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Gadamer (VM): pensamento filosófico

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Daí procede a muito marcante consciência que possui a filosofia dos nossos dias. Mas há uma outra pergunta, bem diferente: até que ponto a reivindicação da verdade de tais formas de conhecimento, situadas fora do âmbito da ciência, podem ser filosoficamente legitimadas? A atualidade do fenômeno hermenêutico repousa, ao meu ver, no fato de que apenas um aprofundamento no fenômeno da compreensão pode trazer uma tal legitimação. Não foi apenas em última instância que essa convicção veio a se fortalecer em mim, devido à importância que a história da filosofia possui no trabalho filosófico da atualidade. Diante da tradição histórica da filosofia, a compreensão se nos depara como uma experiência meditada, que nos deixa distinguir facilmente o que há de aparente no método histórico que paira sobre a pesquisa filosófica e a histórica. Faz parte da elementar experiência do filosofar, que os clássicos do pensamento filosófico, sempre que procuramos entendê-los, façam valer, de si mesmos, uma reivindicação de verdade que não pode ser rejeitada nem sobrepujada pela consciência contemporânea. A ingênua consciência da dignidade própria da atualidade até pode se rebelar contra o fato de que a consciência filosófica admite que seu próprio ponto de vista filosófico seja o de um Platão   ou Aristóteles  , de um Leibniz  , Kant   ou Hegel  , em contraposição a de outros de menor categoria. Pode-se considerar uma fraqueza do filosofar atual, que se dedique à interpretação e à compilação de sua tradição clássica, confessando sua própria fraqueza. No entanto, há uma fraqueza bem maior do pensamento filosófico, quando alguém não se submete a uma tal prova e prefere fazer o papel de tolo por conta própria. E preciso que a gente admita que na compreensão dos textos desses grandes pensadores se reconhece a verdade, que não seria acessível por outros meios, ainda que isso contradiga o padrão de pesquisa e de progresso com que a ciência mensura a si própria. VERDADE E MÉTODO Introdução

O empenho filosófico de nosso tempo se diferencia da clássica tradição da filosofia pelo fato de não representar nenhuma continuação imediata e ininterrupta dessa última. Por maior que seja a comunhão com sua origem histórica, a filosofia está hoje consciente de seu distanciamento com relação aos seus modelos clássicos. Isso caracteriza-se sobretudo na sua relação, alterada, com o conceito. Por mais graves que tenham sido as conseqüências e por mais profundas que tenham sido as transformações do pensamento filosófico ocidental, as quais surgiram nas línguas modernas com a latinização dos conceitos gregos e a uniformização da linguagem conceitual latina, o surgimento da consciência histórica nos últimos séculos significa uma censura de uma forma ainda mais profunda. Desde então a continuidade da tradição de pensamento do Ocidente vigora apenas e ainda de uma forma fragmentada. Pois perdeu-se a inocência ingênua, com a qual a gente tornava os conceitos da tradição úteis para os próprios pensamentos. Desde então, para a ciência, suas relações para com tais conceitos tornaram-se um estranho descomprometimento, quer suas relações com esses conceitos sejam da espécie de uma concepção erudita, para não dizer arcaizante, ou da espécie de uma manipulação técnica, que faz dos conceitos algo como ferramentas. Ambos não conseguem, na verdade, satisfazer à experiência hermenêutica. A conceptualidade em que se desdobra o filosofar, antes, já sempre nos tomou da mesma forma pela qual a linguagem em que vivemos nos convoca. Assim, dessa conscienciosidade do pensamento, faz parte o ato de se conscientizar desse preconceito. É uma consciência nova e crítica, que desde então vem acompanhando todo o filosofar responsável e que os costumes lingüísticos e de pensamento, que se formam para o indivíduo, na comunicação com o seu mundo circundante, colocam diante do fórum da tradição histórica, da qual todos nós fazemos parte. VERDADE E MÉTODO Introdução

