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Gadamer (VM): problema da hermenêutica

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

As pesquisas que virão a seguir têm a ver com o problema da hermenêutica. O fenômeno da compreensão e da maneira correta de se interpretar o que se entendeu não é apenas, e em especial, um problema da doutrina dos métodos aplicados nas ciências do espírito. Sempre houve também, desde os tempos mais antigos, uma hermenêutica teológica e outra jurídica, cujo caráter não era tão acentuadamente científico e teórico, mas, muito mais, assinalado pelo comportamento prático correspondente e a serviço do juiz ou do clérigo instruído. Por isso, desde sua origem histórica, o problema da hermenêutica sempre esteve forçando os limites que lhe são impostos pelo conceito metodológico da moderna ciência. Entender e interpretar os textos não é somente um empenho da ciência, já que pertence claramente ao todo da experiência do homem no mundo. Na sua origem, o fenômeno hermenêutico não é, de forma alguma, um problema de método. O que importa a ele, em primeiro lugar, não é estruturação de um conhecimento seguro, que satisfaça aos ideais metodológicos da ciência — embora, sem dúvida, se trate também aqui do conhecimento e da verdade. Ao se compreender a tradição não se compreende apenas textos, mas também se adquirem juízos e se reconhecem verdades. Mas que conhecimento é esse? Que verdade é essa? VERDADE E MÉTODO Introdução

As pesquisas que virão a seguir têm a ver com o problema da hermenêutica. O fenômeno da compreensão e da maneira correta de se interpretar o que se entendeu não é apenas, e em especial, um problema da doutrina dos métodos aplicados nas ciências do espírito. Sempre houve também, desde os tempos mais antigos, uma hermenêutica teológica e outra jurídica, cujo caráter não era tão acentuadamente científico e teórico, mas, muito mais, assinalado pelo comportamento prático correspondente e a serviço do juiz ou do clérigo instruído. Por isso, desde sua origem histórica, o problema da hermenêutica sempre esteve forçando os limites que lhe são impostos pelo conceito metodológico da moderna ciência. Entender e interpretar os textos não é somente um empenho da ciência, já que pertence claramente ao todo da experiência do homem no mundo. Na sua origem, o fenômeno hermenêutico não é, de forma alguma, um problema de método. O que importa a ele, em primeiro lugar, não é estruturação de um conhecimento seguro, que satisfaça aos ideais metodológicos da ciência — embora, sem dúvida, se trate também aqui do conhecimento e da verdade. Ao se compreender a tradição não se compreende apenas textos, mas também se adquirem juízos e se reconhecem verdades. Mas que conhecimento é esse? Que verdade é essa? 5 VERDADE E MÉTODO Introdução

A aplicação à teologia de Lutero   reside no fato de que a reivindicação da fé existe desde a anunciação e que na pregação volta a ser validada sempre de novo. A palavra da pregação produz exatamente a mesma intermediação total que, de outro modo, cabe à ação cúltica — por exemplo, na santa missa. Ainda veremos que a palavra também é invocada noutras ocasiões, a fim de realizar a intermediação da simultaneidade, e que por isso, no problema da hermenêutica, cabe-lhe a condução. 685 VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

A disciplina clássica, que se ocupa da arte de compreender textos, é a hermenêutica. Se nossas ponderações são corretas, o verdadeiro problema da hermenêutica terá que se colocar, no entanto, de uma maneira totalmente diferente da habitual. Terá de apontar na mesma direção em que nossa crítica à consciência estática havia deslocado o problema da estética. A hermenêutica teria, até, de ser entendida então de uma maneira tão abrangente que teria de incluir em si toda esfera da arte e seu questionamento. Qualquer obra de arte, não apenas as literárias, tem que ser compreendida no mesmo sentido em que [170] se tem de compreender qualquer outro texto, e esse compreender requer gabarito para tal. Com isso a consciência hermenêutica adquire uma extensão tão abrangente, que ultrapassa a da consciência estética. A estética deve subordinar-se à hermenêutica. E este enunciado não se refere meramente à periferia do problema, mas vale antes de tudo para o conteúdo. E, inversamente, a hermenêutica tem de determinar-se, em seu conjunto, de maneira que faça justiça à experiência da arte. A compreensão deve ser entendida como parte da ocorrência de sentido, em que se formula e se realiza o sentido de todo enunciado, tanto dos da arte como dos de qualquer outro gênero de tradição. 