o primário é a relação, e que os “pólos” nos quais se desenrola estão circunscritos por ela, da mesma forma que o ser vivo circunscreve todas as suas manifestações vitais na unidade do seu ser orgânico. “A ingenuidade do discurso que fala da ‘objetividade’, que deixa totalmente fora de questão a subjetividade, a qual experimenta e conhece e é a única que produz de uma maneira verdadeiramente concreta; a ingenuidade do cientista da natureza e do mundo em geral, que é cego para o fato de que todas as verdades que ele ganha como objetivas, e mesmo o próprio mundo objetivo que é o substrato de suas fórmulas, é a sua própria configuração de VIDA, que se tornou nele mesmo — essa ingenuidade deixa de ser possível na medida em que se coloca a VIDA como objeto de consideração”. É o que escreve Husserl com relação a Hume  . VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

O papel que aqui desempenha o conceito da VIDA tem uma clara correspondência com as investigações de Dilthey sobre o nexo vivencial. Da mesma forma que Dilthey não partia ali da vivência, a não ser para ganhar o conceito do nexo psíquico, Husserl mostra a unidade da corrente vivencial como prévia e essencialmente necessária face à individualidade das vivências. A investigação temática da VIDA da consciência está obrigada a superar, assim como em Dilthey, o ponto de partida da vivência individual. Nessa perspectiva, existe entre os dois pensadores uma genuína comunidade. Ambos retrocedem à concreção da VIDA. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Não obstante, permanece a indagação de se saber se ambos chegam a fazer justiça às exigências especulativas contidas no conceito da VIDA. Dilthey quer derivar a construção do mundo histórico da reflexividade que é inerente à VIDA, enquanto que Husserl procura derivar a constituição do mundo histórico a partir da “VIDA da consciência”. E a pergunta a ser feita é se em ambos os casos o autêntico conteúdo do conceito de VIDA não permanece ignorado através do esquema epistemológico de uma tal derivação a partir dos dados últimos da consciência. O que levanta essa questão é, sobretudo, as dificuldades que nos coloca o problema da intersubjetividade e a compreensão do eu estranho. Nisso a dificuldade parece a mesma, tanto em Husserl como em Dilthey. Os dados imanentes da consciência, examinada reflexivamente, não contêm o tu de maneira imediata e originária. Husserl tem toda a razão quando destaca que o tu não possui essa espécie de transcendência imanente, que é princípio dos objetos do mundo da experiência externa. Pois todo tu é um alter ego  , isto é, é compreendido a partir do ego e, não obstante, é compreendido também como separado dele, e no modo do próprio ego, como autônomo. Em suas laboriosas investigações, Husserl procurou esclarecer a analogia   do eu e do tu — que Dilthey interpreta de uma maneira puramente psicológica, através da conclusão analógica da empatia — pelo caminho da intersubjetividade do mundo comum. Foi suficientemente consequente para não restringir, o mínimo que fosse, a primazia epistemológica da subjetividade transcendental. Todavia, o recurso ontológico é nele o mesmo que em Dilthey. O “outro” aparece inicialmente como uma coisa da percepção, que mais tarde “se converte”, por empatia, num tu. E verdade que em Husserl esse conceito da empatia tem uma referência puramente transcendental, no entanto está orientado para a interioridade (Innesein) da autoconsciência e não explicita a orientação segundo o âmbito funcional da VIDA, que ultrapassa em muito a consciência, e ao qual ele pretende retroceder. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Na realidade, o conteúdo especulativo do conceito de VIDA, em ambos os autores, fica sem ser desenvolvido. Dilthey objetiva somente opor polemicamente o ponto de vista ao pensamento metafísico, e Husserl não possui a mínima noção da conexão desse conceito com a tradição metafísica, em particular com o idealismo especulativo. