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Gadamer (VM): praxis

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Para começar, já teremos uma diferença interessante, caso minha impressão esteja correta, no fato de que Schleiermacher   não fale tanto da incompreensão como de mal-entendido. O que ele tem em vista já não é mais a situação pedagógica da interpretação, que procura ajudar a compreensão do outro, do aluno. Ao contrário, nele a interpretação e a compreensão se interpretam tão intimamente como a palavra exterior e interior, e todos os problemas da interpretação são, na realidade, problemas da compreensão. Trata-se apenas da subtilitas intelligendi, não da subtilitas explicando (para não falar da applicatio). Mas, Schleiermacher faz, sobretudo, uma diferenciação expressa entre a praxis   mais laxista da hermenêutica, segundo a qual a compreensão se realiza por si mesma, e a praxis mais estrita que parte da idéia de que o mal-entendido se produz por si mesmo. Sobre essa diferença fundamentou seu desempenho próprio: desenvolver, em lugar de uma "agregação de observações", uma verdadeira doutrina da arte do compreender. E isso significa algo fundamentalmente novo. A dificuldade de compreensão e do mal-entendido já não são levados em conta somente como momentos ocasionais, mas como momentos integradores que se procura desconectar previamente. Schleiermacher chega inclusive a definir que: "a hermenêutica é a arte de evitar o mal-entendido". Para além da ocasionalidade pedagógica da prática da interpretação, a hermenêutica se eleva à autonomia deum método, pois "o mal-entendido se produz por [189] si mesmo, e a compreensão é algo que temos de querer e de procurar em cada ponto". Evitar o mal-entendido — "Todas as tarefas estão contidas nesta expressão negativa". Sua resolução positiva está, para Schleiermacher, num cânon de regras gramaticais e psicológicas de interpretação, que se afastam por completo de qualquer liame dogmático de conteúdo, inclusive na consciência do intérprete. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O que Heidegger diz aqui não é em primeiro lugar uma exigência à praxis da compreensão, mas, antes, descreve a forma de realização da própria interpretação compreensiva. A reflexão hermenêutica de Heidegger tem o seu ponto alto não no fato de demonstrar que aqui esta prejaz um círculo, mas, antes, que este círculo tem um sentido ontológico positivo. A descrição como tal será evidente para qualquer intérprete que saiba o que faz. Toda interpretação correta tem que proteger-se contra a arbitrariedade da ocorrência de "felizes idéias" e contra a limitação dos hábitos imperceptíveis do pensar, e orientar sua vista "às coisas elas mesmas" (que para os filólogos são textos com sentido, que também tratam, por sua vez, de coisas). Esse deixar-se determinar assim pela própria coisa, evidentemente, não é para o intérprete uma decisão "heróica", tomada de uma vez por todas, mas verdadeiramente "a tarefa primeira, constante e última". Pois o que importa é manter a vista atenta à coisa, através de todos os desvios a que se vê constantemente submetido o intérprete em virtude das idéias que lhe ocorram. Quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar. Tão logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete prelineia um sentido do todo. Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir de determinadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto prévio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se dá conforme se avança na penetração do sentido. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Este é o ponto em que se pode relacionar a análise aristotélica do saber ético com o problema hermenêutico das modernas ciências do espírito. É verdade que na consciência hermenêutica não se trata de um saber técnico nem ético, porém, essas duas formas do saber contêm a mesma tarefa da aplicação que temos reconhecido como a dimensão problemática central da hermenêutica. Também é claro que "aplicação" não significa o mesmo em ambos os casos. Existe uma peculiaríssima tensão entre a techne   que se ensina e aquela que se adquire por experiência [321]. O saber prévio que alguém possui quando aprendeu um ofício não é necessariamente superior, na praxis, ao que possui um iletrado no assunto, mas muito experimentado. No entanto, ainda que isso seja assim, nem por isso se chamará "teórico" o saber prévio da techne, menos ainda se se leva em conta que a aquisição de experiência aparece por si só no uso desse saber. Pois, como saber, já intenciona sempre à praxis, e ainda que a matéria bruta nem sempre obedeça ao que aprendeu seu ofício, Aristóteles   pode citar com razão as palavras do poeta: techne ama tykne, e tykne ama techne. Isso quer dizer que, em geral, o bom êxito acompanha aquele que aprendeu seu ofício. O que se adquire adiantadamente na techne é uma autêntica superioridade sobre a coisa, e isso é exatamente o que representa um modelo para o saber ético. Pois também para este é claro que a experiência nunca pode bastar para uma decisão eticamente correta. Também aqui se exige que a atuação seja guiada previamente pela consciência moral  . Nem sequer será possível contentar-se com a relação insegura que há no caso da techne entre o saber prévio e o correspondente êxito final. Pode-se dizer que há uma correspondência real entre a perfeição da consciência ética e a de saber produzir, a da techne, mas, obviamente, não são a mesma coisa. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O problema é agora saber se o comportamento do historiador foi visto e descrito suficientemente. No nosso exemplo, como se produz a mudança rumo ao histórico? Ante a lei vigente, vivemos já de antemão com a idéia natural de que seu sentido jurídico é unívoco e que a praxis jurídica do presente se limita a seguir simplesmente o seu sentido original. Se isso fosse sempre assim não haveria razão para distinguir entre sentido jurídico e sentido histórico de uma lei. O mesmo jurista [332] nao tena outra tarefa hermenêutica senão a de comprovar o sentido original da lei e aplicá-lo como correto. Savigny, em 1840, descreveu a tarefa da hermenêutica jurídica como puramente histórica (no System   des romischen Rechts). Assim como Schleiermacher não via problema algum em que o intérprete tenha de se equiparar ao leitor originário, também Savigny ignora a tensão entre sentido jurídico originário e atual. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O tempo se encarregou de demonstrar suficiente clareza até que ponto isso é juridicamente uma ficção insustentável. Ernst   Forsthoff demonstrou numa valiosa investigação que, por razões estritamente jurídicas, foi necessário refletir sobre a mudança histórica das coisas, através do que distinguiu-se entre o sentido original do conteúdo de uma lei e o que se aplica na praxis jurídica. É verdade que o jurista sempre tem em mente a lei em si mesma. Mas seu conteúdo normativo tem que ser determinado com respeito ao caso ao qual se trata de aplicá-la. E para determinar com exatidão esse conteúdo não se pode prescindir de um conhecimento histórico do sentido originário, e só por isso o intérprete jurídico tem que vincular o valor posicionai histórico que convém a uma lei, em virtude do ato legislador. Não obstante, não pode sujeitar-se a que, por exemplo, os protocolos parlamentares lhe ensinariam com respeito à intenção dos que elaboraram a lei. Pelo contrário, está obrigado a admitir que as circunstâncias foram sendo mudadas e que, por conseguinte, tem que determinar de novo a função normativa da lei. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Finalmente, a mesma problemática obrigou-me a elaborar de modo mais agudo o teor teórico-científico de uma hermenêutica filosófica, na qual a compreensão, a interpretação e o procedimento das ciências hermenêuticas devem encontrar sua legitimação. Isto levou-me a tratar de um problema, com que eu me havia ocupado intensamente desde meus primeiros trabalhos: O que é a filosofia prática? Como podem a teoria e a reflexão dirigir-se para o âmbito da praxis, visto que esta não tolera nenhum distanciamento, mas, pelo contrário, exige o engajamento. Essa questão tocou-me desde cedo através do pathos   existencial de Kierkegaard  . Ademais, orientei-me pelo modelo da filosofia prática de Aristóteles. Procurei evitar o modelo distorcido de teoria e sua aplicação, que, partindo do conceito moderno de ciência, determinou de modo unilateral também o conceito de práxis. Foi nesse ponto que Kant   introduziu a autocrítica da modernidade. Na Fundamentação da metafísica dos costumes, de Kant acreditei e acredito encontrar uma verdade, quiçá parcial, reduzida ao imperativo, que é no entanto inabalável dentro de seus limites: Os impulsos do Iluminismo não podem prender-se a um utilitarismo social, se é que devem sobreviver à crítica de Rousseau, que segundo o próprio Kant, foi decisiva para ele. VERDADE E METODO II Introdução 1.

