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Gadamer (VM): ocorrência

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Essa crítica à doutrina da percepção pura, que se fez a partir da experiência pragmática, foi tornada, por Heidegger, em algo fundamental. Com isso, ela passa a ter validade também para a consciência estética, embora aqui o ver simplesmente não "faça vista grossa" sobre o que é visto, p. ex., com relação à sua utilidade geral para algo, mas demorar-se no aspecto. O olhar (Schauen) demorado e o perceber não são simplesmente um ver o puro aspecto, mas continuam sendo, eles próprios, um aprender como… O gênero de ser do que foi concebido (Vernommen) esteticamente não é ocorrência (Vorhandenheit  ). Onde se trata de uma representação significante, p. ex., em obras da arte plástica, desde que não sejam abstratas-desprovidas-de-objeto, a significância para o ler do aspecto é claramente norteadora. Só quando "reconhecemos" o que está representado, podemos "ler" uma pintura, só então é que ela é, no fundo, uma pintura. Ver significa subdividir desmembrando. Enquanto ficamos testando formas variáveis de agrupamento ou ficamos oscilando entre elas, como no caso de certos quadros enigmáticos, ainda não conseguimos ver o que é. Um quadro enigmático é, ao mesmo tempo, a eternização artística de tal oscilar, o "tormento" do ver. Algo semelhante a isso ocorre com a obra de arte lingüística. Só quando entendemos um texto — portanto, quando, pelo menos, dominamos a linguagem de que se trata — , é que poderá ser uma obra de arte lingüística para nós. Mesmo quando, por exemplo, escutamos a música absoluta, é necessário que a "entendamos". E somente quando a entendemos, quando ela se torna "clara" para nós, é que vem a ser para nós uma configuração artística. Assim, embora a música absoluta seja, como tal, uma pura mobilidade da forma, uma espécie de matemática toante, onde não há conteúdo objetivamente significativo que possamos perceber, não obstante o entender mantém uma relação para com o que é significativo. A indeterminação dessa relação é que representa a relação específica de significado de uma tal música. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Mas qual é o objeto propriamente dito dessa afirmação? O que é que ai se está afirmando? Não, certamente, a justiça de uma ordem ética mundial. A mal-afamada teoria trágica da culpa, que para Aristóteles quase não desempenha papel algum, não é um esclarecimento adequado nem mesmo para a tragédia moderna. Pois a tragédia não ocorre onde a culpa e o pecado correspondam uma à outra como que numa medição justa, onde surge uma conta ética de débito, sem nenhum resto. Mesmo na tragédia moderna, não pode nem deve haver completa subjetivação da culpa e do destino. Antes, o excesso de conseqüências trágicas é algo característico para a natureza do trágico. Apesar de toda a subjetividade do endividamento, continua atuante, mesmo na tragédia moderna, um momento daquela antiga supremacia do destino, tida como igual para todos. Parece que somente Hebel se encontra na fronteira daquilo que ainda podemos chamar de tragédia, tal qual a exatidão com que o ser culpado subjetivo está adequado ao desenvolvimento do acontecimento trágico. Por essa mesma razão, também o pensamento de uma tragédia cristã tem sua própria questionabilidade, já que, à luz da história da salvação divina, as dimensões de felicidade e infelicidade, constitutivas para a ocorrência trágica, não determinam mais o destino humano. Mesmo a engenhosa confrontação que Kierkegaard   fez do sofrimento na antigüidade, que é conseqüente de uma maldição que paira sobre uma estirpe, em contraste com a dor, que despedaça a consciência, desunida consigo mesma e posta em conflito, toca de leve a fronteira do trágico como tal. Sua reformulação do Antígona já não seria mais uma tragédia. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Sob o nome de instituição compreendemos a origem da adoção do sinal ou da função do símbolo. Mesmo os assim chamados sinais naturais, p. ex., todos os indícios e prenúncios de uma ocorrência natural são instituídos nesse sentido básico. Isto significa, somente se encontram numa função de sinal, quando são experienciados como sinais. Mas somente serão experienciados como sinal no caso de uma conjugação prévia de sinal e de sinalizado. Isso vale da mesma forma para todos os sinais artificiais. Aqui a adoção do sinal se realiza através da convenção, e a linguagem denomina o ato que lhe dá origem, através do qual são introduzidos, de instituição. Na instituição do sinal repousa, só então, o seu sentido referente, parecido, por exemplo, com o do sinal de trânsito, ou o sentido do sinal para a memória (para a lembrança), que repousa no ato de dar sentido à sua conservação, e assim por diante. Da mesma forma, o símbolo recua até a instituição, pois somente esta lhe empresta o caráter de re-presentação. Pois não é o seu próprio conteúdo de ser que lhe empresta seu significado, mas justamente uma instituição, uma investidura, uma consagração  , que dá significado ao que em si não tem significado, p. ex., o emblema nacional, a bandeira, o símbolo do culto. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