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Ele oferece exatamente o que acima sentimos fazer falta em Dilthey e Husserl. Entre o idealismo especulativo e o novo ponto de vista da experiência de seu século estende-se uma ponte, no sentido de que o conceito da VIDA é apresentado como o que abrange ambas as direções. A análise da vitalidade, que constitui o ponto de partida de Yorck, por mais especulativo que soe, inclui o modo de pensar das ciências da natureza próprio de seu século — explicitamente, o conceito da VIDA de Darwin. VIDA é auto-afirmação. Essa é a base. A estrutura da vitalidade consiste em ser julgamento, ou seja, afirmar-se a si mesmo como unidade na participação e articulação de si mesmo. Mas o julgamento mostra-se também como a essência da autoconsciência, pois mesmo quando ela se dirime constantemente no si-próprio e no outro, sua consistência, no entanto — enquanto ser vivo — se mantém no jogo e contra-jogo desses seus fatores constitutivos. Pode-se dizer dela o que se afirma de toda VIDA, que é prova, isto é, experimento. “Espontaneidade e dependência são os caracteres básicos da consciência; são constitutivos tanto no âmbito da articulação somática como da psíquica, do mesmo modo que sem objetividade não existiria nem o ver ou o sentir corporal, nem tampouco o imaginar, o querer ou o experimentar”. Também a consciência deve ser entendida como um comportamento vital. Essa é a exigência metódica fundamental que Yorck coloca à filosofia e na qual se considera uno com Dilthey. E a esse alicerce oculto (Husserl diria: sobre esse desempenho oculto) há que se reconduzir o pensamento. Para isso torna-se necessário o esforço da reflexão filosófica. Pois a filosofia age opondo-se à tendência da VIDA. Yorck escreve: “O fato é que o nosso pensamento se move nos resultados da consciência” (ou seja, o pensamento não tem consciência da relação real desses “resultados” com o comportamento vital, sobre o qual repousam os mesmos). “A diremptio alcançada é aquele pressuposto”. O conde Yorck quer dizer com isso que os resultados do pensamento somente são resultados, na medida em que se encontrem separados e se deixem separar do comportamento vital. A partir daí o conde Yorck conclui que a filosofia tem de reverter essa divisão. Tem de repetir, na direção inversa, o experimento da VIDA “com o fim de reconhecer as relações que condicionam os resultados da VIDA”. Isso pode estar formulado de uma maneira muito objetivista e natural-científica, e a teoria husserliana da redução poderia apelar, diante disso, à sua forma de pensar estritamente transcendental. Na verdade, nas reflexões de Yorck, ousadas e conscientes de seus objetivos, não somente se mostra com grande clareza a tendência comum a Dilthey e a Husserl, senão que nelas ele aparece como nitidamente superior a estes. Pois, aqui, o pensamento prossegue realmente o nível da filosofia da identidade do idealismo estético e, com isso, torna-se evidente a procedência oculta do conceito da VIDA de que estão em busca Dilthey e Husserl. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Se continuarmos a perseguir essa ideia de Yorck, tornar-se-á ainda mais nítida a persistência dos motivos idealistas. O que o conde Yorck expõe aqui é a correspondência estrutural de VIDA e autoconsciência, que Hegel já desenvolvera na sua Fenomenologia. Já nos últimos anos de Hegel em Frankfurt, nos restos de manuscritos conservados, pode ser mostrada a importância central que possui o conceito da VIDA para a sua filosofia. Na sua Fenomenologia é o fenômeno da VIDA o que encaminha a decisiva transição de consciência à autoconsciência — e esse não é certamente um nexo artificial. Pois VIDA e autoconsciência têm realmente uma certa analogia. A VIDA se determina pelo fato de que o ser vivo se diferencia a si mesmo do mundo em que vive e ao qual permanece unido, e se mantém nessa sua auto-diferenciação. A auto-conservação do ser vivo se nutre do que lhe é estranho. O fato fundamental de estar vivo é a assimilação. Por consequência, a diferenciação é ao mesmo tempo uma não-diferenciação. O estranho é apropriado. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Evidentemente que o conceito de mundo circundante foi usado no princípio só para o mundo circundante humano. O mundo circundante é o “milieu  ” em que vivemos, e a influência deste sobre o nosso caráter e o nosso modo de VIDA é o que lhe dá a significação. O homem não é independente do aspecto particular que o mundo lhe mostra. Desse modo o conceito de mundo circundante é, na origem, um conceito social que expressa a dependência do indivíduo com respeito ao mundo social, e que, por conseguinte, se refere somente ao homem. Num sentido mais amplo, esse conceito do mundo circundante pode ser aplicado a todos os seres vivos, para resumir as condições de que depende sua existência. Com isso, torna-se claro que, diferentemente de todos os demais seres vivos, o homem tem “mundo”, na medida em que aqueles não têm uma relação com o mundo no mesmo sentido, mas estão diretamente confiados ao seu mundo circundante. A expansão do conceito do mundo circundante a todos os seres vivos representa, pois, uma modificação de seu verdadeiro sentido. VERDADE E MÉTODO PARTE III 3

Como se cumpre esse trabalho da VIDA, formador de pensamentos? Dilthey fundamenta sua filosofia na experiência interna da compreensão, a qual nos abre a realidade que resiste ao conceito. Todo conhecimento histórico é uma tal compreensão. A compreensão não é, porém, somente o procedimento da ciência histórica, mas uma determinação fundamental do ser humano. Isso repousa sobre o fato de termos vivências, que nos são conscientes. Essas vivências configuram-se na “recordação” para a compreensão significativa. Dilthey apoiou-se aqui no pensamento romântico, ao reconhecer que esta compreensão significativa está estruturada de modo bem diferente do que o procedimento cognitivo das ciências da natureza. Aqui não se transita de um elemento para outro e deste para o próximo, para com isso abstrair-lhe o comum. Antes, a vivência singular já é sempre uma totalidade significativa, um nexo reunitivo. E por isso a vivência singular constitui uma parte da totalidade do decurso da VIDA. Apesar disso, seu significado está referido a essa totalidade de um modo todo próprio. Não é a última coisa vivenciada por alguém que consuma e determina o significado do nexo de VIDA. O sentido de um destino de VIDA é, antes, uma totalidade própria que se forma não a partir do final, mas de um centro formador de sentido. O significado do nexo não se forma em torno da última vivência, mas em torno da vivência decisiva. Um instante pode ser decisivo para toda uma VIDA. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 2

Em seu esforço para construir uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito, Dilthey encontrou uma forte oposição da escola epistemológica, que naquele momento também buscava fundamentar as mesmas ciências, partindo do ponto de vista neokantiano, ou seja, da filosofia dos valores desenvolvida por Windelband und Rickert O sujeito epistemológico pareceu-lhe ser uma abstração anêmica. Por mais que ele próprio estivesse entusiasmado pela busca de objetividade nas ciências do espírito, não poderia abstrair do fato de o sujeito conhecente, o historiador que compreende, não estar simplesmente postado frente ao seu objeto, a VIDA histórica, mas ser sustentado, ele próprio, pelo mesmo movimento da VIDA histórica. Sobretudo em seus últimos anos, Dilthey buscou cada vez mais fazer justiça à filosofia idealista da identidade, uma vez que no conceito idealístico do espírito estava pensada a mesma generalidade substancial entre sujeito e objeto, entre eu e tu, como ocorria em seu próprio conceito de VIDA. Aquilo que Georg Misch defendeu de modo tão agudo como ponto de vista da filosofia da VIDA contra Husserl e Heidegger partilhou com a fenomenologia tanto a crítica a um objetivismo histórico ingênuo quanto a sua justificação epistemológica através da filosofia dos valores vinda do sudoeste da Alemanha. Por mais evidente que tenha sido, a constituição do fato histórico, através da referência aos valores, não fez justiça às implicações do conhecimento histórico no acontecer histórico. VERDADE E METODO II ANEXOS 27