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Gadamer (VM): hermenêutica protestante

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Mais ainda: a teologia da Reforma parece nem sequer ser consequente. Ao acabar reivindicando como fio condutor para a compreensão da unidade da Bíblia, a fórmula de fé protestante suspende, também ela, o princípio da Escritura, em favor de uma tradição reformatoria, que em todo caso é breve. Sobre isso, e deste modo, já apresentaram seu julgamento não só a teologia da Contra-reforma, mas também o próprio Dilthey  . Este glosa essas contradições da hermenêutica protestante, partindo do auto-senso pleno   das ciências históricas do espírito. Mais tarde teremos de nos indagar se essa autoconsciência realmente se justifica — precisamente também com relação ao sentido teológico da exegese bíblica — e se o princípio fundamental filológico-hermenêutico de compreender os textos a partir deles mesmos não trará em si uma certa insuficiência e não necessitará, ainda que não na maioria das vezes o reconheça, ser completado por um fio condutor de caráter dogmático. 957 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Essas poucas regras gerais da hermenêutica, apresentadas preliminarmente nessas "hermenêuticas", apoiadas na antiga retórica, por certo não justificam um interesse   filosófico por esses escritos. Não obstante a profunda problemática filosófica, que viria a aflorar plenamente só em nosso século, já se reflete na história inicial da hermenêutica protestante. É certo que o princípio luterano da sacra scriptura sui ipsius interpres contém uma clara recusa da tradição dogmática da Igreja Romana. Mas, uma vez que essa frase não quer defender uma teoria ingênua da inspiração e sobretudo que a teologia de Wittenberg, seguindo a tradução da Bíblia do grande intelectual Lutero  , lançava mão de um rico aparato filológico e exegético para justificar o próprio trabalho, a problemática de toda interpretação teve de assumir também o mote da sui ipsius interpres. O paradoxo desse princípio era por demais evidente e não houve como evitar que os defensores da tradição magisterial da Igreja católica, o Concílio de Trento e a literatura contra-reformista descobrissem a debilidade teórica do mesmo. Não havia como negar que também a exegese bíblica protestante não trabalhava sem diretrizes dogmáticas, em parte resumidas sistematicamente nos "artigos de fé" e, em parte, sugeridas na escolha dos hei praecipui. A crítica de Richard Simon a Flacius é para nós hoje um documento decisivo para conhecer a problemática hermenêutica da "compreensão prévia", o que torna patente a existência de implicações ontológicas que só foram explicitadas pela filosofia de nosso século. Por fim e ainda no contexto da recusa à doutrina de inspiração verbal, também a hermenêutica teológica dos primórdios do Iluminismo busca estabelecer regras gerais para a compreensão. Especialmente a crítica histórica da Bíblia encontra então sua primeira legitimação. O tratado teológico-político de Espinosa   foi o acontecimento principal. A sua crítica ao conceito de milagre, por exemplo, legitimava-se no postulado da razão de se reconhecer somente o que é racional, isto é, o que é possível. Não era só [97] crítica, continha também uma virada positiva, à medida que exigia uma explicação natural das passagens da Escritura contrárias à razão. Isso acarretou uma virada em direção ao que é histórico, ou seja, uma virada da presumida (e incompreensível) história dos milagres em direção à fé (compreensível) nos milagres. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Desse modo, a tarefa da retórica deslocou-se para a hermenêutica, sem existir uma consciência expressa dessa mudança, e supostamente anterior à invenção do termo "hermenêutica". Mesmo assim o grande legado da retórica continua influenciando em pontos decisivos no que diz respeito ao novo trabalho de interpretação dos textos. Assim como a verdadeira retórica, para o discípulo de Platão, é inseparável do conhecimento da verdade das coisas (rerum cognitio), sob pena de mergulhar numa absoluta nadidade, também para a interpretação dos textos representa o postulado óbvio de que estes contenham a verdade sobre as coisas. Isso já era uma evidência inquestionável para a primeira renovação da retórica durante a época humanista, que estava totalmente regida pelo ideal   da imitatio; agora aplica-se inteiramente à nova virada rumo à hermenêutica que é o objeto de nosso estudo. Isso porque tanto em Melanchton, quanto no primeiro fundador da hermenêutica protestante, Flacius Illyrucius, a controvérsia teológica sobre a compreensibilidade da Sagrada Escritura constitui o fundamento motivador. Nesse sentido, não podemos perguntar se a arte da compreensão tem por objeto também o descobrimento do verdadeiro sentido de um enunciado errôneo. Isso só vai mudar com o incremento da consciência metodológica no século XVII — sob a influência de Sabarella — , que modifica também o apoio teórico-científico da hermenêutica. É o que observamos em Dannhauer, que faz da retórica um anexo e busca fundamentar a nova retórica na retórica aristotélica. Mas isso não significa que, do ponto de vista do conteúdo, Dannhauer não dependesse da tradição retórica, que continuava paradigmática na exposição dos textos. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Parece-me um erro considerar essa orientação lógica da hermenêutica como a verdadeira realização da ideia de hermenêutica, como faz H. Haeger. O próprio Dannhauer, um teólogo de Estrasburgo dos inícios do século XVII, professa-se seguidor do Organon   de Aristóteles, que o teria libertado das confusões da dialética de sua época. Mas, desconsiderando essa orientação teórico-científica e examinando o conteúdo, vemos que compartilha quase plenamente com a hermenêutica protestante. E, se esquece sua relação com a retórica, ele o faz por referência imediata a Flacius, que teria dedicado suficiente atenção a esse aspecto. Mas, enquanto teólogo protestante, compartilha expressamente do reconhecimento da relevância da retórica. Em sua Hermenêutica sacrae scripturae cita largamente Agostinho   para demonstrar que na Sagrada Escritura não existe uma mera ausência de arte (como poderia parecer desde o ideal ciceroniano da retórica), mas um gênero especial de eloquência próprio [289] a homens de autoridade suprema e a homens quase divinos. Vê-se como o cânon estilístico da retórica humanista continuava vigente no século XVII, uma vez que o teólogo cristão só podia precaver-se apelando para o fato de que ele, com Agostinho, defendia o aspecto retórico da Bíblia. A novidade de sua reorientação racionalista em relação à proposta metodológica da hermenêutica, quanto ao conteúdo, não atinge a substância desta, tal como havia sido inaugurado pelo princípio bíblico da Reforma. O próprio Dannhauer refere-se constantemente às questões teológicas controversas e insiste, como todos os outros luteranos, que a capacidade hermenêutica e a possibilidade de compreender a Sagrada Escritura é comum a todos os homens. Ele também considera a formação hermenêutica um bom instrumento para rebater os papistas. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.