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Gadamer (VM): tarefa da compreensão

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Porém, uma tal descrição da compreensão que separa, significa que a configuração das ideias que procuramos compreender como discurso ou como texto não é compreendida com referência ao seu conteúdo objetivo, mas como uma configuração estética, como obra de arte ou "pensamento artístico". Se afirmarmos isso entenderemos por que aqui não se trata da relação com a coisa (em Schleiermacher   "o ser"). Schleiermacher segue as determinações fundamentais de Kant  , quando diz que o "pensamento artístico" "somente se distingue pelo maior ou menor prazer", e é propriamente "só o ato momentâneo do sujeito". A esta altura, é naturalmente a pressuposição, pela qual se colocou pela primeira vez a tarefa da compreensão que faz com que este "pensamento artístico" não seja um simples ato momentâneo, mas que se exterioriza. Schleiermacher vê no "pensamento artístico" momentos especiais da vida, nos quais dá-se um prazer tão grande que eles irrompem em exteriorização, mas mesmo assim — e, por mais que suscitem prazer nas "imagens originais das obras de arte" — continuam sendo um pensamento individual, livre combinação, não vinculada pelo ser. É exatamente isso que distingue os textos poéticos dos científicos. Schleiermacher quer dizer com isso, certamente, que o discurso poético não se submete ao padrão de entendimento sobre a coisa em causa, descrito acima, porque o que nele se diz não é dissociável do "como", da maneira de ser dito. Por exemplo, a guerra de Troia está no poema homérico — quem se volta para a realidade histórica da coisa em causa lê mais Homero   como discurso poético. Ninguém [192] quereria afirmar que o poema tenha ganho algo de realidade artística através das escavações dos arqueólogos. O que se deve compreender aqui não é precisamente um pensamento comum da coisa em causa, mas um pensamento individual, que, por sua essência, é combinação livre, expressão, livre exteriorização de uma essência individual. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

É também interessante falar de horizontes no âmbito da compreensão histórica, sobretudo quando nos referimos à pretensão da consciência histórica de ver o passado em seu próprio ser, não a partir de nossos padrões e preconceitos contemporâneos, mas a partir de seu próprio horizonte histórico. A tarefa da compreensão histórica inclui a exigência de ganhar em cada caso o horizonte histórico, a fim de que se mostre, assim, o que queremos compreender em suas verdadeiras medidas. Quem omitir esse deslocar-se ao horizonte histórico a partir do qual fala a tradição, estará sujeito a mal-entendidos com respeito ao significado dos conteúdos daquela. Nesse sentido, parece ser uma exigência hermenêutica justificada o fato de termos de nos colocar no lugar do outro para poder entendê-lo. Só que teremos de indagar então se esse lema não se torna devedor precisamente da compreensão que nos é exigida. Ocorre como no diálogo que mantemos com alguém com o único propósito de chegar a conhecê-lo, isto é, de termos uma ideia de sua posição e horizonte. Esse não é um verdadeiro diálogo; não se procura o entendimento sobre um tema, já que os conteúdos objetivos do diálogo não são mais que um meio para conhecer o horizonte do outro. Pense-se, por exemplo, numa situação de exame ou em determinadas formas de consultas médicas. A consciência histórica opera de um modo análogo, quando se desloca para a situação do passado e supõe ter assim seu verdadeiro horizonte histórico. E tal como no diálogo, o outro se torna compreensível em suas opiniões, a partir do momento em que se tornou reconhecida sua posição e horizonte, sem que, no entanto, isso implique no fato de que chegamos a nos entender com ele, para quem pensa historicamente, a tradição se torna compreensível em seu sentido, sem que nos entendamos com ela e nela. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

