Página inicial > Hermenêutica > Gadamer, Hans-Georg (1900-2002) > Gadamer (VM): linguisticidade e compreensão

Gadamer (VM): linguisticidade e compreensão

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

A relação essencial entre linguisticidade e compreensão se mostra, para começar, no fato de que a essência da tradição consiste em existir no médium da linguagem, de maneira que o objeto preferencial da interpretação é de natureza linguística. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Chegamos, assim, ao segundo aspecto sob o qual se apresenta a relação entre linguisticidade e compreensão. Não somente o objeto preferencial da compreensão, a tradição, é de natureza linguística, a própria compreensão possui uma relação fundamental com a linguisticidade. Havíamos partido do postulado de que a compreensão já é sempre interpretação, porque constitui o horizonte hermenêutico no qual a intenção de um texto em seu conteúdo objetivo (sachlich  ) teremos de traduzi-la à nossa língua, o que significa, porém, colocá-la em relação com o conjunto de intenções possíveis, no qual nos movemos, falando e dispostos a nos expressar. Já investigamos [400] isto em sua estrutura lógica, na posição destacada que convém à pergunta como fenômeno hermenêutico. Se neste momento nos vemos orientados para o caráter linguístico de toda compreensão, traremos à fala novamente a partir de outro aspecto, o que já foi demonstrado na dialética de pergunta e resposta. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Se se reconhece essa relação fundamental entre linguisticidade e compreensão, já não se poderá confirmar que o caminho que vai da inconsciência linguística à desvalorização linguística, passando pela consciência linguística, represente um processo histórico unívoco. Esse esquema não me parece suficiente sequer para a história das teorias da linguagem, e muito menos para a vida da própria linguagem em sua realização viva. A linguagem que vive no falar, que abarca toda a compreensão, inclusive a do intérprete dos textos, está tão envolvida na realização do pensar e do interpretar que verdadeiramente nos restaria muito pouco, se apartássemos a vista do conteúdo que nos transmitem as línguas e quiséssemos pensá-las só como forma. A inconsciência linguística não deixou de ser o modo de ser autêntico do falar. Por isso nos voltaremos preferencialmente para os gregos, que não possuíam nenhum termo para o que nós chamamos "linguagem", no momento em que começou a lhes ser problemática e digna de ser pensada a unidade de palavra e coisa que a tudo domina, e, dando continuidade a isso, examinaremos também o pensamento cristão da Idade Média, que voltou a pensar o mistério dessa unidade a partir de seu próprio interesse   teológico e dogmático. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Entretanto, a nós interessa menos essa coincidência, do que as diferenças entre a palavra divina e humana. Teologicamente, isso é também completamente correto. O mistério da trindade, embora iluminado pela analogia   com a palavra interior, permanece, em última análise, incompreensível para o pensamento humano. Se na palavra divina se expressa o todo do espírito divino, o momento processual dessa palavra significa, então, algo a respeito do que, no fundo, toda analogia nos deixa na estaca zero. Na medida em que, conhecendo a si mesmo, o espírito divino conhece ao mesmo tempo todo ente, a palavra de Deus é a palavra do espírito que em uma só contemplação (intuitus) contempla e cria tudo. O surgimento desaparece na atualidade da onisciência divina. Tampouco a criação seria um processo real, mas interpretaria tão-somente a ordenação da estrutura do universo no esquema temporal  . Se quisermos compreender de uma maneira mais exata o momento processual da palavra, que para nosso questionamento do nexo de linguisticidade e compreensão é o mais importante, não poderemos permanecer na coincidência com o problema teológico, mas teremos que nos deter na imperfeição do espírito humano e na sua diferença para com o divino. Também aqui podemos acompanhar Tomás quando destaca três diferenças. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.