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Gadamer (VM): experiência da obra

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Essa visão negativa significa positivamente: a arte é conhecimento e a experiência da obra de arte torna esse conhecimento partilhável. Com isso se coloca a pergunta de como se poderá fazer jus à verdade da experiência estética e de como suplantar a radical subjetivação do estético, que teve início com a "Crítica do juízo estético" de Kant  . Já mostramos que foi uma abstração metódica, tendo por finalidade um trabalho de fundamentação bem determinado e transcendental  , que levou Kant a vincular o juízo estético inteiramente ao estado do sujeito. Se, em seguida, essa abstração estética foi entendida do ponto de vista do conteúdo, e foi transformada na exigência de compreender a arte "meramente do ponto de vista estético", vemos agora como essa exigência de abstração para a experiência real da arte depara-se com uma contradição insolúvel. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Eis o que só dificilmente se pode reconhecer quando, com Kant, se mensura a verdade do conhecimento com o conceito do conhecimento da ciência e com o conceito de realidade da ciência da natureza. É necessário entender o conceito da experiência com mais amplidão do que Kant o fez, a fim de que se possa entender também, como experiência, a experiência da obra de arte. Com relação a essa tarefa, podemos nos reportar às admiráveis preleções de Hegel   sobre a estética. Nelas, de uma forma extraordinária, o conteúdo de verdade que há em toda experiência da arte é trazido ao reconhecimento e, ao mesmo tempo, transmitido com consciência histórica. Com isso, a estética torna-se uma história das cosmovisões, isto é, uma história da verdade, tal qual se faz visível no espelho da arte. Com isso, confirma-se fundamentalmente a tarefa que formulamos, ou seja, a de justificar na própria experiência da arte o conhecimento da verdade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Se quisermos saber o que é a verdade nas ciências do espírito, teremos então de dirigir a questão da filosofia ao conjunto dos procedimentos das ciências do espírito, da mesma forma que Heidegger a dirigiu à metafísica e tal qual nós a dirigimos à consciência estética. Não iremos ter de aceitar a resposta da auto-evidência das ciências do espírito, mas teremos de indagar o que é, na verdade, a sua compreensão. Na preparação dessa pergunta de longo alcance o que poderá servir, em especial, será a indagação sobre a verdade da arte, justamente porque inclui a compreensão da experiência da obra de arte, ou seja, representa até mesmo um fenômeno hermenêutico, e não, certamente, no sentido de um método científico. A compreensão pertence, antes, ao próprio encontro com a obra de arte, de maneira que apenas do ponto de vista do modo de ser da obra de arte é que se pode aclarar essa pertença. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

A idéia de uma única representação correta, em face da finitude da nossa existência histórica, possui, ao que parece, algo que é um contra-senso. Ainda voltaremos a falar disso, numa outra correlação. Aqui, a conjuntura evidente, de que toda representação quer ser correta, serve apenas para confirmar, que a não diferenciação entre a intermediação e a obra ela mesma, é a verdadeira experiência da obra. Que a consciência estética sabe como realizar a diferenciação estética entre a obra e a sua intermediação, em geral somente na forma da crítica, portanto, aí onde essa intermediação malogra, está de acordo com isso. A intermediação é, de acordo com a sua idéia, total. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Precisamos nos perguntar, porém, se a teologia e a teoria do direito não contribuem essencialmente para uma hermenêutica geral. Para o desenvolvimento dessa questão não é suficiente o imanente problema metodológico da teologia, da ciência jurídica e das ciências histórico-filológicas. Importa demonstrar os limites da autoconcepção do conhecimento histórico e devolver uma legitimidade limitada à interpretação dogmática . A isso se opõe certamente o conceito de neutralidade da ciência. Por essas razões, a [108] investigação que realizei em Verdade e método I partia de um âmbito experimental que, em certo sentido, pode ser chamado de dogmático, à medida que seu postulado exige reconhecimento absoluto e não pode ficar em suspenso: esta é a experiência da arte. Via de regra, aqui, compreender é reconhecer e fazer valer: "Conceber aquilo que nos toca" (E. Staiger). A objetividade de uma ciência da arte ou de uma ciência da literatura, que resguarda sua seriedade como esforço científico, permanece todavia sujeita à experiência da arte ou da poesia. Ora, na autêntica experiência da arte, a applicatio não pode vir separada da intellectio e da explicatio  . Isso não deixa de ter conseqüências para a ciência da arte. Esse problema foi discutido primeiramente por H. Sedlmayr quando distingue entre uma primeira e uma segunda ciência da arte. Os complexos métodos de investigação da ciência da arte e da ciência da literatura, que se têm desenvolvido, precisam confirmar sempre de novo sua fecundidade ajudando a intensificar a clareza e a adequação da experiência da obra de arte. Nesse sentido, precisam intrinsecamente de integração hermenêutica. Assim, a estrutura de aplicação, com seu direito de cidadania herdado da hermenêutica jurídica, precisa adquirir um valor paradigmático. É certo que quando a compreensão histórico-jurídica segue à imposição de se reaproximar da compreensão dogmático-jurídica, suas diferenças não podem ser anuladas. Isso foi bem frisado por Betti e Wieacker. O sentido de applicatio, porém, que representa um elemento constitutivo de todo compreender, não é o de uma "aplicação" posterior e externa de algo que originalmente já seria para si. A aplicação de meios para objetivos predeterminados ou a aplicação de regras em nosso comportamento não significa, via de regra, a submissão de uma situação dada (Gegebenheit  ) autônoma, em si, como por exemplo uma coisa conhecida "de maneira puramente teórica", a um objetivo prático. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Nesse ponto, o conceito de sentido defendido pela filosofia idealista da identidade foi funesto. Ele reduziu a competência da reflexão hermenêutica à chamada "tradição cultural", seguindo a linha de Vico que só considerava compreensível para os homens o que era feito por estes. A reflexão hermenêutica, que representa o ponto central de toda minha investigação, tenta mostrar justamente que esse conceito da compreensão de sentido é errôneo, e nessa perspectiva tive de restringir também a famosa determinação de Vico. Parece-me que tanto Apel quanto Habermas fincam pé nesse sentido idealístico do compreender o sentido, que nada tem a [471] ver com o ductus de minha análise. Não foi por acaso que orientei a minha investigação pela experiência da arte, cujo "sentido" não pode ser esgotado pela compreensão conceitual. O fato de eu ter desenvolvido o questionamento de uma hermenêutica filosófica universal, tomando como ponto de partida a crítica à consciência estética e refletindo sobre a arte — e não partindo imediatamente do âmbito das chamadas ciências do espírito — não significa, de modo algum, um arrefecimento diante da exigência de método na ciência. Significa antes uma primeira medição do alcance que possui a questão hermenêutica e que não busca primeiramente designar certas ciências como hermenêuticas, mas trazer à luz uma dimensão que precede a todo uso do método na ciência. E por isso que a experiência da arte tornou-se importante em muitos aspectos. O que significa essa superioridade temporal   que a arte reivindica como conteúdo de nossa consciência estética formativa? Surge então uma dúvida: Será que essa consciência estética que a "arte" tem em mente — como ocorre com o próprio conceito de "arte", elevado ao caráter pseudo  -religioso — não representa uma diminuição de nossa experiência da obra de arte, tal como a consciência histórica e o historicismo são uma diminuição da experiência histórica? E igualmente intempestiva? VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.