913 VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Este sentido vivo e mesmo genial que Schleiermacher   caracteriza para a individualidade humana não deve ser tomado como uma característica individual que estivesse influindo, aqui na sua teoria. É, antes, a repulsa crítica contra tudo o que, na era do Aufklärung, se fazia passar por essência comum da humanidade, sob o título de "pensamentos racionais", o que leva necessariamente a determinar de uma maneira fundamentalmente nova a relação com a tradição. A arte de compreender é honrada com uma atenção teórica de princípio e com um cultivo universal, porque nem um consenso fundamentado biblicamente, nem racionalmente, não formam mais o fio condutor dogmático de toda compreensão de texto. Por isso é que importa a Schleiermacher proporcionar à reflexão hermenêutica uma motivação fundamental, que situe o problema da hermenêutica num horizonte que esta não havia conhecido até então. 971 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Para poder situar em seu pano de fundo correto a verdadeira virada que Schleiermacher dá à história da hermenêutica, começaremos com uma reflexão que nele não desempenha o menor papel, e que desde ele desapareceu por completo dos questionamentos da hermenêutica (coisa que também restringe de uma maneira muito peculiar o interesse   histórico de Dilthey   pela história da hermenêutica), que na verdade domina o problema da hermenêutica e só através da qual torna-se compreensível a posição que Schleiermacher ocupa na história da hermenêutica. Partiremos do lema: compreender significa, de princípio, entender-se uns com os outros. Compreensão é, de princípio, entendimento. Assim, os homens se entendem entre si, na maioria das vezes imediatamente, isto é, vão se pondo de acordo até chegar a um entendimento. Acordo é sempre, portanto, acordo sobre algo. Compreender-se é compreender-se em [184] algo. Já a linguagem mostra que o "sobre quê" e o "em quê" não são apenas um objeto qualquer do discurso, do qual a compreensão mútua pudesse prescindir ao buscar seu caminho, mas são, antes, caminho e meta do próprio compreender-se. E quando se pode dizer que duas pessoas se entendem, independentemente do "sobre quê" e do "em quê", isso quer dizer que não somente se entendem nisso ou naquilo, mas em todas as coisas essenciais que unem os homens. A compreensão só se converte numa tarefa especial no momento em que esta vida natural experimenta alguma distorção no co-visar do visado, que é um visar da coisa em causa comum. No momento em que se produz um mal-entendido, ou alguém manifesta uma opinião   que causa estranheza por ser incompreensível, é apenas aí que a vida natural fica tão inibida com relação à coisa em causa comum, que a opinião enquanto opinião, isto é, enquanto opinião do outro, do tu ou do texto, se converte num dado fixo. Mas mesmo assim, ainda se procura em geral chegar a um acordo, e não somente compreender. E isso, de tal modo, que se refaz o caminho em direção à coisa em causa. Só quando se mostram vãs todas essas idas e vindas, que perfazem a arte do diálogo, da argumentação, do perguntar e do responder, do objetar e do refutar, e que se realizam também face a um texto como diálogo interior da alma que busca a compreensão, far-se-á uma mudança no questionamento. Só então o esforço da compreensão vai perceber a individualidade do tu e considerar sua peculiaridade. Na medida em que se trata de uma língua estrangeira, o texto já será, isso não é mais do que uma condição prévia. O verdadeiro problema da compreensão aparece quando, no esforço de compreender um conteúdo, coloca-se a pergunta reflexiva de como o outro chegou à sua opinião. Pois é evidente que um questionamento como este anuncia uma forma de alteridade bem diferente, e significa, em último caso, a renúncia a um sentido comum. 