Ora, a filosofia prática não é certamente, ela própria, esta racionalidade. Ela é filosofia, isto é, uma reflexão, e uma reflexão sobre aquilo que deve ser a configuração da vida humana. No mesmo sentido, a hermenêutica filosófica não é ela própria a arte do compreender, mas a sua teoria. Contudo, tanto uma quanto a outra forma de conscientização surge da praxis, e sem esta não é nada mais do que um mero processo vazio. Este é o sentido específico de saber e ciência, que se há de legitimar novamente a partir da problemática hermenêutica. Este foi o objetivo a que tenho dedicado meu trabalho, mesmo depois da conclusão de Verdade e método I. VERDADE E METODO II Introdução 1.

Essa relação mostra-se no fato de que o mero deixar e manter o que está ali diante de nós não deixa de ser verdade, isto é, revela-o como é, mas também delineia de antemão o que a partir dali se pode perguntar com sentido e o que se pode manifestar num conhecimento progressivo. Não é possível simplesmente progredir no conhecimento, sem abrir mão de certas verdades. Não se trata de uma relação quantitativa, de tal modo que se pudesse afirmar sempre apenas um âmbito finito de nosso saber. Quando perguntamos pela verdade não está em questão apenas o fato de que, ao mesmo tempo em que reconhecemos uma verdade, a encobrimos e esquecemos, mas de que estamos sempre presos nos limites de nossa situação hermenêutica. Isso, porém, significa que não conseguimos conhecer muita coisa do que é verdadeiro, uma vez que, sem o saber, estamos sempre limitados por preconceitos. Algo como a "moda" dá-se também na praxis do trabalho científico. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 4.

O que Heidegger diz aqui não é de imediato uma exigência da praxis da compreensão. Ele descreve a forma de realização da própria interpretação compreensiva.». O ponto culminante da reflexão hermenêutica de Heidegger não se encontra na demonstração de que há um círculo, mas antes no fato de esse círculo possuir um sentido ontológico positivo. A descrição como tal torna-se evidente para todo intérprete que saiba o que faz. Toda interpretação correta deve guardar-se da arbitrariedade dos "chutes" e do caráter limitado de hábitos mentais inadvertidos, de maneira a voltar-se "para as coisas elas mesmas" (que para os filólogos são textos com sentido, que por seu turno tratam novamente de coisas). VERDADE E METODO II PRELIMINARES 5.

Como costuma ocorrer com as palavras derivadas do grego e adotadas em nossa linguagem científica, o título "hermenêutica abarca diversos níveis de reflexão. Hermenêutica significa em primeiro lugar praxis relacionada a uma arte. Sugere a "techne" como palavra complementaria. A arte, em questão aqui, é a arte do anúncio, da tradução, da explicação e interpretação, que inclui naturalmente a arte da compreensão que lhe serve de base e que é sempre exigida quando o sentido de algo se acha obscuro e duvidoso. Já no uso mais antigo da palavra, detecta-se uma certa ambigüidade. Hermes é chamado o mensageiro divino, aquele que transmite as mensagens dos deuses aos homens: No relato de Homero  , ele costuma executar verbalmente a mensagem que lhe fora confiada. Mas freqüentemente, e em especial no uso profano, a tarefa do hermeneus consiste em traduzir para uma linguagem acessível a todos o que se manifestou de modo estranho ou incompreensível. Assim, a tarefa da tradução sempre tem uma certa "liberdade". Pressupõe a plena compreensão da língua estrangeira e, mais do que isso, a compreensão da verdadeira intenção de sentido do que se manifestou. Quem quiser se fazer compreender como intérprete deve trazer novamente à fala este sentido da intenção. A contribuição que a "hermenêutica" pode fazer é sempre essa transferência de um mundo para outro, do mundo dos deuses para o dos homens, do mundo de uma língua estrangeira para o mundo da língua própria (os tradutores humanos podem traduzir somente para sua própria língua). Visto, porém, que a tarefa própria do traduzir consiste em "executar" algo, o sentido de hermeneuein oscila entre tradução e diretiva, entre mera comunicação e requisito de obediência. E certo que, em sentido neutro, hermeneia   costuma significar "enunciação de pensamentos", todavia é significativo o fato de que, para Platão  , não é qualquer expressão de pensamento que possui o [93] caráter de diretiva, mas somente o saber do rei, do arauto etc. A proximidade da hermenêutica com a mântica não pode ser compreendida de modo diverso: a arte de transmitir a vontade do deus segue paralela à arte de adivinhá-la ou de prever o futuro mediante sinais. Mesmo assim, quando Aristóteles trata da questão do logos   apophantikos, no tratado Peri hermeneias, ele só tem em mente o sentido lógico do enunciado, concentrando-se no outro componente semântico, puramente cognitivo. De modo semelhante, desenvolve-se no mundo grego posterior um sentido de hermeneia e hermeneus puramente cognitivo, que pode significar "explicação erudita", "comentador" e "tradutor". É claro que, enquanto arte, encontram-se ligados à hermenêutica restos herdados da esfera sacral: é a única arte cuja palavra deve ser estabelecida como padrão de medida, que se acolhe com admiração porque pode compreender e explicitar o que oculta, seja em discursos estranhos, seja na convicção inexpressa de outro. Trata-se, portanto, de uma ars: uma técnica, como a oratória, a arte de escrever ou a aritmética. É mais aptidão prática do que propriamente "ciência". VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.