E se isso é assim, já não se pode evitar a conseqüência, de que a literatura — por exemplo, nessa forma artística, tão peculiarmente sua, que é o romance — tem, na leitura, uma existência tão originária, como a épica, na declamação do rapsodo ou o quadro, na contemplação do observador. Também a leitura do livro permaneceria, segundo isso, uma ocorrência em que o conteúdo lido se torna representação. É verdade que a literatura e sua recepção na leitura mostram um grau máximo de desvinculação e mobilidade. Sinal disso, já é o fato de que não nos é necessário ler um livro de uma só vez, de tal modo que o fato de deixá-lo de lado representa uma tarefa própria da retomada, coisa que não possui correlato no escutar ou no contemplar. Justamente isso permite notar, que a "leitura" corresponde à unidade do texto. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

A disciplina clássica, que se ocupa da arte de compreender textos, é a hermenêutica. Se nossas ponderações são corretas, o verdadeiro problema da hermenêutica terá que se colocar, no entanto, de uma maneira totalmente diferente da habitual. Terá de apontar na mesma direção em que nossa crítica à consciência estática havia deslocado o problema da estética. A hermenêutica teria, até, de ser entendida então de uma maneira tão abrangente que teria de incluir em si toda esfera da arte e seu questionamento. Qualquer obra de arte, não apenas as literárias, tem que ser compreendida no mesmo sentido em que [170] se tem de compreender qualquer outro texto, e esse compreender requer gabarito para tal. Com isso a consciência hermenêutica adquire uma extensão tão abrangente, que ultrapassa a da consciência estética. A estética deve subordinar-se à hermenêutica. E este enunciado não se refere meramente à periferia do problema, mas vale antes de tudo para o conteúdo. E, inversamente, a hermenêutica tem de determinar-se, em seu conjunto, de maneira que faça justiça à experiência da arte. A compreensão deve ser entendida como parte da ocorrência de sentido, em que se formula e se realiza o sentido de todo enunciado, tanto dos da arte como dos de qualquer outro gênero de tradição. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

O que Heidegger diz aqui não é em primeiro lugar uma exigência à praxis   da compreensão, mas, antes, descreve a forma de realização da própria interpretação compreensiva. A reflexão hermenêutica de Heidegger tem o seu ponto alto não no fato de demonstrar que aqui esta prejaz um círculo, mas, antes, que este círculo tem um sentido ontológico positivo. A descrição como tal será evidente para qualquer intérprete que saiba o que faz. Toda interpretação correta tem que proteger-se contra a arbitrariedade da ocorrência de "felizes idéias" e contra a limitação dos hábitos imperceptíveis do pensar, e orientar sua vista "às coisas elas mesmas" (que para os filólogos são textos com sentido, que também tratam, por sua vez, de coisas). Esse deixar-se determinar assim pela própria coisa, evidentemente, não é para o intérprete uma decisão "heróica", tomada de uma vez por todas, mas verdadeiramente "a tarefa primeira, constante e última". Pois o que importa é manter a vista atenta à coisa, através de todos os desvios a que se vê constantemente submetido o intérprete em virtude das idéias que lhe ocorram. Quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar. Tão logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete prelineia um sentido do todo. Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir de determinadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto prévio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se dá conforme se avança na penetração do sentido. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