Vale a pena que nos detenhamos agora nesse ponto nuclear do pensamento cristão, porque também para ele a encarnação está relacionada, de forma muito estreita, com o problema da palavra. Já desde os padres da Igreja, e obviamente [423] na elaboração sistemática do augustinismo da alta escolástica, a interpretação do mistério da trindade — a tarefa mais importante que se coloca ao pensamento medieval cristão — apóia-se na relação humana de falar e pensar. Com isso a dogmática segue sobretudo o prólogo do Evangelho de João, e por mais que os meios conceituais, com os quais ela procura resolver esse problema teológico, sejam de cunho grego, o pensamento filosófico ganha através deles uma dimensão que estava vedada ao pensamento grego. Quando o verbo se faz carne, e só nesta encarnação se consuma a realidade do espírito, o logos   se liberta com isso de sua espiritualidade, que significa simultaneamente sua potencialidade cósmica. A singularidade do acontecimento da redenção leva à introdução da essência histórica no pensamento ocidental e permite também que o fenômeno da linguagem emerja de sua imersão na idealidade do sentido e se ofereça à reflexão filosófica. Pois, diferentemente do logos grego, a palavra é um puro acontecer (verbum proprie dicitur personaliter tantum). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Com esse dado concorda também o fato de que Aristóteles confira sempre maior importância ao modo como se torna visível, no falar sobre as coisas, a ordem destas. (As "categorias" — e não somente o que em Aristóteles recebe expressamente esse nome — são formas de enunciação). A conceituação que a linguagem realiza não somente é empregada pelo pensamento filosófico, mas até ampliada por este, em determinadas direções. Já antes nos havíamos reportado ao fato de que a teoria aristotélica da formação dos conceitos, a teoria da epagogé, podia ser ilustrada com o aprendizado do falar pelas crianças. E de fato, embora também para Aristóteles seja fundamental a desmitificação platônica da fala — motivo decisivo de sua própria elaboração da "lógica" — e ainda que ele próprio tivesse o maior empenho em copiar a ordem da essência, lançando mão conscientemente da lógica da definição, e em particular na descrição classificatória da natureza, assim como em livrá-la de todos os acasos lingüísticos, ele mesmo fica atado por completo à unidade de linguagem e pensamento. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Com isso, toco no ponto de um verdadeiro desvio do pensamento de Heidegger, a que dedico grande parte de meu trabalho, e refiro-me em especial aos meus estudos de Platão. (Tive a satisfação de ver que justamente estes trabalhos significaram alguma coisa para o Heidegger dos últimos anos de sua vida.) A mim parece que não se pode ler Platão como o precursor da ontoteologia. Mesmo a Metafísica de Aristóteles possui dimensões diferentes do que as que foram reveladas por Heidegger em seu tempo. Para isso penso poder apelar, dentro de certos limites, para o próprio Heidegger. Penso sobretudo na predileção de Heidegger pela "famosa analogia  ". É assim que ele costumava dizer na época de Marburgo. A doutrina aristotélica da analogia entis foi para ele desde o princípio um recurso contra o ideal   da fundamentação última, como Husserl   num estilo semelhante a Fichte   havia assumido. Seguindo um distanciamento cuidadoso da auto-interpretação transcendental   de Husserl, encontramos em Heidegger freqüentemente a expressão "co-originariedade" — uma ressonância da "analogia" e uma versão au fond fenomenológico-hermenêutica. Não foi, portanto, somente a crítica aristotélica à idéia do bem que levou Heidegger do conceito de phronesis   para seu próprio caminho. Ele recebeu também um impulso do próprio núcleo da metafísica de Aristóteles, e principalmente da Física, como mostra seu artigo sobre a Physis  , muito rico em perspectivas. A partir dali fica claro por que atribuí um papel tão central à estrutura de diálogo da linguagem. O que aprendi de Platão, o mestre do diálogo, ou melhor, dos diálogos de Sócrates  , compostos por Platão, é que a estrutura de monólogo da consciência científica jamais permitirá, de modo pleno  , ao pensamento filosófico alcançar seus intentos. A minha interpretação do excurso à 7a Carta parece-me estar acima dos questionamentos críticos sobre a autenticidade desse fragmento. É só a partir daqui que podemos compreender por que a linguagem da filosofia, desde então, desenvolve-se constantemente no diálogo com sua própria história — antes disso, comentando, corrigindo e criando variações, e com o surgimento da consciência histórica, numa duplicidade nova e cheia de tensão entre a reconstrução histórica e a transposição especulativa. A linguagem da metafísica é e permanece sendo o diálogo, mesmo que esse se dê na distância de séculos e milênios. Por este motivo, os textos de filosofia não são propriamente textos ou obras, mas contribuições a um diálogo que dura através dos tempos. VERDADE E METODO II Introdução 1.

Entre os clássicos do pensamento filosófico, Hegel é um dos maiores defensores dessa objetividade (Sachlichkeit  ). Fala sobre a ação da coisa e caracteriza a verdadeira especulação filosófica pelo fato de que na objetividade (Sachlichkeit) estaria atuando a própria coisa (Sache) e não o capricho livre das idéias que nos ocorrem, isto é, de nosso comportamento reflexivo para com a coisa (Sache). Também a conhecida máxima fenomenológica "para as coisas elas mesmas", que cunhou uma nova atitude de investigação filosófica no princípio do século, tem em mente algo parecido. O que a análise fenomenológica quis colocar a descoberto foram as pressuposições incontroladas das construções e teorias inadequadas, preconceituosas e arbitrárias, demonstrando sua ilegitimidade pela análise imparcial. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 6.

O tema "história do conceito como filosofia" parece ser um questionamento secundário e uma disciplina auxiliar do pensamento filosófico, elevado imerecidamente à categoria de um postulado universal. Isso porque o tema propõe a tese de que a história dos conceitos seja filosofia ou até talvez de que a filosofia deva ser história dos conceitos. São teses, sem dúvida, não muito fáceis de justificar e fundamentar, devendo por isso ser examinadas. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.

Será que a linguagem e o pensamento da filosofia estão de tal modo constituídos que podem lançar mão e desfazer-se dos conceitos da filosofia, extraídos prontos de uma caixa de ferramentas, e assim forjar o conhecimento e rejeitar aquilo que não serve aos seus objetivos? É preciso admitir que, em certo sentido, a coisa se dá desse modo, uma vez que a análise dos conceitos inclui sempre também a crítica da linguagem e que pela análise lógica e exata dos conceitos descobrem-se pseudoquestões e pseudopreconceitos. O ideal de uma linguagem conceptual unívoca, buscada especialmente no início de nosso século pela lógica filosófica com tanto entusiasmo, acabou no entanto impondo limites a si mesmo em virtude do imanente desenvolvimento desse mesmo postulado. A idéia de uma linguagem artificial pura para o pensamento filosófico acabou mostrando-se inexequível nas vias da auto-análise lógica, à medida que sempre precisamos da linguagem que falamos, se quisermos introduzir linguagens artificiais. A linguagem que falamos é de tal natureza que, em certa medida, está constantemente exposta ao engano de nosso conhecimento. Já Bacon denunciou os idola fori, os preconceitos no uso da linguagem, como sendo empecilhos para uma investigação do conhecimento livre de preconceitos. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.