973 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Examinemos agora mais de perto o que Schleiermacher quer dizer com essa equiparação. Pois obviamente, não pode tratar-se de pura e simples identificação. A reprodução sempre é essencialmente diferente da produção. É assim que Schleiermacher chega ao postulado, de que importa compreender um autor, melhor do que ele próprio teria se compreendido — uma fórmula que, desde então, tem sido repetida incessantemente, e em cujas interpretações cambiantes caracteriza-se toda a história da hermenêutica moderna. De fato, nesse postulado encerra-se o verdadeiro problema da hermenêutica. Por [196] isso valerá a pena que nos aproximemos um pouco mais do sentido dessa fórmula. 1039 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A questão é saber, se esse caso ideal   da "criação livre" pode ser tomado realmente como padrão para o problema da hermenêutica, e até se apenas a compreensão das obras de arte pode ser concebida suficientemente segundo esse padrão. Temos que questionar também se a frase: "importa compreender o autor melhor do que ele mesmo se compreendeu", permite que se reconheça ainda seu sentido original sob a premissa da estética do gênio ou se esta não a terá convertido em algo completamente novo. 1053 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Isso representa uma provocação para a hermenêutica tradicional. É verdade que na língua alemã a compreensão (Verstehen  ) designa também um saber fazer prático ("er versteht nicht   zu lesen" "ele não entende ler", o que significa tanto como: "ele fica perdido na leitura", ou seja, não sabe ler). Mas isso parece muito diferente do compreender orientado cognitivãmente no exercício da ciência. Obviamente, se se olha mais detidamente, surgem traços comuns: nos dois significados aparece a ideia de conhecer, entender do assunto. E mesmo aquele que "compreende" um texto (ou mesmo uma lei) não somente projetou-se a si mesmo a um sentido, comprendendo — no [265] esforço do compreender — mas que a compreensão alcançada representa o estado de uma nova liberdade espiritual. Implica a possibilidade de interpretar, detectar relações, extrair conclusões em todas as direções, que é o que constitui o entender do assunto dentro do terreno da compreensão dos textos. E isso vale também para aquele que entende de uma máquina, isto é, aquele que entende de como se deve tratar com ela, ou aquele que entende de um ofício, ferramenta: admitindo-se que a compreensão racional-finalista está sujeita a normas diferentes do que, p. ex., a compreensão de externalizações da vida ou textos, o que é verdade é que todo compreender acaba sendo um compreender-se. Enfim, também a compreensão de expressões se refere não somente à captação imediata do que contém a expressão, mas também ao descobrimento do que há para além da interioridade oculta, de maneira que se chega a conhecer esse oculto. Mas isso significa que a gente tem de se haver com isso. Nesse sentido vale para todos os casos que aquele que compreende se compreende, projeta-se a si mesmo rumo à possibilidades de si mesmo. A hermenêutica tradicional havia estreitado, de uma maneira inadequada, o horizonte de problemas a que pertence a compreensão. A ampliação que Heidegger empreende, para além de Dilthey, será, por essa mesma razão, fecunda também para o problema da hermenêutica. E verdade que já Dilthey havia rechaçado, para as ciências do espírito, os métodos das ciências da natureza, e que Husserl   havia qualificado de "absurda" a aplicação do conceito natural-científico de objetividade às ciências do espírito, estabelecendo a relatividade essencial de todo mundo histórico e de todo conhecimento histórico. Porém agora torna-se visível pela primeira vez a estrutura da compreensão histórica em toda sua fundamentação ontológica, sobre a base da futuridade existencial da pre-sença humana. 