A hermenêutica pietista fez frente a seu efeito negativo-iluminista conjugando estreitamente, desde A.H. Francke, a aplicação edificante com a interpretação de textos. Aqui desemboca a tradição da antiga retórica e de sua doutrina do papel dos afetos, sobretudo para a doutrina da pregação (sermo), que assumiu um papel decisivo e novo no culto protestante. A influente hermenêutica de J.J. Rambach colocou expressamente a subtilitas applicandi ao lado da subtilitas intelligendi e explicandi, o que corresponde certamente ao sentido da pregação. A expressão subtilitas (sutileza), tirada da reflexão humanista acerca da competição, sugere de forma elegante que a "metodologia" da interpretação — como toda aplicação de regras em geral — exige capacidade de julgamento, o que por sua vez não pode ser garantido por regras. Isso representaria uma constante restrição para a aplicação da teoria à praxis hermenêutica. Além disso, como disciplina teológica auxiliar, a hermenêutica busca, mesmo no final do século XVIII, estabelecer um constante equilíbrio com os interesses dogmáticos (p. ex., em Ernesti e Semler). VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.

A universalidade da hermenêutica depende, em última instância, da medida em que seu caráter teórico, transcendental  , limita sua validez ao âmbito da ciência ou se também inclui os princípios do "sensus communis  " e, com isso, o modo como o uso científico é integrado na consciência prática. Compreendida assim de modo universal, a hermenêutica adquire uma forte afinidade com a "filosofia prática", revitalizada dentro da tradição transcendental-filosófica alemã pelos trabalhos de J. Ritter e sua escola. A hermenêutica filosófica é consciente dessa conseqüência. Uma teoria da praxis da compreensão é certamente teoria e não prática. Mas nem por isso uma teoria da praxis é uma "técnica" ou uma pretensa cientifização da práxis social. É, ao contrário, uma reflexão filosófica dos limites a que está submetido todo domínio científico-técnico da natureza e da sociedade. São verdades cuja defesa diante do conceito moderno de ciência constitui uma das mais importantes tarefas de uma hermenêutica filosófica. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.

É possível que não exista nenhum exemplo mais adequado para ilustrar os problemas aqui tratados do que a situação médica. Nessa situação, experimenta-se o conflito entre a ciência e a concreção da ajuda médica na unidade de um fazer profissional. De certo, semelhantes confusões sempre aparecem quando uma profissão baseada numa formação científica se exerce na mediação entre praxis da vida e ciência. Esse é o caso do jurista e do pároco, do pastor ou do professor. O caso da medicina, porém, reveste-se de um caráter modelar específico. Aqui as ciências modernas da natureza, em toda plenitude e grandeza de suas possibilidades, entraram em conflito direto com a situação básica de ajuda e cura medicinal que sempre se atribuiu ao médico. Esse conflito ultrapassa radicalmente a questionabilidade que de há muito acompanha a ciência médica. Na verdade, já é um problema muito antigo saber até que ponto podemos compreender a medicina como "ciência", naturalmente como ciência prática, como tékhne, ou seja, como capacidade de produção. Isso porque, enquanto qualquer outro saber prático capaz de produção encontra a demonstração de seu saber em sua obra, a obra da medicina é marcada por uma ambigüidade insuperável. No caso concreto, é impossível distinguir até que ponto foram as medidas adotadas pelo médico ou o auxílio da própria natureza que restabeleceram a saúde do enfermo; por isso toda arte terapêutica — diferentemente de outras technai — sempre precisou de uma apologia especial. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.

Creio que se torna necessário tematizar aqui as universalidades interativas da retórica, da hermenêutica e da sociologia em sua interdependência e esclarecer a legitimidade característica de cada uma dessas universalidades. Isso torna-se ainda mais importante à medida que comportam — principalmente as duas primeiras — uma certa ambigüidade em sua pretensão científica, co-determinada por sua relação com a praxis. Isso porque a retórica não é evidentemente uma mera teoria das formas de falar e dos recursos de persuasão. Ela pode, antes, progredir de uma capacidade natural para uma destreza prática. Sejam quais forem seus recursos e métodos, tampouco a arte da compreensão depende imediatamente da consciência pela qual segue suas regras. Também aqui a habilidade natural que todos possuem pode tornar-se numa capacidade pela qual alguém pode suplantar todos os outros, e a teoria, na melhor das hipóteses, só poderá perguntar pelo porquê. Em ambos os casos dá-se uma suplementaridade entre a teoria e aquilo de que foi extraída e que chamamos de práxis. Uma pertence à filosofia grega primitiva, a outra é uma conseqüência da dissolução tardia dos fortes vínculos da tradição e do esforço para manter o que está em vias de desaparecer, superando-o por uma consciência lúcida. VERDADE E METODO II OUTROS 18.

E impressionante ver a extraordinária paixão com que Habermas defende as ciências experimentais contra um jogo de linguagem arbitrário. Quem poderá contestar-lhe a necessidade, sob o ponto de vista de uma possível utilização técnica da natureza? Com todo direito subjetivo, o investigador negará sumariamente que a relação que mantém com sua ciência seja determinada por um labor com motivação técnica. Por outro lado, ninguém negará que a aplicação prática da ciência moderna modifica profundamente nosso mundo e com ele também nossa linguagem. Mas note-se que digo: "também nossa linguagem". Isso de modo algum significa, como me atribui Habermas, que a consciência articulada pela linguagem determina o ser material da praxis vital, mas apenas que não existe nenhuma realidade social com todas as suas pressões reais que não se expresse numa consciência articulada pela linguagem. A realidade não se dá "às esconsas da linguagem" (179), mas às esconsas daqueles que pretendem compreender perfeitamente o mundo (ou não mais compreendê-lo), e se dá também na linguagem. VERDADE E METODO II OUTROS 18.

K.O. Apel, em todo caso, faz essa crítica porque não compreendeu direito o que tem em mente a hermenêutica filosófica quando fala de aplicação. A análise que faço da experiência hermenêutica tem como objeto a praxis exitosa das ciências hermenêuticas, na qual certamente não está atuando nenhuma "aplicação consciente" que pudesse favorecer uma corrupção ideológica do conhecimento. Essa análise deveria ser levada realmente a sério. Esse mal-entendido já fora objeto de preocupação de Betti. Aqui está em jogo sem dúvida uma obscuridade no conceito de consciência de aplicação. É absolutamente verdadeiro, como constata Apel, que frente à auto-evidência objetivista das ciências compreensivas e face à práxis vital da compreensão, a consciência de aplicação [261] apresenta-se como uma exigência hermenêutica. Assim, uma hermenêutica filosófica, no estilo que procurei desenvolver, torna-se "normativa", no sentido de que busca substituir uma má filosofia por outra melhor. Mas não propaga uma nova práxis e não há indícios que afirmem que a práxis hermenêutica se guie concretamente por uma consciência e tendência de aplicação, e isso inclusive no sentido de uma legitimação consciente de uma tradição vigente. VERDADE E METODO II OUTROS 19.