Se o que caracteriza a conceitualidade filosófica é o fato de o pensamento estar sempre na necessidade de buscar uma expressão\ realmente adequada àquilo que ele quer propriamente dizer, então toda filosofia incorre no perigo de o pensamento sempre se colocar aquém de si mesmo e sofrer uma inadequação de seus recursos conceptuais trazidos da linguagem. Isso é fácil de se ver nos exemplos acima mencionados. Zenão  , o seguidor mais próximo de Parmênides  , coloca a seguinte questão: Onde está propriamente o ser? Que lugar é este em que ele está? Se estiver em algo, então esse algo em que está deve, por seu turno, estar em algo outro. E certo que Zenão, tão astuto em suas perguntas, já não pôde manter o sentido filosófico da teoria do ser, e identificou o "ser" como o "todo". Não cremos, porém, que seja correto imputar somente aos seguidores a decadência do pensamento. A carência de linguagem própria do pensamento filosófico é a carência do próprio pensador. Onde a linguagem fracassa, ele já não consegue manter com segurança a orientação de sentido de seu pensamento. Não só Zenão, mas já o próprio Parmênides fala, como se aludiu acima, do ser como se fosse uma bola bem redonda. — Assim também em [88] Aristóteles, e não apenas na sua "escola", a função ontológica do conceito de matéria não foi pensada adequadamente e nem explicitada conceptualmente, de tal modo que a escola aristotélica já não pôde sustentar a intenção do pensamento original. Por isso, também para os intérpretes modernos, só poderá seguir sua verdadeira intenção a elucidação histórico-conceitual que se transfere igualmente para o actus do pensamento em busca de sua linguagem. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.

Não se deve pois considerar como carência de formação o fato de a palavra conceitual filosófica conservar a pertença e relação com a vida da linguagem, carregando consigo o uso vivo da linguagem, mesmo no emprego de termos consagrados. A tarefa da história do conceito surge no âmbito dessa vida da linguagem, que prossegue produzindo efeitos e sustenta a formação de conceitos. Não se trata somente de esclarecer historicamente conceitos individuais, mas de renovar a tensão de pensamento que se mostra nos pontos de fratura do uso filosófico da linguagem, em que se recusa o esforço do conceito. Essas "recusas", onde a relação de palavra e conceito se rompe e onde palavras cotidianas ganham a cunhagem artificial de enunciados conceituais novos, representam a verdadeira legitimação da história do conceito enquanto filosofia. Isso porque o que ali se mostra é a filosofia inconsciente, encontrada na formulação das palavras e conceitos da linguagem de nosso trato cotidiano, assim como na linguagem da ciência. Para além da cunhagem conceitual consciente, sua utilização é o caminho de uma demonstração de conceitos filosóficos, para o qual o conceito de "adequação" ganha um sentido novo, filosófico. Não se trata de adequação a um dado prévio da experiência, como acontece nas ciências empíricas, mas de uma adequação ao todo da experiência, representado por nossa orientação no mundo feita na linguagem. A demonstração histórico-conceitual pode liberar a expressão filosófica da rigidez escolástica e recuperá-la para a virtualidade do discurso vivo. Isso significa, porém, trilhar o caminho de volta da palavra conceitual para a palavra da linguagem para depois refazer o caminho da palavra da linguagem para a palavra conceitual. Neste caso, a filosofia é igual à música. O que se pode ouvir num laboratório Siemens, por exemplo, onde se eliminam os harmônicos através de aparelhos técnicos, não é música. Só se pode chamar de música à formulação que mostra também os harmônicos com tudo o que estes podem produzir de novos efeitos sonoros e nova capacidade expressiva de sons. É o que ocorre também no pensamento filosófico. As conotações das palavras por nós utilizadas permitem a presença da infinitude da tarefa do pensar, isso que é propriamente filosofia para nós e somente a partir do que ela se deixa cumprir — com todas as limitações. Por isso, o pensar filosófico individual e coletivo deve quebrar a rigidez dos assim chamados conceitos químicos puros. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.

O diálogo platônico e a conversação do Sócrates platônico constituem o modelo inamissível dessa arte de romper conceitos que se tornaram rígidos. Desfazem-se os conceitos normativos que se movimentam no reino do óbvio, atrás dos quais movimenta-se uma realidade inteiramente descompromissada, que pretende obter vantagens de poder. É quando se dá uma reatualização de nossa autocompreensão e tomamos consciência do que realmente se tem em mente nos conceitos normativos de nossa auto-interpretação moral  -política, que somos levados a trilhar o caminho do pensamento filosófico. Dessa forma, também para nós, não está em questão uma investigação histórico-conceitual como tal, mas o cultivo de uma disciplina no uso de nossos conceitos, a qual se pode aprender da investigação da história dos conceitos, e que pode proporcionar uma autêntica força vinculativa ao nosso pensar. Segue-se, porém, que o ideal da linguagem filosófica não pode ser [91] uma nomenclatura terminológicamente unívoca e desligada da vida da linguagem, mas a religação do pensar conceitual à linguagem e ao todo da verdade que nela está presente. No falar real ou no diálogo, e em nenhum outro lugar, a filosofia tem sua verdadeira pedra de toque, essa que é sua, propriamente sua. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.