1438 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Nesse sentido, também nós nos reportamos ao sentido transcendental   do questionamento heideggeriano. Através da interpretação transcendental da compreensão de Heidegger o problema da hermenêutica ganha uma feição universal, e até, o surgimento de uma dimensão nova. A pertença do intérprete ao seu objeto, que não conseguia encontrar uma legitimação correta na reflexão da escola histórica, obtém agora, por fim, um sentido concretamente demonstrável e é tarefa da hermenêutica demonstrar este sentido. Também para a realização da compreensão que se dá nas ciências do espírito, vale a ideia de que a estrutura da pre-sença é um projeto lançado, e de que a pre-sença é, segundo a realização de seu próprio ser, compreender. A estrutura geral da compreensão atinge a sua concreção na compreensão histórica, na medida em que na própria compreensão tornam-se operantes as vinculações concretas de costume e tradição e as correspondentes possibilidades de seu próprio futuro. A pre-sença, que se projeta para seu poder-ser, é já sempre "sido". Este é o sentido do existencial do estar-lançado. O fato de que todo comportar-se livremente com respeito ao ser careça da possibilidade de retroceder para trás da facticidade deste ser, constitui a finesse da hermenêutica da facticidade e de sua oposição à investigação transcendental da constituição na fenomenologia de Husserl. A pre-sença já encontra [269] como uma premissa insuperável, o que torna possível e limita todo seu projetar. Essa estrutura existencial da pre-sença tem de encontrar sua cunhagem também na compreensão da tradição histórica, e por isso seguiremos em primeiro lugar a Heidegger. 1450 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Pelo contrário, todo aquele que "aplica" o direito se encontra em uma posição bem diferente. Na situação concreta ver-se-á obrigado, seguramente, a fazer concessões com respeito à lei num sentido estrito, mas não porque não seja justo. Fazendo concessões em face da lei não faz reduções à justiça, mas, pelo contrário, encontra um direito melhor. Em sua análise da epieikeia, a "equidade", Aristóteles   dá a isso uma expressão muito precisa: epieikeia é a correção da lei. Aristóteles mostra que toda lei se encontra numa tensão necessária com respeito à correção do atuar, porque é geral e não pode conter em si a realidade prática em toda a sua concreção. Já assinalamos essa problemática no princípio, a propósito da análise do juízo. É claro que o problema da hermenêutica jurídica encontra aqui seu verdadeiro lugar. A lei é sempre deficiente, não porque o seja por si mesma, mas porque frente ao ordenamento a que intencionam as leis, a realidade humana é sempre deficiente e não permite uma aplicação simples das mesmas. 1749 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Mas será necessário, antes de tudo, tornar consciente em primeiro lugar a força de imposição da filosofia da reflexão e admitir que os críticos de Hegel   tampouco foram capazes de romper o círculo mágico dessa reflexão. Somente estaremos em condições de liberar o problema da hermenêutica histórica das consequências híbridas do idealismo especulativo, se não nos contentarmos apenas com uma repulsa irracional a ele, mas soubermos reter a verdade do pensamento hegeliano. O que nos importa neste momento é pensar a consciência da história efeitual de maneira que na consciência do efeito a imediatez e superioridade da obra volte a se dissolver numa simples realidade reflexiva; e com isso, pensar uma realidade capaz de pôr limites à onipotência da reflexão. Este era justamente o ponto contra o qual se dirigia a crítica a Hegel e no qual, na verdade, o princípio da filosofia da reflexão continuou afirmando sua superioridade face a todos os seus críticos. 1873 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A refutação mítica de Platão   ao sofisma dialético, por mais evidente que pareça, não pode satisfazer, todavia, um pensamento moderno. Para Hegel já não há fundamentação mítica da filosofia. Para ele o mito pertence à pedagogia. Em última análise é a razão que se fundamenta a si mesma. E na medida em que Hegel elabora a dialética da reflexão como a automediação total da razão, eleva-se também ele acima do formalismo argumentativo que, de acordo com Platão, chamamos sofístico. Por isso, sua dialética contra a argumentação vazia do entendimento, que ele chama "a reflexão externa", não é menos polêmica que a do Sócrates   platônico. Por esse motivo, a confrontação com ele é tão importante para o problema hermenêutico. Pois a filosofia do espírito de Hegel pretende oferecer uma mediação total da história e do presente. Nela não se trata de um formalismo da reflexão, mas do mesmo tema a que devemos nos ater também nós. Hegel pensou até o final a dimensão histórica, na qual tem suas raízes o problema da hermenêutica. 