É assim que se coloca a verdadeira tarefa hermenêutica face aos textos escritos. Escrita é auto-alheamento. Sua superação, a leitura do texto, é pois a mais elevada tarefa da compreensão. Inclusive no que se refere ao simples inventário dos signos de uma inscrição, somente é possível vê-los e articulá-los corretamente quando se está em condição de retransformar o texto em linguagem. Não obstante, voltamos a recordar que essa recondução à linguagem produz sempre, ao mesmo tempo, uma relação com o que foi intencionado, com o assunto de que se fala. O processo da compreensão se move aqui, por inteiro, na esfera de sentido, mediada pela tradição linguística. Por isso, a tarefa hermenêutica, em relação com uma inscrição, só pode ser colocada quando já houver uma decifração supostamente correta. Os monumentos não escritos somente colocam tarefas hermenêuticas num sentido lato. Pois por si mesmos não são compreensíveis. O que significam é um problema de interpretação (Deutung  ), não de decifração e compreensão de sua literalidade. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Nietzsche   é certamente um testemunho extático, mas a experiência histórica que fizemos nos últimos cem anos com essa consciência histórica nos ensinou de modo impressionante que essa consciência, com sua pretensão a uma objetividade histórica, é acometida de dificuldades bem características. Um dos pontos mais [222] óbvios de nossa experiência científica é o fato de, com certeza inabalável, podermos subordinar as magistrais obras da investigação histórica — nas quais Ranke parece ter elevado a pretensão de auto-anulação da individualidade a uma espécie de perfeição — às tendências políticas de sua própria época. Quando lemos a história romana de Mommsen, sabemos quem pode tê-la escrito, isto é, qual a situação política de sua época que levou o historiador a compilar as vozes do passado numa formulação racional. Podemos comprovar isso também em Treitschke ou em Sybel, para citar apenas alguns exemplos marcantes da historiografia prussiana. Isso significa de imediato que a autoconcepção do método histórico não revela toda a realidade da experiência histórica. Poder controlar os preconceitos da própria atualidade para que não prejudiquem a compreensão dos testemunhos do passado é incontestavelmente um objetivo justificado. Mas o que assim se realiza não esgota toda a tarefa da compreensão do passado e sua tradição. Poderia ser, também — e o rastreamento dessa questão é na realidade uma das primeiras tarefas a serem feitas pela ciência histórica no exame crítico de sua autoconcepção — , que o que permite à investigação histórica aproximar-se desse ideal   de uma total anulação da individualidade não passe de matéria irrelevante, enquanto que os resultados da investigação realmente grandes e produtivos conservariam sempre algo da magia de um espelhamento imediato do presente no passado e do passado no presente. Também essa segunda experiência, que representa o ponto de partida de minha investigação, a ciência histórica, só revela uma parte do que é a verdadeira experiência, isto é, do que significa para nós o encontro com a tradição histórica, limitando-se a conhecer, assim, apenas numa configuração alienada. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

Ora, a objeção mais grave que se fez contra o meu esboço de uma filosofia hermenêutica foi a de que eu extraio o significado fundamental do entendimento presumivelmente a partir da vinculação que a linguagem tem com toda compreensão e todo acordo, legitimando assim um preconceito social em favor das relações vigentes. Pois bem, creio que está realmente correto e continua sendo uma ideia real o fato de que só se pode alcançar o acordo sobre a base de um entendimento originário e que a tarefa da compreensão e da interpretação não pode ser descrita como se a hermenêutica tivesse de superar a rasa incompreensibilidade de um texto herdado da tradição, ou que sua tarefa primeira fosse superar o engano produzido pelo mal-entendido. Isso não me parece correto nem no sentido da hermenêutica ocasional dos tempos primitivos, que não refletia sobre suas outras pressuposições, nem tampouco no sentido de Schleiermacher e da ruptura romântica com a tradição, para a qual o primeiro elemento de todo compreender é o mal-entendido. Todo acordo na linguagem não apenas pressupõe um entendimento sobre os significados da palavra e sobre as regras da língua falada. Em tudo que se pode discutir com sentido há, ao contrário, muitos elementos que permanecem incontestados, também com referência a "coisas". A minha insistência nesse ponto pareceria testemunhar uma tendência conservadora, desautorizando assim a tarefa crítico-emancipatória da reflexão hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.