Aqui vemo-nos remetidos diretamente à Antigüidade e à relação específica entre mito e logos, que se encontra no início do pensamento grego. O esquema corrente do Iluminismo, segundo o qual o processo de desencantamento do mundo leva necessariamente do mito para o logos, parece-me um preconceito moderno. Tomando por base esse esquema, torna-se incompreensível, p. ex., como a filosofia ática pôde se opor às tendências do Iluminismo grego e estabelecer uma reconciliação secular entre a tradição religiosa e o pensamento filosófico. Devemos a Gerhard Krüger o magistral esclarecimento das pressuposições religiosas do filosofar grego e sobretudo platônico. A história de mito e logos nos primórdios do mundo grego tem uma estrutura bem mais complexa do que faz supor o esquema do Iluminismo. Frente a essa realidade podemos compreender a grande desconfiança que alimentava a investigação científica da Antigüidade frente ao valor religioso das fontes do mito e a preferência que demonstra pelas formas estáveis da tradição no culto. É que a capacidade de transformação inerente ao mito, sua abertura para sempre novas interpretações por parte dos poetas, acaba obrigando a reconhecer que se trata de uma falsa questão perguntar em que sentido esse mito antigo era objeto de "crença" e se, uma vez tendo entrado no jogo poético, faz sentido se acreditar no mito. Na verdade, o mito está tão intimamente aparentado com a consciência filosófica, que mesmo a explicação filosófica do mito na linguagem do conceito não acrescenta nada de essencialmente novo àquela alternância viva entre descobrimento (entdeckung  ) e velamento (verhüllung  ), entre temor reverente e liberdade de espírito, que acompanha toda a história do mito grego. Devemos ter isso em mente se quisermos compreender corretamente o conceito de mito implícito no programa de desmitologização de Bultmann  . O que Bultmann chama de imagem mítica do mundo e seu contraste com a imagem científica de mundo, que se nos apresenta como verdadeira, parece não ter o caráter definitivo que se lhe atribuiu no debate sobre esse programa. No fundo, a relação de um teólogo cristão com a tradição bíblica não é muito diferente da relação de um grego com seus mitos. A formulação casual e em certo sentido ocasional do conceito de desmitologização proposta por Bultmann, na verdade a suma de toda sua teologia exegética, pode ter tudo, menos um sentido iluminista. O que o aluno de ciência histórica da Bíblia procura na tradição bíblica, antes de qualquer coisa é o que se afirma contra todo Iluminismo histórico, ou seja, o que constitui o verdadeiro suporte do anúncio, do querigma, o que representa o verdadeiro chamado da fé. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9.

Na verdade, a essência da linguagem não constitui o ponto central do pensamento filosófico do Ocidente. É bem verdade que sempre chamou a atenção que na história da criação, narrada no Antigo Testamento, Deus outorgou ao primeiro homem o domínio do mundo, ao lhe permitir nomear os seres do modo que melhor lhe conviesse. Também a história da Torre de Babel atesta o significado fundamental da linguagem para a vida do homem. Mesmo assim, foi justamente a tradição religiosa do Ocidente cristão que acabou paralisando de certo modo o pensamento sobre a linguagem. De fato foi só a época do Iluminismo que se colocou de maneira nova a pergunta pela origem da linguagem. Deu-se um grande passo quando se deixou de responder a questão da origem da linguagem sob a perspectiva do relato da criação, mas a partir da natureza do homem. Pois só assim tornou-se inevitável um passo adiante, ou seja, admitir que a naturalidade da linguagem não permite colocar a questão de um estado anterior do homem, destituído de linguagem, e conseqüentemente a questão da origem da linguagem. Herder e W. von Humboldt   caracterizaram a humanidade originária da linguagem como linguagem originária do homem, desenvolvendo o significado fundamental desse fenômeno para a visão humana do mundo. A diversidade da estrutura da linguagem humana foi o campo de investigação do antigo ministro da cultura, o sábio de Tege retirado da vida pública que pela obra produzida em sua velhice tornou-se o fundador da moderna ciência da linguagem. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 11.

A fundação da filosofia da linguagem e da ciência da linguagem por Wilhelm von Humboldt não representou, contudo, uma autêntica restauração da visão aristotélica. Como seu objeto de investigação eram os idiomas dos povos, abriu-se um caminho de conhecimento que pôde esclarecer de maneira nova e fecunda a diversidade dos povos e dos tempos e a essência humana comum a eles subjacente. Mas o que definiu aqui o horizonte da pergunta pelo homem e pela linguagem foi apenas admitir no homem uma [148] faculdade e esclarecer o regimento estrutural dessa faculdade — que chamamos de gramática, sintaxe, vocabulário da linguagem. No espelho da linguagem, podiam se reconhecer as cosmovisões dos povos, conhecer detalhadamente a estrutura de sua cultura — um bom exemplo é o conhecimento do estágio cultural da constituição dos povos indogermánicos, que devemos às excelentes investigações de Viktor Hehns sobre plantas de cultivo e animais domésticos. A ciência da linguagem, como qualquer outra pré-história, representa a pré-história do espírito humano. Mesmo assim, nesse modo de pensar, o fenômeno da linguagem só adquire o significado de um campo de expressão eminente, no qual é possível estudar a essência do homem e sua evolução na história. Por essa via, no entanto, não é possível penetrar nos postulados centrais do pensamento filosófico. Isso porque no pano de fundo de todo pensamento moderno encontrava-se ainda a definição cartesiana de consciência como autoconsciência. Esse inabalável fundamento de toda certeza, o mais certo de todos os fatos, o fato de que conheço a mim mesmo, tornou-se no pensamento da modernidade o parâmetro para tudo que quisesse satisfazer ao postulado de conhecimento científico. Também a investigação científica da linguagem acabou apoiando-se no mesmo fundamento. Tratava-se da espontaneidade do sujeito, a qual possui uma de suas formas de confirmação na energia que forma a linguagem. Por mais fecunda que pudesse ser a interpretação dessa cosmovisão subjacente aos idiomas, feita a partir desse princípio, não é possível entrever o enigma que a linguagem propõe ao pensamento humano. Pois a essência da linguagem comporta igualmente uma inconsciência abissal da mesma. Nesse sentido, a caracterização do conceito de linguagem não é um resultado fortuito e a posteriori. A palavra logos não significa apenas pensamento e linguagem, mas também conceito e lei. A cunhagem do conceito de linguagem pressupõe uma consciência de linguagem. Mas isso é apenas o resultado de um movimento reflexivo, no qual o sujeito pensante reflete a partir da realização inconsciente da linguagem, colocado a uma distância de si próprio. O verdadeiro enigma da linguagem, porém, é que isso jamais se deixa alcançar plenamente. Todo pensar sobre a linguagem, pelo contrário, já foi sempre alcançado pela linguagem. Só podemos pensar dentro de uma linguagem e é justamente o fato de que nosso pensamento habita a linguagem que constitui o enigma profundo que a linguagem propõe ao pensar. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 11.

