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Gadamer (VM): função hermenêutica

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

A motivação moral   contida no conceito do common sense ou do bon sens permaneceu ativa até os nossos dias e diferencia esses conceitos do nosso conceito da "compreensão humana sadia". Cito, como exemplo, o belo discurso que Henri Bergson   fez em 1895, sobre o bon sens, por ocasião da homenagem que lhe foi prestada na Sorbônia. Sua crítica às abstrações da ciência da natureza, bem como às da linguagem e do pensamento jurídico, seu tempestuoso apelo à "energia interior de uma inteligência, que a todo momento se reconquista sobre si mesma, eliminando as ideias feitas para deixar espaço livre para as ideias que se fazem" (88), tudo isso pôde, na França, ser batizado sob a denominação de bon sens. A determinação desse conceito continha, como é natural, uma referência aos sentidos, mas para Bergson é evidente que, diferentemente dos sentidos, o bon sens se refere ao milieu   social (meio social). "Enquanto que os outros sentidos nos colocam em relação com coisas, o bom senso preside nossas relações para com pessoas" (85). Ele é uma espécie de gênio para a vida prática, mas menos um dom (Gabe) do que a permanente tarefa (Aufgabe) de "ajustamento sempre novo de situações sempre novas, uma espécie desadaptação dos princípios gerais à realidade, através da qual se realiza a justiça, um "tato da verdade prática", uma "retidão de juízo, que provém da retitude da alma" (88). O bons sens é, segundo Bergson, enquanto a fonte comum do pensamento e do querer, em sens social, que tanto evita o erro dos dogmáticos científicos, que estão à busca de leis sociais, como o dos utopistas metafísicos. "Falando mais propriamente, talvez não exista mais método, mas antes, um certo modo de fazer." É verdade que Bergson fala sobre o significado dos estudos clássicos para o aperfeiçoamento   desse bon sens — ele vê neles o empenho de romper o "gelo das palavras" e para descobrir, sob elas, a corrente livre do pensamento (91) — mas é claro que ele não coloca a pergunta contrária, ou seja, até que ponto é necessário o bon sens para os próprios estudos clássicos, isto é, não fala de sua função hermenêutica. Sua pergunta não se dirige, de forma alguma, às ciências, mas, sim, ao sentido independente do bon sens para a vida. Nós sublinhamos apenas a evidência, para ele e seus ouvintes, o sentido moral-político desse conceito assume a liderança. 129 VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Nota-se claramente que também outros teólogos pietistas, em face do dominante racionalismo, e no mesmo sentido de Oetinger, colocaram a applicatio em primeiro plano, como o demonstra o exemplo de Rambach, cuja hermenêutica, então muito influente, trata também da aplicação. Entretanto, o refreamento das tendências pietistas no final do século XVIII fez que a função hermenêutica do sensus communis   se reduzisse a um mero corretivo: não pode ser correto o que contradiz o consensus quanto a sentimentos, julgamentos e conclusões, ou seja, o que contradiz o sensus communis. Em comparação com o significado que Shaftesbury atribui ao sensus communis para a sociedade e o Estado, mostra-se, nessa função negativa do sensus communis, o esvaziamento e a intelectualização do conteúdo, por que passou o conceito através do Aufklärung alemão. 143 VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Em alguns pontos de minha argumentação percebe-se de modo especial que o meu ponto de partida das ciências "históricas" do espírito é unilateral. Sobretudo a introdução do significado hermenêutico da distância temporal  , pois, por mais convincente que tenha sido, acabou sendo um péssimo precursor do significado [9] fundamental da alteridade do outro e com isso da função fundamental que concerne à linguagem, isto é, ao diálogo. Teria sido mais adequado à coisa em questão falar, de uma forma mais geral, da função hermenêutica da distância. Não precisa tratar-se sempre de uma distância histórica e também não é sempre a distância temporal, em absoluto e como tal, que