É justamente por isso que parece-me ser um mal-entendido querer equiparar a aplicação ingênua que dominava o curso da tradição antes do aparecimento da consciência histórica com o momento da aplicação de todo compreender. Não resta dúvidas de que com a ruptura com a tradição e o surgimento da consciência [263] histórica modificou-se a praxis da compreensão. Apesar disso, não me parece convincente dizer que a consciência histórica e sua depuração nas ciências históricas deva ser o motivo de desmoronamento do poder da tradição, e que o fator decisivo para isso não tenha sido antes a própria ruptura da tradição, iniciada com o nascimento da modernidade que alcançou sua primeira culminação radical na Revolução Francesa. Parece-me que as ciências históricas do espírito passaram ao primeiro plano muito mais como reação a essa ruptura com a tradição do que por terem-na provocado ou apenas confirmado a partir de si. O certo é que as próprias ciências do espírito, apesar de sua procedência romântica, representam um fenômeno de ruptura da tradição e em certo sentido dão continuidade ao iluminismo crítico. A seu tempo, chamei isso de reflexo distorcido do iluminismo. Mas, por outro lado, atuam nela impulsos da restauração romântica. A aprovação ou o rechaço não modifica em nada o fato de que possam realizar contribuições cognitivas específicas. Basta recordar, por exemplo, o "Geschichte   de Stauferzeit" de Raumer. Pode ser tudo, menos aplicação consciente. A força de penetração do iluminismo crítico, que critica a vigência ingênua das tradições e a persistência da tradição, a qual co-determina o horizonte histórico, pertencem à essência das ciências históricas, e isso não apenas no reino das ciências românticas do espírito. A história de Atenas na Guerra do Peloponeso ou a valoração de um Péricles ou de um "curtidor Cleon", é assombrosamente diferente na tradição da Alemanha imperial e na democracia americana, por mais jovens que sejam essas duas tradições. Não é diferente para a tradição do marxismo. Quando leio por exemplo a continuação do pensamento de Giegels nas categorias das lutas de classe, não esqueço (como ele parece temer) o que a reflexão histórico-efeitual pode explicitar ali; mas ele equivoca-se ao afirmar que isso produz uma legitimação. A reflexão hermenêutica limita-se a abrir possibilidades de conhecimento que sem ela não seriam percebidas. Ela não oferece um critério de verdade. VERDADE E METODO II OUTROS 19.

Retornemos ao que se pode discutir, que são as bases teóricas do que representa a praxis hermenêutica. Concordo com meus críticos sobre um ponto e agradeço-lhes o fato de ter que destacá-lo: Creio que, assim como a crítica da ideologia passa da "teoria da arte" compreensiva para a auto-reflexão, também a reflexão hermenêutica representa um momento integral da própria compreensão, a ponto de a separação entre reflexão e praxis incluir um erro dogmático que atinge também o conceito da "reflexão emancipatória". VERDADE E METODO II OUTROS 19.

O que distingue uma práxis hermenêutica e sua disciplina do aprendizado de uma mera técnica, seja ela técnica social ou método crítico, é que na hermenêutica a consciência do sujeito que compreende sempre é co-determidada por um fator da história dos efeitos. Mas isso implica também a tese inversa, a saber, o que é compreendido sempre desenvolve uma certa força convincente que influi na formação de novas convicções. Não nego que a abstração das opiniões pessoais represente um esforço justificado de compreensão. Quem quer compreender não precisa afirmar o que compreende. E no entanto penso que a experiência hermenêutica nos ensina que a força dessa abstração é sempre limitada. Aquilo que compreendemos fala também e sempre por si próprio. E exatamente aqui que reside a riqueza do universo hermenêutico. A medida que desenrola toda amplitude de seu jogo, obriga também o sujeito que compreende a colocar em jogo seus preconceitos. Todas essas são conquistas da reflexão emanadas da praxis e dela somente. Peço clemência por mim, um velho filólogo, por ter exemplificado tudo isso no "ser para o texto". Na verdade, a experiência hermenêutica está totalmente entretecida na realidade geral da praxis humana, na qual a compreensão do escrito chega a ser essencial, mas sua inclusão é apenas secundária. Chega tão longe quanto a disposição para o diálogo dos seres racionais. VERDADE E METODO II OUTROS 19.

O que me interessa, penso que pode ser identificado como um velho problema que já Aristóteles tinha em mente em sua crítica à idéia geral do bem, de Platão. O bem humano é algo que encontramos na praxis humana e não pode ser determinado fora da situação concreta onde se prefere uma coisa à outra. Isso representa a experiência crítica do bem e não um consenso contrafáctico. Deve ser trabalhado e retrabalhado até a concretização da situação. Enquanto idéia geral, essa idéia da vida justa é uma idéia "vazia". Ali radica-se o fato decisivo de que o saber da razão prática não é um saber que tenha consciência de sua superioridade frente ao ignorante. Ao contrário, dá-se aqui em todos e em cada um a pretensão de saber o que é justo para o todo. Mas para a convivência social das pessoas isso significa que precisamos convencer os outros. E precisamos convencê-los, de certo, não no sentido de que a política e a configuração da vida social sejam uma mera comunidade de diálogo, de modo a sentir-nos dependentes de um diálogo livre de coerções, à margem de todas as pressões de dominação, como o verdadeiro recurso terapêutico. A política exige da razão que re-conduza os interesses para a formação da vontade, e todas as informações sociais e políticas da vontade são dependentes da estrutura das convicções gerais construídas pela retórica. Isso implica — e creio que isso pertence ao conceito de razão — termos de contar sempre com a possibilidade de que a convicção do outro, seja no âmbito individual ou social, possa estar certa. O caminho da experiência hermenêutica, que, como gosto de reconhecer, elaborou em si conteúdos específicos da tradição cultural do Ocidente, levou-me a assumir um conceito com aplicação muito ampla. Refiro-me ao conceito de jogo. Não o conhecemos apenas das teorias lúdicas modernas da economia. Parece-me que reflete muito mais a pluralidade que acompanha o exercício da razão humana, assim como a pluralidade que conjuga as forças opostas na unidade de um todo. O jogo das forças complementa-se com o jogo das convicções, das argumentações e experiências. O esquema do diálogo, quando bem empregado, torna-se muito fecundo: no intercâmbio das forças e no confronto dos pontos de vista vai se construindo uma comunidade que ultrapassa o indivíduo e o grupo ao qual se pertence. VERDADE E METODO II OUTROS 19.