No debate filosófico atual, há fundamentalmente duas respostas para a pergunta sobre o papel da filosofia nessa conscientização do real. Uma resposta tem como ponto de partida a necessidade de se aguçar e radicalizar a compreensão do que é o real hoje. Pertence a essa tarefa a destruição das ilusões românticas de um tempo áureo da origem e o reconhecimento de que já não dispomos de uma cidadela segura no mundo, entendido em sentido cristão. Podemos então deduzir que Deus se escondeu de nós, deixando-nos viver no abismo divino (Martin Buber) ou também que a [173] questão do "ser" caiu em total esquecimento, à medida que nossa tradição metafísica se consuma no domínio da ciência (Martin Heidegger). Desse modo, o pensamento filosófico compreender-se-ia como uma espécie de escatologia secular, servindo de base para uma esperança de virada e conversão que, embora não possa dizer o que espera, impõe-se por sustentar a necessidade de uma virada ao antecipar as conseqüências extremas da atualidade. Essa radicalidade que postula a consciência extrema do que é o real tem o mérito de não se reduzir à crítica cultural, cuja insinceridade consiste em desfrutar do que nega, impedindo desse modo a consciência da verdadeira realidade. Mas será que esse radicalismo vê corretamente o que é o real, se em tudo só consegue ver o nada? VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.

Também no âmbito do pensamento filosófico, o fenômeno do diálogo e sobretudo aquela forma específica do diálogo entre duas pessoas desempenharam uma importante função, e talvez na mesma confrontação que acabamos de descobrir como um fenômeno cultural comum. Foi sobretudo a época romântica e seu renascimento no século XX que conferiu ao fenômeno do diálogo uma função crítica frente à funesta monologização do pensamento filosófico. Mestres do diálogo como Friedrich Schleiermacher  , esse gênio da amizade, ou Friedrich Schlegel, cuja sensibilidade cativante era mais propícia a diálogos caudalosos do que a forma permanente aos conceitos, advogaram filosoficamente por uma dialética que atribuía ao modelo platônico de diálogo e de conversação uma primazia especial na busca da verdade. É fácil ver em que consiste [210] essa primazia. Quando duas pessoas se encontram e trocam experiências, trata-se sempre do encontro entre dois mundos, duas visões e duas imagens de mundo. Não é a mesma visão a respeito do mesmo mundo, como tenta comunicar o pensamento dos grandes pensadores com seu esforço conceitual e a elaboração de suas teorias. O próprio Platão não comunicou sua filosofia simplesmente em diálogos escritos em reconhecimento ao mestre do diálogo, Sócrates. Viu ali um princípio da verdade, segundo o qual a palavra só encontra confirmação pela recepção e aprovação do outro e que o pensamento que não viesse acompanhado do pensamento do outro seria inconseqüente e sem força vinculante. Cabe afirmar que todo ponto de vista humano tem algo de aleatório. O modo como alguém experimenta o mundo, pela visão, pelo ouvido e sobretudo pelo gosto permanece um mistério pessoal intransponível. "Quem pode mostrar um cheiro com os dedos?" (Rilke  ). Assim como nossa apercepção sensível do mundo é ineludivelmente privada, também nossos impulsos e nossos interesses individualizam-nos, e nossa razão, comum e capaz de apreender o comum a todos, permanece impotente diante dos ofuscamentos alimentados pela nossa individualidade. Assim, o diálogo com os outros, suas objeções ou sua aprovação, sua compreensão ou seus mal-entendidos, representam uma espécie de expansão de nossa individualidade e um experimento da possível comunidade a que nos convida a razão. Poderíamos imaginar toda uma filosofia do diálogo, partindo dessas experiências: o ponto de vista intransferível do indivíduo, onde se espelha a totalidade do mundo, e a totalidade do mundo que se apresenta nos pontos de vista individuais de todos os outros como um e o mesmo. A extraordinária concepção metafísica de Leibniz, admirada também por Goethe  , foi de que a multiplicidade de espelhos do universo, representados pelos indivíduos, singulares, forma na sua totalidade um único universo. Isso se deixa configurar num universo do diálogo. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 16.

O melhor a fazer é examinar isso num exemplo concreto. Vejamos, por exemplo, para ficar dentro do âmbito de minha competência, a história da interpretação dos pensadores pré-socráticos no século XX. Ali, cada interpretação coloca em jogo determinados preconceitos: Joël, usa o preconceito da ciência da religião; Karl Reinhardt, o do iluminismo lógico; Werner Jaeger, um monoteísmo religioso inexplícito (como W. Bröcker mostrou de maneira brilhante [262]), e eu mesmo, quando inspirado na exposição da questão do ser de Heidegger, procuro compreender "o divino" à luz da filosofia clássica e do pensamento filosófico. Em todos esses casos pode-se perceber a atuação de um preconceito orientador, que se torna produtivo exatamente por corrigir preconceitos vigentes até o presente. Aqui não se aplicam aos textos concepções preconcebidas, mas procura-se compreender o que se encontra ali. Procura-se compreender melhor, uma vez que se percebe o preconceito do outro. Mas essa percepção só é possível porque se olha o que se encontra ali com novos olhos. A reflexão hermenêutica não é dissociável da práxis hermenêutica. VERDADE E METODO II OUTROS 19.

