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Gadamer (VM): postulado hermenêutico

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

A segunda objeção que se pode fazer aqui foi desenvolvida sobretudo por Habermas contra minhas próprias teorias. Trata-se da questão de saber se não se está subestimando os modos da experiência que se dão à margem da linguagem quando se afirma, como faço eu, que é pela linguagem que articulamos a experiência de mundo como uma experiência comum. Na verdade, a multiplicidade de línguas não é uma objeção. Essa relatividade não é do tipo que nos redime de uma proscrição ou sina, como sabe todo aquele que consegue pensar um pouco em outros idiomas. Mas não haverá outras experiências da realidade que não se estruturam como linguagem? Temos por exemplo a experiência da dominação e a experiência do trabalho. Esses são os dois argumentos desenvolvidos por Habermas contra a universalidade do postulado hermenêutico, com esses argumentos ele interpreta manifestamente o entendimento operado na linguagem como uma espécie de círculo fechado de um movimento imanente de sentido a que ele chama de herança cultural dos povos. Ora, a herança cultural dos povos é antes de tudo uma tradição de formas e artes de domínio, de ideais de liberdade, teleologías de ordem etc. Quem poderá negar que nossas possibilidades humanas mais próprias não consistem simplesmente no dizer? Deveríamos admitir que toda experiência do mundo estruturada na linguagem experimenta o mundo e não a linguagem. O que articulamos no debate acerca da linguagem não constitui um encontro com a realidade? O encontro com o domínio e a falta de liberdade leva à formação de nossas ideias políticas. O que experimentamos na assimilação dos processos de trabalho como um caminho de nossa busca humana é o mundo do trabalho, mundo das capacidades. Seria uma falsa abstração pensar que no domínio e no trabalho não encontramos sobretudo experiências concretas de nossa existência humana, nossas valorações, nosso diálogo conosco mesmos encontram sua realização concreta e sua função crítica. O fato de nos movermos no mundo de linguagem, de estarmos inseridos em nosso mundo através da experiência pré-formada pela linguagem não restringe nossa possibilidade crítica. Ao contrário. [204] Abre-se para nós a possibilidade de ultrapassar nossas convenções e todas as nossas experiências pré-esquematizadas, dialogando com outras pessoas, pessoas que pensam diferente, aceitando um novo exame crítico e novas experiências. No fundo, em nosso mundo a mesma questão está sempre presente: a conformação da linguagem em convenções, em normas sociais, atrás das quais escondem-se sempre também interesses econômicos e de poder. Mas esse é justamente o mundo de nossa experiência humana, onde dependemos de nosso julgamento, isto é, da possibilidade de nos colocar-nos criticamente frente a todas as convenções. Na verdade, devemos essa capacidade de julgamento ao fato de nossa razão ser virtualmente linguagem. Não é a linguagem que impede o exercício de nossa razão. É verdade que nossa experiência de mundo não se produz apenas no aprendizado da fala e nos exercícios de linguagem. Existem experiências de mundo que são anteriores à linguagem, como sustenta Habermas com base nas investigações de Piaget. Existe a linguagem dos gestos, das fisionomias, dos acenos, que nos unem, o riso e o choro, cuja hermenêutica foi ressaltada por H. Plessner  . Existe o mundo construído pela ciência, no qual as linguagens exatas e específicas dos símbolos matemáticos acabam fornecendo uma base firme para a formação de teorias, capacitando-nos a fazer e a manipular, numa espécie de auto-apresentação do homo faber, da engenhosidade técnica do homem. Mas todas essas formas de auto-apresentação humana devem ser constantemente integradas naquele diálogo interno da alma consigo mesma. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 15.

"O mais importante é a intenção primordial e o ponto de vista central, ou, como dizemos nós, a finalidade do discurso". Melanchton introduz, assim, um conceito que é determinante na hermenêutica tardia de Flacius e que ele toma emprestado da introdução metodológica à ética aristotélica. É claro que, ao afirmar que os gregos costumavam interrogar desse modo ao iniciar seus livros (sid), Melanchton não se refere ao discurso em sentido estrito. O conhecimento da intenção básica de um texto é essencial, segundo ele, para uma compreensão adequada. Esse ponto é essencial também para a principal teoria exposta por Melanchton, que é sem dúvida sua doutrina sobre os loci comunes. Introduz essa doutrina como parte da inventio, seguindo assim a antiga tradição da tópica. Ele está, porém, plenamente consciente da problemática hermenêutica que nela se aloja. Ele acentua que esses capítulos mais importantes, "que contêm as fontes e o resumo de toda a arte" , não é apenas um grande cabedal de opiniões, cujo conhecimento seria muito proveitoso para o orador e o mestre — porque na verdade uma boa compilação desses loci constituiria a totalidade do saber. Implicitamente, isso significa uma crítica hermenêutica à superficialidade de uma tópica retórica. Ao contrário, busca a justificação de seu próprio proceder. Isso porque Melanchton foi o primeiro a fundamentar a dogmática do protestantismo antigo numa escolha e compilação significativas de passagens decisivas da Sagrada Escritura; os lociprecipui editados em 1519. A crítica católica tardia ao princípio bíblico protestante não é totalmente justa quando denuncia uma inconsequência no princípio bíblico dos formadores à luz da apresentação desses enunciados dogmáticos. De certo, toda seleção de textos inclui uma interpretação, apresentando assim implicações dogmáticas, mas o postulado hermenêutico da teologia protestante primitiva consiste justamente em legitimar suas abstrações dogmáticas através da própria Escritura e a intenção desta. Uma outra questão é saber até onde os teólogos reformadores seguiram realmente o princípio da Escritura. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Tampouco podemos relegar Flacius, citado por Dilthey  , à literatura da controvérsia teológica, como faz Jaeger (38). É certo que a clavis de Flacius está a serviço de seus postulados teológicos. Mas seu fundamento é filológico-humanista em sentido geral. Flacius busca mostrar que a Sagrada Escritura pode ser compreendida como qualquer outro texto. Nesse sentido e como grande hebraísta e filólogo, Flacius defende a solução de Lutero   (sacra scriptura sui ipsius interpres) contra a polêmica tridentina que afirmava a necessidade da tradição magisterial da Igreja. Não é esse o momento adequado para indagar até que ponto Flacius realizou sua intenção, ou, mais exatamente, se em sua argumentação em favor da compreensibilidade da Bíblia se deixa levar por certos preconceitos dogmáticos injustificados e se isto constitui realmente um defeito, como afirmava ainda Dilthey. Creio que sua doutrina sobre o scopus, subjacente a todo esforço hermenêutico, está estreitamente relacionada com a teologia da justificação de Lutero, de modo que não é possível dissociar a nova reflexão hermenêutica do sentido religioso da leitura da Bíblia. Mas isso não se aplica do mesmo modo à tradição do humanismo e a seu ideal   da imitatiol Parece-me que o sentido normativo e canónico dos textos a serem interpretados — como na interpretação das leis — representa o momento decisivo de todo esforço de interpretação. Isso não significa em absoluto [297] nenhuma limitação do postulado hermenêutico de chegar a compreender um texto pouco inteligível. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.