O ponto crucial é a postergação que sofre a interpretação alegórica, mesmo que esta continue de certo modo imprescindível para o Antigo Testamento, como se reconhece ainda hoje sob a forma da chamada interpretação "tipológica". Uma referência explícita à praxis exegética de Lutero   na exposição do Deuteronômio e dos Profetas pode ilustrar a persistência do princípio da Escritura. Melanchton diz que: "Aqui não se transmitem meras alegorias, mas a história mesma aparece referida aos loci communes da fé e das obras, e só então esses loci dão nascimento às alegorias. Mas ninguém pode seguir esse método se não possui uma excelente erudição". Essa passagem, dentro de seu compromisso, confirma nossa interpretação de que o princípio da Escritura afirma seu lugar fundamental. VERDADE E METODO II OUTROS 20.

Seja como for, se desenvolvermos ou não a autoconcepção metodológica na orientação da lógica ou da retórica, ou, correspondentemente, da dialética, o certo é que a "arte" da hermenêutica possui uma universalidade que transcende todas as formas de aplicação: aplicação à Bíblia, aos clássicos, aos textos legais. Isso pode ser constatado em ambas as orientações e fundamenta-se na problemática peculiar entranhada no conceito de "teoria da arte" que tem sua origem na formulação de conceitos introduzida por Aristóteles. Frente aos casos "puros" da techne ou da teoria da arte, a retórica e a hermenêutica representam casos especiais. Ambas têm a ver com a universalidade do caráter de linguagem e não com esferas concretas do produzir humano. Com isso, ambas avançam numa transição mais ou menos fluida desde a faculdade da fala e da compreensão, comum a todos os homens, até o uso consciente de normas artificiais da linguagem e da compreensão. Mas isso apresenta um outro aspecto importante que não se pode perceber corretamente a partir do conceito moderno de ciência nem a partir do conceito antigo de techne. Em ambos os casos, a "arte pura" só pode desligar-se até certo ponto das condições naturais e sociais da praxis cotidiana. No caso da retórica, isso significa que o mero conhecimento das regras e seu aprendizado, à margem da disposição natural e do exercício natural, não ajudam à eloqüência. Significa também, por outro lado, que a mera habilidade do discurso, se não possuir um conteúdo adequado, torna-se sofística vazia. VERDADE E METODO II OUTROS 20.

Convém recordar aqui o lugar especial que ocupa a filosofia prática em Aristóteles. Chama-se "philosophia  " e isso implica um interesse   "teórico" e não prático. Mas mesmo assim não se cultiva pelo mero desejo de saber, como acentua Aristóteles em sua Ética, mas por causa da arete  , isto é, por causa do ser e agir práticos. Pois [291] bem, parece-me digno de nota que se possa afirmar o mesmo a respeito do que Aristóteles, no livro VI da Metafísica, chama "poietike philosophia  " e que abarca tanto a poética como a retórica. Nem uma e nem outra são variedades da "techne", no sentido do saber técnico. Ambas estão baseadas numa faculdade universal do ser humano. Sua posição especial em relação às "technai" não tem uma caracterização distintiva tão clara como é o caso da idéia da filosofia prática, caracterizada por sua relação polêmica com a idéia platônica do bem. Ademais, creio que, em analogia   com a filosofia prática, pode-se considerar a posição particular e a especificidade da filosofia poética como uma conseqüência do pensamento aristotélico. Seja como for, a história acabou tirando essa conseqüência. O trivium, que se diferencia em gramática, dialética e retórica, e que inclui sob a retórica também a poética, em relação a todos os modos específicos do fazer ou do produzir algo, ocupa um posto tão universal como o posto que compete à praxis em geral e à racionalidade que a orienta. Essas partes do trivium, longe de ser ciências, são artes "liberais", ou seja, pertencem à postura básica da existência humana. Não são algo que se faz ou se estuda para que se venha a ser então aquele que aprendeu essas artes. Essa capacidade de formação faz parte das possibilidades do ser humano como tal, faz parte daquilo que todo indivíduo é ou pode fazer. VERDADE E METODO II OUTROS 20.

Sobre esse fundo é preciso ver a distinção entre filosofia teórica, filosofia prática e filosofia poiética, que se inicia em Aristóteles e deve determinar o grau teórico-científico de sua filosofia prática. [308] O destaque dialético que Platão confere à retórica no Filebo é um bom indicador. A retórica é inseparável da dialética; a persuasão, que é um convencer, é inseparável do conhecimento da verdade. Assim mesmo, a compreensão deve ser concebida a partir do saber. E uma capacidade de aprendizagem, e isso o sublinha ainda Aristóteles quando trata da synesis. Pois bem, o verdadeiro orador dialético, tanto quanto o estadista e qualquer um que busque conduzir sua própria vida, persegue "o bem". Mas o bem não se apresenta como um ergon  , produzido pelo fazer, mas como praxis e eupraxia (quer dizer, como energeia  ). Nessa linha, a política aristotélica não trata a educação como uma filosofia poiética, embora tenha de "fazer" bons cidadãos. Trata-a, antes, como teoria das formas de constituição enquanto filosofia prática. VERDADE E METODO II OUTROS 22.

Quando partimos da panorâmica do desenvolvimento da hermenêutica moderna e remontamos à tradição aristotélica da filosofia prática e da teoria da arte, é necessário perguntarmos até que ponto a tensão existente em Platão e Aristóteles entre um conceito técnico de ciência e um conceito prático-político, que inclui os fins últimos do ser humano, pode ser útil no terreno da ciência moderna e de sua teoria. No que se refere à hermenêutica, é natural confrontarmos a dissociação entre teoria e praxis — que corresponde ao conceito moderno de ciência teórica e a sua aplicação prático-técnica — com uma idéia do saber que percorreu o caminho inverso, partindo da praxis para alcançar sua conscientização teórica. VERDADE E METODO II OUTROS 22.