Não se pode responsabilizar tão globalmente a "hermenêutica recente" pelos erros modernistas. Há que se dizer, antes, que a tarefa da reflexão hermenêutica é superar a oposição da clássica querelle des anciens et des modernes, sem pronunciar-se a favor da fé progressista dos modernos nem a favor da modéstia da mera imitação   dos antigos. Isso significa desmascarar por um lado o preconceito ligado à primazia da autoconsciência e à norma de certeza da cientificidade metodológica e controlar por outro lado o preconceito contrário: nossa suposta capacidade de eliminar sem mais a era cristã e a ciência moderna. Isso já foi expresso muito claramente por Schiller   em sua célebre caracterização de Goethe. Dar razão aos antigos não pode significar um retorno a eles nem sua imitação. No caso da hermenêutica, isso significa apenas que o pensamento filosófico moderno baseado na autoconsciência deve tomar consciência de sua unilateralidade e aceitar a experiência hermenêutica segundo a qual os antigos nos permitem compreender certas coisas melhor que os modernos. Jaeger refere-se a esse "subjetivismo" quando polemiza com a "hermenêutica construtivista" e com os "atos doadores de sentido" de Husserl? Se fosse assim, eu estaria plenamente de acordo. Mas isso me parece incompatível com o pensamento do autor. Como se comporta com relação às suas alusões a Heidegger? Que nos resta, então? Existir novamente sem tradição, como Jaeger atribui à hermenêutica moderna? Simplesmente ignorar a tradição em que estamos e na qual ele mesmo está? VERDADE E METODO II OUTROS 21.

Contra meus trabalhos intelectuais, Theodor Litt provavelmente objetaria que uma justificação filosófica das ciências do espírito, apoiada no modelo aristotélico de phronesis, deve admitir um a priori   que não pode ser simplesmente o resultado de uma universalização empírica. A filosofia prática de Aristóteles se equivocaria se fundamentasse seu princípio no "que" (dass  ), sem reconhecer que ela própria, enquanto filosofia, como um querer saber teórico, não pode depender de algo que aparece na experiência como um ethos   concreto e como uma razão que atua praticamente. Litt atinha-se, pois, à reflexão transcendental que guiara também Husserl e o Heidegger de Ser e tempo  . Mas pareceu-me e continua parecendo que esse procedimento, embora justificado frente a uma [329] teoria empirista-indutivista, esquece que essa reflexão encontra seu fundamento e sua limitação na práxis da vida donde provém sempre. Essa constatação impede o acesso a uma reflexão que se aventura num escalonamento idealista até o "espírito". Creio que a cautela aristotélica e a autolimitação de sua idéia do bem encontram sua justificação na vida humana, e que impõem de maneira justa — quem sabe com Platão — ao pensamento filosófico a vinculação à sua própria finitude. Essa vinculação se impõe no modo como nós experimentamos a finitude, ou seja, dentro de nosso condicionamento histórico. Esse pensamento filosófico, porém, não é de princípio nenhuma mera generalização empirista. VERDADE E METODO II OUTROS 23.

Como se sabe, mais tarde Heidegger abandonou o conceito de hermenêutica porque viu que por essa via não poderia romper o feitiço da reflexão transcendental. Seu filosofar, que procurou separar-se do conceito do transcendental sob o signo da "virada", levou-o a uma crescente penúria no âmbito da linguagem até o ponto de muitos leitores crerem encontrar na nova linguagem de Heidegger mais poesia do que pensamento filosófico. Essa interpretação parece-me um erro. Em função disso, um dos temas que abordo tem sido a busca de maneiras para explicitar a linguagem de Heidegger sobre o ser, um ser que não é o ser do ente. Isso me aproximou mais da história da hermenêutica clássica e me obrigou a afirmar o novo na crítica da mesma. Minha idéia é que nenhuma linguagem conceitual, nem sequer o que Heidegger chama "linguagem da metafísica", significa um feitiço irremediável para o pensamento, supondo que o pensador se confie à linguagem, isto é, entre em diálogo com outros pensadores e com pessoas que pensam de maneira diferente. Por isso, aceitando totalmente a crítica ao conceito de subjetividade feita por Heidegger, conceito no qual demonstrou a sobrevivência da idéia de substância, busquei detectar no diálogo o fenômeno originário da linguagem. Isto significou, por sua vez, uma reorientação hermenêutica da dialética, desenvolvida pelo idealismo alemão como método especulativo, até a arte do diálogo vivo, no qual se havia realizado o movimento intelectual socrático-platônico. Essa arte não pretendia ser uma dialética meramente negativa. Embora sempre tivesse tido consciência de sua radical insuficiência, ainda não significa que a dialética grega pretendesse ser uma mera dialética negativa. Mas mesmo assim ela apresenta uma correção ao ideal metodológico da dialética moderna, que havia culminado no idealismo do absoluto. O mesmo interesse   me levou a indagar a estrutura hermenêutica, não primeiramente na experiência elaborada pela ciência mas na experiência da arte e da historia, que são os objetos das denominadas ciencias do espírito. A obra de arte, embora se apresente como um produto histórico e portanto como possível objeto de investigação científica, nos diz algo por si mesma, de modo que o que enuncia nunca pode ser esgotado pelo conceito. O mesmo podemos afirmar a respeito da experiencia da historia: o ideal de objetividade na [333] investigação da historia é apenas uma vertente, e uma vertente secundária da questão em causa, enquanto que o que caracteriza realmente a experiência histórica é nos encontrarmos num acontecer sem saber como isso nos acontece, e somente na reflexão nos darmos conta do que aconteceu. Nesse sentido a historia deve cada vez de novo ser reescrita a partir de cada presente. VERDADE E METODO II OUTROS 24.

Esse deslocamento pertence ao mesmo âmbito de problemas do papel que desempenha o fenômeno da linguagem em nosso pensamento. Não se trata de um enunciado meramente tautológico. Que a linguagem tenha adquirido um posto central no pensamento filosófico, se deve à virada que a filosofia deu no curso dos últimos decênios. Se o ideal de conhecimento científico que guia a ciência moderna se inspirou no modelo da concepção matemática da natureza, desenvolvido primeiramente na Mecânica de Galileu  , isso significa que a interpretação de mundo que se dá na linguagem, isto é, a experiência de mundo sedimentada pela linguagem no mundo da vida não constituiu o ponto de partida da investigação e da intenção de saber. O que constitui a essência da ciência, agora, é aquilo que pode ser explicado e construído a partir de leis racionais. Desse modo, embora conservando seu próprio modo de ver e de falar, a linguagem natural perdeu a primazia que lhe parece própria. Como uma prolongação lógica das implicações dessa moderna ciência natural matemática, o ideal da linguagem da lógica e da teoria da ciência moderna foi substituído pelo ideal de uma terminologia unívoca. Assim, o contexto das experiências de limite ligadas à universalidade do acesso científico ao mundo fez com que a linguagem natural passasse a ocupar de novo, como um "universal", o centro da filosofia. VERDADE E METODO II OUTROS 24.