De início afirmamos que só se pode chegar a tal, nos moldes como nos ocorre algo. É verdade que, em relação às ocorrências, fala-se menos de perguntas do que de respostas, por exemplo, como solução de enigmas, e com isso queremos afirmar que não existe nenhum caminho metódico que leve à idéia da solução. Não obstante, sabemos também que o que nos ocorre não vem totalmente sem preparação. Isto pressupõe uma certa orientação para um âmbito do aberto, a partir do qual pode vir a ocorrência, o que significa que pressupõe perguntas. A verdadeira essência da ocorrência consiste talvez menos em que possa nos ocorrer algo parecido à solução de um enigma do que em que nos ocorra a pergunta que nos empurra para o aberto e com isso torne possível a resposta. Toda ocorrência tem a estrutura da pergunta. No entanto, a ocorrência da pergunta já é a erupção na extensão aplanada da opinião   comum. Portanto também das perguntas dizemos que nos ocorrem, que surgem ou que se colocam, mais do que, que nós as provocamos e as colocamos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Por mais adequada que seja essa exposição da idéia de hermenêutica por Dannhauer, a perspectiva que persegue Jaeger me parece unilateral. A consideração do conjunto do material filológico que nos traz o douto autor, e especialmente a aparição antiga da palavra, não nos leva à lógica e à teoria da ciência. O campo referencial da palavra remete-nos antes ao âmbito da retórica. Como isso não corresponde à intenção do autor, permito-me destacar esse aspecto da questão utilizando o material apresentado por ele. Em primeiro lugar, a já conhecida ocorrência da palavra na obra platônica Epinomis (84, nota 160). Não se pode duvidar, apelando ao paralelismo com a mântica, de que se trata aqui de um uso real da linguagem. A palavra refere-se ao trato com os deuses, que não é tão simples que pudesse interpretar o significado de seus sinais sem o recurso da arte. Ignoro por que o autor não simpatiza com essa passagem. Ninguém afirma que Platão a considere como uma arte muito nobre. Mas isso não tem importância aqui. É inegável que se trata aqui da mesma tarefa proposta à hermenêutica humanista, admitida também por Jaeger, mas também à hermenêutica mais recente que ele repudia: vir a compreender o que não se compreende (a situação fundamental na atividade do intérprete). VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

A palavra "hermenêutica" é antiga. Mas também a coisa que ela designa, tanto faz se hoje é retratada como interpretação, exposição, tradição ou simplesmente compreensão, é muito anterior à idéia de uma ciência metodológica como a construída na época moderna. Mesmo o uso moderno da linguagem ainda reflete algo de peculiar dualidade e ambivalência na perspectiva teórica e prática, sob as quais encontra-se o tema da hermenêutica. No final do século XVIII e princípios do XIX a ocorrência da palavra "hermenêutica" em casos particulares em alguns escritores mostra que o uso da expressão — provavelmente provinda da teologia — era corrente e designava somente a faculdade prática de compreender, isto é, uma perspicácia sutil e intuitiva para conhecer os demais. Era algo que se elogiava muito no diretor espiritual, por exemplo. Encontrei essa palavra no escritor alemão Heinrich Seume (que estudara com Morus em Leipzig) e em Johann Peter Hebel. Mas o próprio Schlei-ermacher, o promotor da nova evolução da hermenêutica na linha da metodologia geral das ciências do espírito, indica expressamente que a arte da compreensão não é necessária somente para o trato com textos, mas também no trato com pessoas. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.