1887 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A vinculação a uma situação não significa, de modo algum, que a pretensão de correção, que é inerente a qualquer interpretação, se dissolva no subjetivo ou ocasional. Não vamos voltar a cair no conhecimento romântico que purificou o problema da hermenêutica de todos os seus motivos ocasionais. A interpretação não é tampouco, para nós, um comportamento pedagógico, mas a realização da própria compreensão, que não se cumpre primeiramente só para aqueles em cujo benefício se interpreta, mas também para o próprio intérprete e somente no caráter expresso da interpretação linguística. Graças à sua linguisticidade, toda interpretação contém também uma possível referência a outros. Não existe falar que não envolva simultaneamente o que fala e o seu interlocutor. E isso vale também para o processo hermenêutico. Entretanto, essa referência não determina a realização interpretativa da compreensão ao modo de uma adaptação consciente a uma situação pedagógica, mas essa realização nada mais é que a concreção do próprio sentido. Cabe recordar a maneira pela qual devolvemos todo o valor ao momento da aplicação, que havia sido desterrado por completo da hermenêutica. É o que já vimos: Compreender um texto significa sempre aplicá-lo a nós próprios, e saber que, embora se tenha de compreendê-lo em cada caso de uma maneira diferente, continua sendo o mesmo texto que, a cada vez, se nos apresenta de modo diferente. O fato de que, com isso, não se relativiza em nada a pretensão de verdade de qualquer interpretação, torna-se claro pelo fato de que a toda interpretação é essencialmente inerente sua [402] linguisticidade.j O caráter linguístico da expressão, que a compreensão ganha na interpretação, não gera um segundo sentido além do que foi compreendido e interpretado. Na compreensão, os conceitos interpretativos não se tornam temáticos como tais. Pelo contrário, determinam-se pelo fato de que desaparecem atrás do que eles fazem falar na interpretação. Paradoxalmente, uma interpretação é correta quando é suscetível desse desaparecimento. E, no entanto, também é certo que ela tem de vir à representação na sua qualidade de ser destinada a desaparecer. A possibilidade de compreender depende da possibilidade dessa interpretação mediadora. 2161 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Seu verdadeiro significado para o problema da hermenêutica se encontra noutro lugar: no seu descobrimento da acepção da linguagem como acepção do mundo. Humboldt   reconheceu a essência da linguagem, como a realização viva do falar, a energeia   linguística, rompendo assim com o dogmatismo dos gramáticos. Partindo do conceito da força, que guia todo seu pensamento sobre a linguagem, corrige também, de um modo especial, a questão da origem da linguagem, que estava particularmente sobrecarregada por questionamentos teológicos. Humboldt mostra até que ponto essa questão é incorreta, pois inclui a construção de um mundo humano sem linguagem, cuja elevação à linguisticidade tinha tido lugar em algum momento e de alguma maneira. Face a essa classe de construções, ele sublinha, com razão, que a linguagem é humana desde o seu começo. Essa constatação não somente modifica o sentido da questão da origem da linguagem. Ela é a base de uma perspectiva antropológica de amplo alcance. 2375 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A linguagem do intérprete é certamente um fenômeno secundário da linguagem, comparado, por exemplo, com a imediatez do entendimento inter-humano ou com a palavra do poeta. É assim que, por fim, volta a referir-se a algo linguístico. E, não obstante, a linguagem do intérprete é ao mesmo tempo a manifestação abrangente da linguisticidade em geral, que encerra em si todas as formas de uso e formas linguísticas. Havíamos partido dessa linguisticidade abrangente da compreensão, de sua referência à razão em geral, e agora vemos como se reúne sob esse aspecto todo o conjunto de nossa investigação. O desenvolvimento do problema da hermenêutica desde Schleiermacher, passando por Dilthey e chegando a Husserl e Heidegger, representa, como já expusemos, a partir do ponto de vista histórico, uma confirmação do que agora resultou: que a auto-reflexão metodológica da filologia tende necessariamente a um questionamento sistemático da filosofia. 