No extremo fica claro o quão complexo é o ajuste do discurso à unidade e o arranjo de seus elementos, isto é, das palavras. Por exemplo, quando a palavra em sua polivalência se vangloria como possuidora de um sentido independente. Chamamos a isso um jogo de palavras. Ora, não se pode negar que ela, muitas vezes, alcança a independência unicamente quando utiliza a linguagem como adorno, o qual realça o engenho do orador, mas permanece totalmente subordinada à intenção de sentido do discurso. A conseqüência é que o sentido do discurso como um todo perde prontamente sua univocidade. Por trás da unidade do fenômeno sonoro aparece então a unidade oculta de significados heterogêneos e até opostos entre si. Nesse contexto, Hegel falou de instinto dialético da linguagem, e no jogo de palavras Heráclito   viu um dos testemunhos mais relevantes de sua intuição básica, a saber, os contrários são na verdade um e o mesmo. Mas esse é um modo de falar filosófico. Trata-se de rupturas da relação semântica natural do discurso que são úteis para o pensamento filosófico, uma vez que assim a linguagem vê-se forçada a abandonar seu significado objetivo imediato e favorecer o surgimento das especulações do pensamento. O sentido equívoco nos jogos de palavras representa a forma mais densa de manifestação do elemento especulativo, que se explicita em juízos contraditórios. Como disse Hegel, a dialética é a representação do especulativo. VERDADE E METODO II OUTROS 24.

Nessa altura talvez possamos acrescentar que também a Logische   Propädeutik (Propedêutica lógica), proposta por Kamlah e Lorenzen, que exige do filósofo a "introdução" metodológica de todos os conceitos legítimos para um enunciado cientificamente comprovável, está imersa no círculo hermenêutico de um saber prévio, pressuposto no âmbito da linguagem, e num uso de linguagem que deve ser purificado pela crítica. Nada temos contra um ideal da construção de uma linguagem científica, que em muitos âmbitos traz certamente importantes esclarecimentos, sobretudo para a lógica e para teoria da ciência. Para esse ideal, enquanto educação para um falar responsável, não se deveria colocar nenhuma restrição, mesmo no campo da filosofia. Aquilo que Hegel se propôs a fazer em sua Lógica, sob o pensamento central de uma filosofia que abarcasse toda a ciência, é o mesmo que procura fazer Lorenzen, de maneira nova, na reflexão sobre "investigação" e sua justificação lógica. De certo, trata-se de uma tarefa legítima. No entanto, gostaria de defender que a fonte do saber e do saber prévio, que emana da interpretação de um mundo sedimentado na linguagem, continuaria mantendo sua legitimidade mesmo que pudéssemos pensar a linguagem ideal da ciência como completa e perfeita, e isso vale também para a "filosofia". O Iluminismo da história dos conceitos, linguagem que eu mesmo adotei em meu livro e que uso da melhor maneira possível, é recusado por Kamlah e Lorenzen com a objeção de que o fórum da tradição não pode pronunciar nenhum julgamento unívoco e seguro. Creio ser uma exigência legítima poder responsabilizar-se diante desse fórum. Isso porém não significa inventar uma linguagem adaptada às novas idéias, mas extraí-la da linguagem viva. Essa exigência só pode ser realizada pela linguagem da filosofia, se conseguir manter aberto o caminho que vai da palavra para o conceito e vice-versa. Isso parece-me ser uma instância que mesmo Kamlah e Lorenzen levam em consideração em seu próprio procedimento como o uso de linguagem. De certo, isso não cria nenhum edifício metodológico da linguagem pelo do incremento paulatino de conceitos. Mas tornar conscientes as implicações contidas nos termos conceituais também representa um "método" e, na minha opinião  , um método adequado ao objeto da filosofia. Isso porque o objeto da filosofia não se resume a esclarecer reflexivamente os procedimentos das ciências. Tampouco consiste em tirar a "soma" da multiplicidade de nosso saber moderno, arredondando-a até alcançar a totalidade de uma "concepção de mundo". É verdade que a filosofia tem a ver com a totalidade de nossa experiência de mundo e de vida, e o faz de modo diferente do que todas as outras ciências. Seu envolvimento com essa tarefa se dá nos moldes de nossa própria experiência de vida e de mundo articulada na linguagem. Estou longe de afirmar que o saber dessa [461] totalidade represente um conhecimento realmente assegurado e que não deva ser sempre de novo submetido à crítica pelo pensamento. O que não se pode é ignorar esse "saber", seja que se expresse como sabedoria religiosa ou proverbial, como obra de arte ou como pensamento filosófico. A própria dialética de Hegel — não me refiro à sua esquematização de um método de demonstração filosófica, mas à experiência que forma a base de sua "inversão" de conceitos, que buscam compreender o todo — pertence a essas formas do auto-esclarecimento interior e de representação intersubjetiva de nossa experiência humana. Em meu livro, fiz um uso bastante vago desse modelo vago de Hegel e por isso gostaria de remeter a uma pequena e recente publicação intitulada Hegels Dialektik, Fünf hermeneutischen Studien (A dialética de Hegel — cinco estudos hermenêuticos), Tübingen, 1971, a qual contém uma explanação mais precisa, mas também uma certa justificação para essa vacuidade. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.