Essas reflexões permitem perfilar com precisão a questionada descrição inicial da tarefa da filosofia prática e política. O que Burnet considerou uma adaptação de Aristóteles ao uso de linguagem que faz Platão do termo technesl tem seu verdadeiro fundamento na interferência que existe entre o saber "poiético" da techne e a "filosofia prática" que estuda "o bem" dentro de uma generalidade típica. Essa filosofia prática como tal não é a phronesis  . Praxis, prohairesis, techne e methodos   aparecem também aqui numa seqüência e formam de certo modo um contínuo de transições. Mesmo assim, Aristóteles reflete também sobre o papel que pode desempenhar a politike na vida prática. Compara o postulado dessa pragmática com o ponto que o arqueiro toma como mira quando aponta para o objetivo da caça. Com esse ponto na mira acertará melhor. Isso não significa que a arte do tiro a arco consista somente em apontar para esse ponto. Deve-se dominar, antes, essa arte para poder acertar. Mas o ponto pode ser útil para facilitar a pontaria, para manter a direção do disparo com mais precisão. Aplicando essa imagem à filosofia prática, também aqui devemos partir do princípio de que o ser humano se guia, em suas decisões concretas, de acordo com seu ethos  , pela racionalidade prática e para isso não depende das orientações de um mestre. Também aqui a pragmática ética pode oferecer certa ajuda para se evitar conscientemente os erros, fazendo com que a reflexão racional tenha consciência dos objetivos últimos de sua ação. Essa pragmática não se limita a um campo particular. Também não é a aplicação de uma faculdade a um objeto. Pode desenvolver métodos — são regras práticas mais que métodos — e pode converter-se em verdadeira maestria num indivíduo determinado. Mas, apesar disso, não é uma "faculdade" que escolhe cada vez (por conta própria ou a pedido) sua tarefa como uma capacidade técnica. Apresenta-se, antes, como a praxis da vida a apresenta. Assim, a filosofia prática de Aristóteles difere do saber técnico supostamente neutro do especialista, que aborda [317] as tarefas da política e da legislação como um observador distante. VERDADE E METODO II OUTROS 22.

Esse é o ensinamento inequívoco de Aristóteles no capítulo que passa da ética à política. A filosofia prática pressupõe já estarmos conformados pelas idéias normativas nas quais fomos educados e que sustentam a ordem de toda vida social. De modo algum isso significa que essas perspectivas normativas sejam imutáveis, não podendo ser criticadas. A vida social consiste num processo constante de reajuste das vigências existentes. Mas a tentativa de derivar in abstracto as idéias normativas e dar-lhes validade com o pretexto de sua retidão científica não passa de uma ilusão. Trata-se, pois, de um conceito de ciência que não preconiza o ideal   do observador distante, mas que impulsiona a conscientização do elemento comum que vincula a todos. Em meus trabalhos, empreguei esse ponto às ciências hermenêuticas, sublinhando a pertença do intérprete ao interpretandum ou ao objeto a ser interpretado. Aquele que busca compreender algo já traz consigo uma antecipação que o liga com o que busca compreender, um consenso de base. Assim, o orador deve ligar-se sempre a essa antecipação se quiser ter sucesso na persuasão e convencimento sobre questões discutidas. Também a compreensão da opinião   do outro ou de um texto se realiza dentro de uma relação de consenso, apesar de todos os possíveis mal-entendidos, e busca o entendimento acima de qualquer dissenso. A praxis de uma ciência viva segue essa mesma linha. Essa praxis também não é uma mera aplicação de um saber e de métodos a um objeto qualquer. Só quem adota a perspectiva de uma ciência é que sente a premência das questões. Todo historiador das ciências sabe até que ponto os problemas pessoais, as experiências intelectuais, as necessidades e esperanças de uma época determinam a orientação e o interesse da ciência e da investigação. Mas a antiga pretensão de universalidade atribuída por Platão à retórica se prolonga sobretudo no âmbito das ciências compreensivas, cujo tema universal é o homem imerso nas tradições. Desse modo, pode-se aplicar à hermenêutica a mesma afinidade com a filosofia que representou o resultado provocativo da discussão do Fedro sobre a retórica. VERDADE E METODO II OUTROS 22.

Essas observações prévias serviram para dar credibilidade ao significado da filosofia prática de Aristóteles e da tradição despertada por esta. Trata-se, em última instância, de encontrar uma base comum além da retórica e da crítica, além da figura tradicional do saber do homem sobre si mesmo e da investigação científica moderna que degrada tudo em objetividade. Aristóteles desenhou a filosofia prática, que engloba a política, num debate aberto com o ideal da teoria e da filosofia teórica. Elevou, assim, a praxis humana a uma esfera autônoma do saber. "Praxis" designa o conjunto das coisas práticas e portanto toda conduta e toda auto-organização humana nesse mundo, incluindo também a política e dentro dessa a legislação. Essa, a política, é a principal tarefa cuja solução regula e ordena os assuntos humanos; ela é auto-regulação através da "constituição", no sentido mais amplo de uma vida social e estatal ordenada. VERDADE E METODO II OUTROS 23.

Pois bem, qual é o lugar teórico dessa vontade de saber e da reflexão sobre praxis e política? Aristóteles fala ocasionalmente de uma divisão da "filosofia" em três ramos: filosofia teórica, prática e poética (com essa última legou-nos a conhecida "poética", nela incluindo também a retórica ou a criação de discursos). Mas entre os extremos do saber e do fazer está a praxis, que é o objeto da filosofia prática. Seu verdadeiro fundamento é o lugar central e o distintivo essencial do ser humano em virtude do qual esse não desenvolve sua vida seguindo a pulsão dos instintos, mas guiando-se pela razão. Por isso, a virtude básica em consonância com a essência do homem, é a racionalidade que guia sua praxis. O grego expressa-a com a palavra phronesis. A pergunta de Aristóteles é a seguinte: em que consiste essa racionalidade prática entre a autoconsciência do cientista e a do especialista, do fautor, do engenheiro, do técnico, do artesão etc. Que relação tem essa virtude da racionalidade com a virtude da cientificidade e a virtude da competência técnica? Mesmo sem conhecer nada de Aristóteles, deve-se reconhecer que essa racionalidade prática possui um lugar relevante. Qual seria nossa posição na vida e como lidaríamos com nossos assuntos se tudo fosse ditado pelo especialista ou se o tecnocrata pudesse dispor de tudo? Nossas decisões éticas e políticas não devem ser as nossas decisões? Mas também é certo que só podemos sentir-nos responsáveis no âmbito político, como o somos em nossa própria vida individual, se deixarmos a decisão nas mãos do político racional e responsável, no qual depositamos nossa confiança. VERDADE E METODO II OUTROS 23.