2555 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Da dupla referência que a hermenêutica mantém com a retórica tradicional e com a filosofia prática de Aristóteles parece desprender-se que o problema da hermenêutica pode experimentar uma clareza muito maior do que seria possível partindo da problemática imanente à metodologia científica atual. É uma tarefa muito árdua determinar o lugar que ocupa uma disciplina como a retórica aristotélica no âmbito da teoria da ciência. Mas temos razões para associá-la à poética e não podemos negar aos dois escritos atribuídos a Aristóteles sua intenção teórica. Não pretendem substituir os manuais técnicos nem promover a arte da palavra e da poesia num sentido técnico. Aristóteles coloca essas artes no mesmo nível que a medicina e a ginástica, que nesse contexto ele qualifica como ciências técnicas. Não foi exatamente em sua "Política", onde elaborou teoricamente um imenso material sobre o saber político, que Aristóteles ampliou o horizonte de problemas da filosofia prática de tal modo que a questão a respeito da melhor constituição, e assim, uma questão prática, a questão do "bem", elevou-se acima da variedade das formas de constituição estudadas e analisadas por ele? Como é que a arte da compreensão a que damos o nome de hermenêutica irá encontrar então seu lugar no horizonte do modo de pensar aristotélico? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

O exemplo da mitologia é apenas um, dentre muitos. No trabalho concreto das ciências do espírito, poderíamos indicar em muitos pontos a mesma repulsa a um metodologismo ingênuo. No âmbito da reflexão filosófica essa crítica se dá expressamente ao objetivismo e ao positivismo históricos. Essa guinada ganhou importância singular onde a ciência se vincula com pontos de vista originariamente normativos. É o caso da teologia e da jurisprudência. A discussão teológica dos anos de 1950 colocou o problema da hermenêutica em primeiro plano, justamente por ter que conciliar a herança da teologia histórica com a irrupção de novos impulsos de teologia dogmática. A primeira dessas irrupções revolucionárias foi provocada pela exposição da Epístola aos Romanos por Karl Barth. Representou uma "crítica" da teologia liberal, que não tinha em mente a historiografia crítica como tal, mas antes a suficiência teológica, que considerava os resultados da teologia suficientes para se compreender a Sagrada Escritura. Nesse sentido, a lektik, 1971, p. 71-81). Apresenta Corres como precursor disto, cuja volta para a pré-história alemã tornou-se um dos fatores que preparou o levante nacionalista de 1813. Nisto, o trabalho de Baeumler é muito mais correto e, enquanto tal, merece atenção ainda hoje. Como Bachofen, também o seu intérprete move-se naturalmente em um âmbito de experiências psíquicas, que se refere a um espaço científico falso (como fala, com razão, Franz Wiaecker com relação a Bachofen na resenha que faz sobre este, in: Gnomon, vol. 28 1956, p. 161-173). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Mas o que diz Betti a respeito disso? Afirma que estou restringindo o problema hermenêutico à quaestio facti ("fenomenologicamente", "descritivamente"), e que não coloco a quaestio iuris. Como se a tematização kantiana da quaestio iuris quisesse prescrever como deveria ser realmente a ciência pura da natureza, e não procurasse, antes, justificar a possibilidade transcendental da mesma, como ela era. No sentido dessa diferenciação kantiana, o pensamento que ultrapassa o conceito de método das ciências do espírito, como procuro apresentar em meu livro, coloca a questão pela "possibilidade" das ciências do espírito (o que não significa dizer como elas propriamente deveriam ser!). Nesse caso, o que confunde o louvável investigador é um estranho ressentimento contra a fenomenologia. Mostra-se no fato de ele só conseguir pensar o problema da hermenêutica como um problema de método, e isto profundamente emaranhado no subjetivismo que se trata de superar. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Creio que a discussão atual sobre o problema hermenêutico em parte alguma é tão acirrada quanto no âmbito da teologia protestante. Em certo sentido, também aqui, como ocorre na hermenêutica jurídica, estão em questão interesses que ultrapassam a ciência. O que significa dizer, interesses de fé e de sua correta proclamação. Como consequência temos que a discussão hermenêutica se vê envolta em questões exegéticas e dogmáticas, frente às quais o leigo não pode tomar posição. Mas como ocorre na hermenêutica jurídica, também aqui mostra-se claramente a primazia dessa situação: O "sentido" dos textos a serem compreendidos não pode ser restrito à opinião imaginativa de seu autor. Em toda a grandiosa e monumental obra de Karl Barth, sua Kirchliche Dogmatik (Dogmática eclesial), encontramos contribuições implícitas ao problema hermenêutico, mesmo que nunca apareçam de forma expressa. Com Rudolf Bultmann  , as coisas se dão de maneira um pouco diferente, visto que demonstra grande interesse pelas considerações metodológicas e em suas obras completas tomou posição expressa, por diversas vezes, frente ao problema da hermenêutica. Mas, mesmo no caso de Bultmann, o centro de gravidade de todo questionamento conserva um cunho eminentemente teológico, não somente no sentido de que seu trabalho exegético representa o solo experimental e o âmbito de aplicação de seus princípios hermenêuticos, mas também e sobretudo no sentido de que a grande discussão teológica atual, a questão da desmitologização do Novo Testamento, contém muito mais tensões dogmáticas do que o que seria conveniente a reflexões metodológicas. Estou convencido de que o princípio da desmitologização contém um aspecto puramente hermenêutico. Segundo Bultmann, esse esquema não serve para se decidir previamente sobre questões dogmáticas, por exemplo, sobre quantos conteúdos dos escritos bíblicos são essenciais para o anúncio cristão e com isso para a fé, e o que, por exemplo, poderia ser eliminado. Trata-se, porém, do problema da compreensão do próprio anúncio cristão, do sentido em que este deve ser compreendido, se é que deve ser "compreendido". Talvez, e até certamente, seja possível compreender no Novo Testamento "mais" do que o compreendeu Bultmann. O que só poderá [404] acontecer se compreendermos esse "rnais" corretamente, i. é, realmente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Em todo caso, não podemos deixar-nos induzir ao erro de pensar que o problema da hermenêutica só poderia ser colocado desde o ponto de vista do historicismo moderno. Isso, se admitirmos que os clássicos discutiam as opiniões de seus precursores não como historicamente diferentes, mas como se fossem contemporâneas. Mas a tarefa da hermenêutica de interpretação dos textos herdados da tradição também estava presente então. E, supondo-se que esta interpretação sempre inclui a questão da verdade, talvez ela não esteja tão longe de nossas próprias experiências com textos, como quer supor a metodologia da ciência histórico-filológica. Sabe-se que a palavra hermenêutica se reporta à tarefa do intérprete, o qual explicita e comunica algo incompreensível, por ser falado numa língua estranha — mesmo que essa seja a linguagem dos deuses feita de sinais e signos. O saber que se consagra a essa tarefa sempre foi objeto de possíveis reflexões e desenvolvimento consciente. Esse desenvolvimento pode muito bem ter se dado na forma de uma tradição oral, como ocorreu no sacerdócio deifico. Mas a tarefa da interpretação se apresenta com muita decisão onde há literatura escrita. Tudo que foi fixado por escrito tem algo de estranho, exigindo, enquanto tal, a mesma tarefa de compreensão que encontramos quando se fala algo em língua estrangeira. O intérprete do texto gráfico, assim como o intérprete do discurso divino ou humano, tem a tarefa de superar a estranheza e possibilitar apropriação. Essa tarefa pode complicar-se quando a distância histórica entre o texto e o intérprete se tornar consciente. Isso porque, nesse caso, a tradição que sustenta tanto o texto herdado quanto seus intérpretes está rompida. Creio, no entanto, que sob o ímpeto de falsas analogias metodológicas sugeridas pelas ciências da natureza, a hermenêutica "histórica" se distancia em muito da hermenêutica pré-histórica. Tentei mostrar que essas hermêuticas compartilham pelo menos um traço dominante comum: a estrutura da aplicação. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.