Aqui está em questão um ponto essencial. Essa discussão foi sustentada sobretudo por Habermas, de um lado, como o continuador da "teoria crítica", e de outro lado por mim mesmo. O procedimento de ambos os lados é tal que, por fim, entram em jogo pressuposições últimas difíceis de serem controladas. Por parte de Habermas e muitos outros, que seguem o velho lema do iluminismo que busca dissolver preconceitos obsoletos e suspender privilégios sociais através do pensamento e da reflexão, encontra-se a fé no "diálogo livre de coerções". Habermas adota aqui a pressuposição [466] fundamental do "entendimento contrafáctico". De minha parte, contraponho-lhe meu profundo ceticismo frente à supervalorização do pensamento filosófico na sua aplicação a uma função dentro da realidade social. Ou, dito de outro modo, meu ceticismo dirige-se contra a supervalorização irreal da razão em comparação com as motivações emocionais do ânimo humano. O fato de não conseguir pensar o confronto e a discussão entre hermenêutica e crítica ideológica sem o papel decisivo que desempenha ali a retórica, não é fruto de acaso literário, mas representa o delineamento muito bem refletido de um todo temático. Marx  , Mao e Marcuse — que hoje podem ser encontrados junto a muitas inscrições gravadas nos muros — não devem a sua popularidade certamente ao "diálogo racional livre de coerções"… VERDADE E METODO II ANEXOS 29.

Mas é isso nosso presente? Só Hegel é para nós esse presente? De certo, não devemos restringir dogmaticamente a Hegel. Se ele falou de um final da história, a ser alcançado quando chegasse a liberdade para todos, isso significa que a história só acaba no sentido de que não cabe estabelecer um princípio superior ao da liberdade de todos. A progressiva escravidão geral que começou a estabelecer-se como um destino ineludível da civilização mundial não seria a seus olhos nenhuma objeção contra o princípio. Seria simplesmente "pior para os fatos". Frente a Hegel, podemos perguntar, no entanto, se o princípio primeiro e último em que acaba o pensamento filosófico do ser é o "espírito". O pensamento dos jovens hegelianos orientou-se pela crítica a esse postulado, e a meu ver foi Heidegger o primeiro a abrir uma possibilidade positiva que transcende a mera inversão dialética. Essa é sua tese básica: a "verdade" não é a plena desocultação (Unverborgenheit  ), cuja realização ideal seria em última instância a autopresença do espírito absoluto. Heidegger nos ensinou que a verdade deve ser concebida como desvelamento e velamento ao mesmo tempo. Os grandes ensaios da tradição, nos quais de certo modo sentimo-nos identificados com o que dizem, movem-se todos nessa tensão. O que se enuncia não é tudo. É só o não dito o que converte o dito em palavra que pode nos alcançar. Essa idéia parece-me conter um acerto irreprovável. Os conceitos em que se formula o pensamento emergem de um muro de obscuridades. São unilaterais, afirmativos, cheios de preconceitos. Basta lembrar-nos do intelectualismo grego, da metafísica da vontade do idealismo alemão, ou do metodologismo dos neokantianos e dos neopositivistas. Expressam-se a seu modo, mas desconhecendo-se a si mesmos. Estão presos nos pressupostos de seus conceitos. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.

Para ver que a obra poética se constitui num corretivo do ideal da definição objetiva e da hybris dos conceitos, não precisei seguir o pensamento de Heidegger quando, armado com os poemas de Hölderlin  , enfrentou Hegel e interpretou a obra de arte como um acontecimento originário da verdade. Pude constatar isso com meus primeiros ensaios no campo do pensamento. Isso sempre deu o que pensar a minha própria orientação hermenêutica. A tentativa hermenêutica de analisar a linguagem partindo do diálogo — uma tentativa ineludível para um discípulo permanente de Platão — significa em última instância a superabilidade de qualquer fixação mediante o avanço do diálogo. Assim, a fixação terminológica, adequada no campo construtivo da ciência moderna e de seu objetivo de permitir a todos o acesso ao saber, torna-se suspeita na esfera dinâmica do pensamento filosófico. Os grandes pensadores gregos preservaram a mobilidade de sua própria linguagem inclusive nas ocasiões em que lançaram mão dessa fixação conceitual, a saber, na análise temática. Existe, no entanto, uma escolástica antiga, medieval, moderna e novíssima. Ela acompanha a filosofia como sua sombra. Isso significa que se pode avaliar a qualidade de um pensamento pela sua capacidade de quebrar as fossilizações existentes na linguagem filosófica tradicional. O ensaio programático de Hegel, manejado por seu método dialético, teve no fundo muitos antecedentes. Mesmo um pensador tão cerimonioso como Kant, que jamais deixou de lado o latim escolástico, encontrou sua "própria" linguagem, evitando neologismos, é verdade, mas extraindo numerosos significados novos dos conceitos tradicionais. Também o alto status de Husserl se determina frente ao neokantismo de sua época e da anterior pela força intuitiva de seu intelecto, que soube fundir as expressões tradicionais com a flexibilidade descritiva de seu vocabulário. Heidegger amparou-se precisamente no exemplo de Platão e de Aristóteles para justificar a novidade de sua criação de linguagem, e seus seguidores têm sido muito mais numerosos do que se poderia esperar diante das primeiras reações de assombro e escândalo. A filosofia, diferentemente da ciência e [507] da práxis da vida, defronta-se com uma dificuldade toda própria. A linguagem que falamos não foi feita para as finalidades do filosofar. A filosofia vê-se acometida de uma carência constitutiva de linguagem, e essa carência se faz sentir ainda mais quando o filósofo decide pensar com ousadia. Costuma ser característico do diletante o afã em "formar" conceitos arbitrários e "defini-los" com muita avidez. O filósofo reanima a força intuitiva da linguagem, e as ousadias e violências de linguagem podem ser pertinentes, quando ele consegue fazer com que penetrem na linguagem dos que pensam e seguem com ele. Isso significa, quando essa linguagem dinamiza, estende, ilumina unicamente o horizonte do entendimento. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.