está em condições de superar conotações falsas e aplicações destrutivas. A distância mostra-se também na simultaneidade, como um momento hermenêutico, por exemplo, no encontro entre pessoas, que na conversa buscam primeiramente uma base comum, e de modo pleno   no encontro entre pessoas que falam línguas estrangeiras ou que vivem em outras culturas. Cada um desses encontros deixa vir à consciência algo como uma opinião   preconcebida, que parece tão evidente e natural a esta pessoa que ela não se dá conta da equiparação ingênua que faz com o próprio, e o mal-entendido que se estabelece com isso. Nesse ponto, a primeira significação do diálogo, inclusive para a investigação etnológica e a questionabilidade de sua técnica de questionários, acabou tornando-se importante. No entanto, permanece correto que onde entra em jogo a distância temporal, esta garante um auxílio crítico especial, porque é só então que saltam à vista as modificações e que as diferenças podem ser observadas. Pense-se na dificuldade de se avaliar a arte contemporânea, a que eu me referi especialmente em minhas explanações. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Até que ponto o outro compreende o que eu quero dizer, demonstra-se pelo modo como ele prossegue a conversa. Com isso, o compreendido passa da indeterminação de sua direção de sentido para uma nova determinação, que permite ser compreendida ou mal-entendida. E isto o que acontece verdadeiramente no diálogo: O que se tem em mente articula-se, à medida que se torna algo [19] comura. A enunciação individual, portanto, está sempre inserida num acontecimento comunicativo, não podendo ser compreendida como algo singular. Por isso, falar de mens   auctoris e da palavra "autor" só possui uma função hermenêutica onde não está em questão uma conversa viva, mas apenas exposições fixas. Aí surge a questão: Será que só compreendemos retrocedendo ao autor? E será que, quando retrocedemos, compreendemos suficientemente aquilo que tinha em mente o autor? E o que acontece quando isso não é possível porque nada sabemos sobre ele? VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Quando uso o conceito de "situação" nesse contexto é para indicar que a pergunta e o enunciado da ciência não passam de um caso especial de uma relação muito mais genérica, tematizada no conceito da situação. A pertença mútua de "situação" e "verdade" já foi estabelecida no pragmatismo americano. Para esse, o que realmente caracteriza a verdade é o "saber virar-se" numa situação. A fecundidade de um conhecimento comprova-se na capacidade de resolver uma situação problemática. Não creio que a guinada pragmática dessa questão seja suficiente, aqui. Isso porque, considerando como a única coisa que importa o "saber virar-se" na situação, o pragmatismo simplesmente deixa de lado todas as assim chamadas perguntas filosóficas e metafísicas, porque a única coisa que importa é "saber virar-se" na situação. Para se avançar então seria necessário recusar todo lastro dogmático da tradição. Isso parece-me ser uma evasiva. O primado da pergunta por mim indicado não é um primado pragmático. E tampouco a resposta verdadeira está ligada ao critério das consequências da ação. E, no entanto, o pragmatismo tem razão em afirmar que é preciso ultrapassar a relação formal  , colocando a pergunta como o sentido do enunciado. Encontramos o fenômeno inter-humano da pergunta em sua concreção plena, quando deixamos de lado a relação teórica entre pergunta e resposta, que perfaz a ciência, e refletimos sobre as situações nominais em que as pessoas são chamadas e interrogadas e interrogam a si próprias. Ali fica claro que a essência do enunciado experimenta em si uma ampliação. Não apenas que o enunciado sempre seja uma resposta, e sempre remeta a uma pergunta, mas que, em seu caráter enunciativo comum, tanto a pergunta quanto a resposta têm uma função hermenêutica. Ambas são interpelação. Isto não diz simplesmente que algo de nosso universo comum sempre se insere no conteúdo de nossos enunciados. O que não deixa de ser verdade. Todavia, a questão aqui não é essa. A questão é de que só há verdade no enunciado, à medida que este é interpelação. [54] O horizonte da situação, que perfaz a verdade de um enunciado, inclui nele aquele a quem se diz algo com o enunciado. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