A convenção constitui uma realidade melhor que a impressão produzida pela palavra em nossos ouvidos. Significa estar de acordo e dar validez a esse acordo. Não significa a exterioridade de um sistema de regras impostas de fora, mas a identidade entre a consciência individual e as crenças representadas na consciência dos outros. Significa ainda as ordenações vitais assim criadas. Em certo sentido, é uma questão de racionalidade, e de racionalidade não unicamente no sentido técnico-pragmático de razão, onde costumamos usar a palavra razão. Dizemos, por exemplo: se quero isso e aquilo, o razoável é como primeiro fazer isso e aquilo. É a célebre "racionalidade instrumental" (Zweckrationalität) de Max Weber. Quem quer um determinado fim deve saber os meios que conduzem e os que não conduzem a ele. Por isso, a ética não é mera questão de intenção. Também nosso saber ou não saber deve ser assumido responsavelmente. O saber faz parte do ethos. Mas certamente isso não é tudo o que caracteriza a racionalidade no sentido moral e político da phronesis aristotélica, em virtude da qual sabemos utilizar os meios adequados para determinados fins. Na sociedade humana, tudo depende de como esta determina seus fins, ou melhor, como alcança o consenso para assumir os fins que devem ser confirmados por todos e como encontra os meios justos. Pois bem, creio que a suposição, prévia a qualquer explicação teórica, da aceitação generalizada de um ideal de racionalidade que determine seu conteúdo reveste-se sempre de uma importância decisiva para todo o tema do saber teórico nesse campo da praxis da vida. VERDADE E METODO II OUTROS 23.

A pretensão de validez inerente à instituição do direito faz com que esse adquira o estatuto de texto, codificado ou não. A lei, enquanto estatuto ou constituição, necessita sempre da interpretação para a sua aplicação prática, o que significa, por outro lado, que toda aplicação prática implica interpretação. Por isso a jurisprudência, os casos precedentes e a praxis anterior comportam sempre uma função legislativa. Nesse sentido, o âmbito jurídico mostra exemplarmente até que ponto a redação deve sempre ser feita tendo-se em mente sua interpretação, ou seja, uma aplicação correta e razoável. É preciso assinalar que o problema hermenêutico no procedimento oral e no escrito é no fundo o mesmo. Pensemos, por exemplo, no interrogatório de testemunhas. Essas não podem ser pessoas versadas nas condições da investigação e no trabalho de busca da justa sentença. Assim, a pergunta a elas dirigida apresenta o caráter abstrato de "texto", e a resposta que darão é do mesmo gênero. O que significa que essa resposta tem o caráter de uma declaração escrita. Prova disso é a insatisfação com que as próprias testemunhas acolhem a protocolação de uma declaração. Não podem negar o que dizem, mas não lhe agrada deixá-lo nesse isolamento, querendo interpretá-lo de imediato eles mesmos. A tarefa de fixação e, portanto, a redação do protocolo deve levar isso em conta, uma vez que, na reprodução do que realmente foi dito, o protocolo, na medida do possível, deve ajustar-se à intenção do declarante. O exemplo da declaração das testemunhas mostra, ao contrário, como o procedimento escrito (ou os componentes da escritura no processo) influi no desenvolvimento do diálogo. A testemunha isolada em sua declaração encontra-se de antemão confinada à expressão escrita dos resultados da investigação. Uma situação parecida ocorre quando pedimos para que a promessa, a ordem dada ou a formulação da pergunta sejam feitas por escrito: também isso supõe uma separação da situação comunicativa original e deve expressar o sentido originário em forma de fixação escrita. Em todos esses casos é evidente a referência à situação comunicativa original. VERDADE E METODO II OUTROS 24.

É claro que não basta distinguir entre a fundamentação teórica da interpretação e uma dimensão de sua aplicação prática. A hermenêutica como "arte" pertence ao âmbito da scientia practica, e a questão é saber se scientia practica significa a mera aplicação da ciência à praxis, como pressupõe Husserl   quando refuta a tradução das leis lógicas a normas artificiais do reto pensar, mostrando seu sentido teórico fundamental. Tanto a ciência que busca o ente perene e o ente que é a partir de si mesmo quanto a arte cujo saber trata do elemento produtivo e criador têm o caráter específico do saber que é decisivo para a scientia practica e seus representantes modernos, a "razão prática", e cujo caráter normativo não é de natureza teórica nem técnica. Isso fica claro no plano da hermenêutica jurídica, onde a busca da sentença justa não é uma mera subsunção do caso particular no caso geral (as cláusulas da lei). A busca das "cláusulas" corretas repousa, antes, numa decisão própria criativa, complementaria ou aperfeiçoadora do direito. Algo parecido pode-se dizer da missão querigmática do pastor de almas: a bagagem teológica não lhe basta para exercer o ministério. Seria um erro, no entanto, crer que essas decisões, que a ciência teórica não pode arrebatar ao juiz ou ao pastor de almas, estejam à mercê de determinações irracionais. É preciso definir mais exatamente o que significa a razão em tais decisões. VERDADE E METODO II ANEXOS 28.

Há, porém, um último aspecto que pode servir inclusive para as sciences "verdadeiras". Muito embora tenhamos que fazer algumas distinções ali. Quando na microfísica moderna não se pode eliminar o observador dos resultados de suas medições e assim ele próprio deve aparecer nos enunciados da mesma, isto tem um sentido muito preciso e que pode ser formulado em expressões matemáticas. Na investigação moderna sobre o comportamento, quando o investigador descobre estruturas que determinam também o seu próprio comportamento a partir da determinação do que herdou historicamente de seus predecessores, isso fará com que [451] aprenda algo também sobre si mesmo. O que só acontece porque está vendo a si mesmo de modo diferente do que via por sua "praxis" e sua autoconsciência, e na medida em que isso não o subjuga a um pathos de glorificação nem de humilhação do homem. Ao contrário, quando, em todos os seus conhecimentos e avaliações, o historiador mantém presente seu próprio ponto de vista, isso não representa uma objeção contra sua cientificidade. Com isso ainda não se decidiu se o historiador, em virtude dessa vinculação com o seu ponto de vista, se enganou ou compreendeu e avaliou mal a tradição, ou se conseguiu trazer à luz o que até então não havia sido observado, justamente porque seu ponto de vista lhe permitiu observar algo análogo na experiência imediata e histórico-tempo-ral. Encontramo-nos aqui em meio a uma problemática hermenêutica. Mas isso ainda não significa que não são meios metodológicos da ciência que servem de referência a alguém para decidir sobre o que é falso ou verdadeiro, para isolar o erro e alcançar o conhecimento. Nas ciências "morais" isso não faz nenhuma diferença em relação às sciences "verdadeiras". VERDADE E METODO II ANEXOS 29.

O que diferencia a práxis hermenêutica e sua disciplina da aprendizagem de uma mera técnica, seja uma técnica sociológica ou um método crítico, é que naquela um fator da história dos efeitos contribui constantemente para determinar a consciência de quem compreende. Isso implica necessariamente seu reverso, a saber, aquilo que é compreendido desenvolve sempre uma certa força de persuasão, colaborando assim na formação de novas persuasões. Não nego o fato de que quem busca compreender deve distanciar-se das próprias opiniões sobre as coisas. Aquele que quer compreender não precisa afirmar aquilo que está compreendendo. No entanto, penso que a experiência hermenêutica nos ensina que esse esforço só se torna eficiente dentro de certos limites. Aquilo que se compreende fala sempre também por si próprio. Nisso reside toda a riqueza do universo hermenêutico, que está aberto a tudo que é compreensível. Na medida em que coloca em jogo toda amplidão de seu espaço de jogo, o objeto obriga aquele que compreende a pôr em jogo seus próprios preconceitos. Esses são os benefícios da reflexão adquiridos na praxis e somente nela. O universo da experiência do filólogo e seu "ser para o texto", que coloquei em primeiro plano, não passa de um fragmento e um campo de ilustração metodológica para a experiência hermenêutica, imbricada no todo da práxis humana. É verdade que nessa experiência a compreensão do que está escrito reveste-se de uma importância especial. Mas trata-se apenas de um fenômeno tardio e por isso secundário. A experiência hermenêutica tem na verdade um alcance tão amplo quanto o da disposição ao diálogo dos seres racionais. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.

Num sentido formal   último, de certo, existe algo previamente decidido para toda praxis humana, a saber, que tanto o indivíduo quanto a sociedade estão orientados para a "felicidade". Isso parece uma declaração natural e de uma racionalidade evidente. Entretanto, temos de concordar com Kant que a felicidade, esse ideal da imaginação, dispensa toda determinação vinculante. A nossa necessidade prática de razão, no entanto, exige que pensemos nossos objetivos com a mesma determinação que pensamos os meios adequados, ou seja, que em nosso agir estejamos em condições de preferir conscientemente uma possibilidade à outra e por fim de subordinar um objetivo a outro. Longe de simplesmente supor ordenações dadas da vida social e de formular nossas reflexões práticas de escolha dentro desse quadro dado, em cada decisão que tomamos encontramo-nos sob uma conseqüência toda própria. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.

A gênese de minha "filosofia hermenêutica", no fundo, não é nada mais que a tentativa de explicar teoricamente o estilo de meus estudos e de meu ensino. A praxis veio primeiro. Sempre procurei, quase com ânsia, não me perder em construções teóricas que não proviessem totalmente da experiência. Como continuei trabalhando intensamente como professor e sobretudo mantendo um contato intenso com meus discípulos mais próximos, só restavam-me as férias para trabalhar em meu livro. Esse trabalho durou [493] quase dez anos, e durante esse tempo procurei evitar o máximo possível qualquer coisa que me distraísse. Quando o livro apareceu — com o título Verdade e método, que só decidi durante a impressão — não estava muito seguro de não ter chegado tarde demais e de não ter escrito algo supérfluo. Isso porque podia-se pressentir o protagonismo de uma nova geração dominada em parte pelas expectativas tecnológicas e em parte pela afeição à crítica da ideologia. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.

O que eu ensinava era sobretudo a praxis hermenêutica. Essa é antes de mais nada uma praxis, a arte de compreender e de tornar compreensível. É a alma de todo ensino que queira ensinar [494] filosofia. É preciso exercitar sobretudo o ouvido, a sensibilidade para as predeterminações presentes nos conceitos, as concepções prévias e as significações prévias. Por isso, dediquei uma boa parte de meu trabalho à história do conceito. Com a colaboração da "Deutsche Forschungsgemeinschaft", organizei uma série de colóquios sobre história dos conceitos, com amplos relatórios, colóquios que promoveram depois muitas outras atividades similares. O rigor no uso dos conceitos requer um conhecimento de sua história para não sucumbir ao capricho da definição ou à ilusão de poder estabelecer uma linguagem filosófica vinculante. O conhecimento da história dos conceitos converte-se assim em um dever crítico. Busquei, no mais, secundar essas tarefas, fundando uma revista dedicada inteiramente à crítica, a Philosophische Rundschau, juntamente com Helmut Kuhn, cujo talento crítico eu havia admirado de imediato, antes de 1933, nos últimos anos dos antigos estudos sobre Kant. Essa revista permaneceu durante vinte anos sob a firme direção da Senhora Kate Gadamer  -Lekebusch, até ser recentemente confiada a pessoas mais jovens. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.

Uma dessas tradições é a tradição da retórica. Vico foi o último a defender com consciência metodológica essa tradição contra a [499] ciência moderna, a qual qualificou de critica. Já em meus estudos clássicos dei preferência especial à retórica, a arte do discurso e sua teoria. Sobretudo porque a retórica, num grau não suficientemente valorizado, fora o suporte da antiga tradição dos conceitos estéticos, como se pode observar ainda na definição de estética feita por Baumgarten. Hoje devemos insistir que a racionalidade do modo de argumentação da retórica é e continuará sendo um fator decisivo da sociedade, muito mais poderoso que a certeza da ciência. Isso, mesmo levando em conta que sua argumentação busca mexer com "afetos", apesar de exigir argumentos fundamentais e trabalhar com probabilidades. Por isso, em Verdade e método I fiz uma referência explícita à retórica e encontrei um eco positivo em diversos pensadores, sobretudo nos trabalhos de Ch. Perelman, que toma a praxis jurídica como ponto de partida. A insistência nesse tema não significa que se está esquecendo a relevância da ciência moderna e sua aplicação à civilização técnica atual. Muito pelo contrário. Embora a civilização moderna apresente problemas de mediação totalmente novos, em princípio a situação nada mudou. A tarefa "hermenêutica" de integração da monológica das ciências na consciência comunicativa — e isso inclui a tarefa de exercer a racionalidade em nível prático, social e político — tornou-se ainda mais urgente. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.

A meu ver, o programa aristotélico de uma ciência prática é o único modelo de teoria da ciência a partir donde se pode conceber as ciências "da compreensão". A reflexão hermenêutica sobre as condições da compreensão põe de manifesto que suas possibilidades se articulam em uma reflexão formulada dentro da linguagem, que [500] nunca começa do zero e não pode ser esgotada. Aristóteles mostra que a razão prática e o conhecimento prático não podem ser ensinados como a ciência. Eles só são possíveis na praxis, o que significa, na vinculação interna ao ethos. Convém não esquecer esse ponto. O modelo da filosofia prática deve ocupar o lugar dessa theoria  , cuja legitimação ontológica só poderia ser encontrada em um intellectus   infinitus, do qual nossa experiência existencial nada sabe sem apoio numa revelação. Esse modelo também deve ser contraposto a todos aqueles que subordinam a racionalidade humana à idéia metodológica da ciência "anônima". Frente ao aperfeiçoamento   da autocompreensão lógica da ciência, essa parece-me ser a verdadeira tarefa da filosofia, inclusive e justamente frente à significação prática da ciência para nossa vida e sobrevivência. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.