Vamos analisar primeiramente o que, apesar de sua indizibilidade, é dito. Aqui emerge o imenso âmbito daquilo que em todo discurso é ocasional e ajuda a constituir o sentido do discurso. Ocasionalidade significa a dependência da ocasião, da circunstância e situação, em que se usa a expressão. A análise hermenêutica pode demonstrar que essa dependência da ocasião não é ela mesma ocasional, mesmo nas expressões ditas ocasionais, como por [179] exemplo "aqui" ou "isto". Em sua peculiaridade semântica, essas expressões não possuem evidentemente nenhum conteúdo fixo, assinalável, sendo usadas como formas vazias passíveis de serem por conteúdos variáveis. A análise hermenêutica, porém, pode demonstrar que essa ocasião constitui a própria essência do dizer. Pois em sua estrutura de linguagem e em sua lógica, nenhum enunciado possui apenas um sentido unívoco, mas sim um sentido motivado. O que lhe dá sentido é uma pergunta a ele subjacente. A função hermenêutica da pergunta repercute no sentido do enunciado, o de ser uma resposta. Não me refiro aqui à hermenêutica da pergunta que ainda está para ser estudada. Há muitos tipos de perguntas e todos sabemos que a pergunta não precisa ter características sintáticas para mostrar plenamente seu sentido interrogativo. Refiro-me ao tom interrogativo que pode conferir um caráter interrogativo a uma frase formulada sintaticamente como um enunciado afirmativo. Um bom exemplo é a inversão desse fato, ou seja, quando uma frase que tem caráter de pergunta mostra seu caráter de enunciado. Chamamos esse fato de pergunta retórica. A chamada pergunta retórica é pergunta apenas na forma, sendo na realidade uma afirmação. Analisando como o caráter interrogativo torna-se afirmativo e confirmativo, mostra-se que a pergunta retórica é afirmativa por já pressupor a resposta. Pela pergunta, ela já antecipa a resposta comum. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 13.

A esta objeção deve-se responder que o extremismo desse ponto de vista assemelha-se ao que se dá em certas instituições de pesquisa de grandes indústrias, sobretudo na América e na Rússia. Refiro-me aos chamados experimentos em grandes séries, onde simplesmente se medem os materiais sem levar em conta perdas ou custos, na expectativa de que finalmente um dia, entre mil tentativas de medição, uma medição apresente um resultado que interesse  , ou seja, se mostre como resposta a uma pergunta a partir da qual é possível prosseguir. Não resta dúvidas de que, de certo modo, esse é o modo de trabalho da investigação moderna, mesmo no âmbito das ciências do espírito. Basta pensarmos nas grandes edições e sobretudo nos índices cada vez mais completos. Deve ficar em aberto, no entanto, se, com esses procedimentos, a investigação histórica moderna aumenta suas chances de perceber realmente fatos interessantes, adquirindo com isso um correspondente enriquecimento de nosso conhecimento. Mesmo assim, devemos perguntar: será esse o procedimento ideal  , que mil historiadores elaborem incontáveis tarefas de investigação, isto é, constatem nexos fatuais, para que o historiador 1001 acabe encontrando algo que seja interessante? De certo, estou caricaturando a verdadeira investigação. Mas, como em toda caricatura, também aqui há um pouco de verdade. Ela contém uma resposta à pergunta: O que realmente constitui o pesquisador produtivo? O fato de ter aprendido os métodos? Mas isso também faz aquele que não produz nada de novo. A tarefa decisiva do pesquisador é a fantasia. É claro que fantasia não significa aqui uma faculdade vaga de imaginar coisas; a fantasia sustenta-se como função hermenêutica e está a serviço do sentido do questionável, da capacidade de ventilar questões reais, produtivas — o que via de regra só consegue quem domina todos os métodos de sua ciência. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.