Página inicial > Hermenêutica > Gadamer, Hans-Georg (1900-2002) > Gadamer (VM): exegese

Gadamer (VM): exegese

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Mais ainda: a teologia da Reforma parece nem sequer ser consequente. Ao acabar reivindicando como fio condutor para a compreensão da unidade da Bíblia, a fórmula de fé protestante suspende, também ela, o princípio da Escritura, em favor de uma tradição reformatoria, que em todo caso é breve. Sobre isso, e deste modo, já apresentaram seu julgamento não só a teologia da Contra-reforma, mas também o próprio Dilthey  . Este glosa essas contradições da hermenêutica protestante, partindo do auto-senso pleno   das ciências históricas do espírito. Mais tarde teremos de nos indagar se essa autoconsciência realmente se justifica — precisamente também com relação ao sentido teológico da exegese bíblica — e se o princípio fundamental filológico-hermenêutico de compreender os textos a partir deles mesmos não trará em si uma certa insuficiência e não necessitará, ainda que não na maioria das vezes o reconheça, ser completado por um fio condutor de caráter dogmático. 957 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Assim, se retrocedermos à pré-história da hermenêutica histórica, teremos de destacar, em primeiro lugar, que entre a filologia e a ciência da natureza, em sua primeira auto-reflexão, se estabelece uma correlação muito estreita, que se reveste de um duplo sentido. Em primeiro lugar, a "naturalidade" do procedimento científico-natural deve valer também para o posicionamento frente à tradição bíblica — e para isso serve o método histórico. Mas, ao inverso, também a naturalidade da arte filológica, exercida na exegese bíblica, a arte de compreender pelo texto, coloca ao conhecimento da natureza a tarefa de decifrar o "livro da natureza". Nessa medida o modelo da filologia pode orientar o método da ciência da natureza. 981 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Deve-se levar em conta que, em tudo isso, Chladenius não esta pensando, certamente, na exegese bíblica edificante, mas que abstrai expressamente das "Escrituras Sagradas", para as quais "a arte da interpretação filosófica" não seria mais que uma ante-sala. Com os seus raciocínios, ele também certamente não quer dar legitimidade à ideia de que tudo que se possa pensar sobre isso (todas as "aplicações") pertença à compreensão de um livro, mas unicamente o que corresponde às intenções do autor. Para ele, isso não possui, no entanto, e com toda evidência, o sentido de uma restrição histórico-psicológica, mas tem a ver com uma correspondência objetiva, da qual ele garante explicitamente que a mais nova teologia observa-a exegeticamente. 997 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O limite dessa hermenêutica, fundamentada no conceito [195] da individualidade, mostra-se no fato de que Schleiermacher   não considera a tarefa da filologia e da exegese bíblica, a de compreender um texto composto em uma língua estrangeira e procedente de uma época passada mais problemática do que qualquer outro compreender. Evidentemente que também para Schleiermacher coloca-se uma tarefa especial, lá onde se tem de superar uma distância no tempo. Schleiermacher chama-o de "equiparação com o leitor original". Mas essa "operação do ser igual", a produção linguística e histórica dessa igualdade não é para o verdadeiro ato do compreender, que, para ele, não é a equiparação com o leitor original, mas a equiparação com o autor, através da qual o texto é aberto como manifestação vital própria de seu autor. O problema de Schleiermacher não é o da obscuridade da história mas a obscuridade do tu. 1035 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Uma vez, acontece a criação pela palavra de Deus. Já os primeiros padres da Igreja falam do milagre da linguagem, com o fim de tornar pensável aquela ideia tão pouco grega, que é a [424] criação. No próprio prólogo de João vem descrita, a partir da palavra, a verdadeira ação salvadora, o envio do Filho, o mistério da encarnação. A exegese interpreta o fato da palavra tornar-se som, um milagre igual ao fato de Deus tornar-se carne. O "tornar-se", de que se trata em ambos os casos, não é um tornar-se, no qual algo se converte noutra coisa diferente. Não se trata nem de uma separação de um com relação ao outro (kat’ apokopen), nem de uma diminuição da palavra interna por sua saída para a exterioridade, nem sequer um converter-se noutra coisa, numa forma tal que a palavra interna fique consumida. Já desde as aproximações mais antigas ao pensamento grego, reconhece-se essa nova direção para a unidade misteriosa de Pai e Filho, de Espírito e palavra. E quando, por fim, se rechaça na dogmática cristã — com a repulsa ao subordinacionismo — a relação direta com a exteriorização, o fato de que a palavra se torne som, essa mesma decisão torna necessário voltar a iluminar filosoficamente o mistério da linguagem e sua relação com o pensamento. O maior milagre da linguagem não se estriba em que a palavra se faça carne e apareça em seu exterior, mas no fato de que o que emerge e se manifesta em sua exteriorização já é sempre palavra. O fato de que a palavra está em Deus, e quiçá, desde toda a eternidade, é a doutrina triunfante da Igreja que acompanha a repulsa ao subordinacionismo, e que permite que o problema da linguagem entre em cheio na interioridade do pensante. 2266 VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Essas poucas regras gerais da hermenêutica, apresentadas preliminarmente nessas "hermenêuticas", apoiadas na antiga retórica, por certo não justificam um interesse   filosófico por esses escritos. Não obstante a profunda problemática filosófica, que viria a aflorar plenamente só em nosso século, já se reflete na história inicial da hermenêutica protestante. É certo que o princípio luterano da sacra scriptura sui ipsius interpres contém uma clara recusa da tradição dogmática da Igreja Romana. Mas, uma vez que essa frase não quer defender uma teoria ingênua da inspiração e sobretudo que a teologia de Wittenberg, seguindo a tradução da Bíblia do grande intelectual Lutero  , lançava mão de um rico aparato filológico e exegético para justificar o próprio trabalho, a problemática de toda interpretação teve de assumir também o mote da sui ipsius interpres. O paradoxo desse princípio era por demais evidente e não houve como evitar que os defensores da tradição magisterial da Igreja católica, o Concílio de Trento e a literatura contra-reformista descobrissem a debilidade teórica do mesmo. Não havia como negar que também a exegese bíblica protestante não trabalhava sem diretrizes dogmáticas, em parte resumidas sistematicamente nos "artigos de fé" e, em parte, sugeridas na escolha dos hei praecipui. A crítica de Richard Simon a Flacius é para nós hoje um documento decisivo para conhecer a problemática hermenêutica da "compreensão prévia", o que torna patente a existência de implicações ontológicas que só foram explicitadas pela filosofia de nosso século. Por fim e ainda no contexto da recusa à doutrina de inspiração verbal, também a hermenêutica teológica dos primórdios do Iluminismo busca estabelecer regras gerais para a compreensão. Especialmente a crítica histórica da Bíblia encontra então sua primeira legitimação. O tratado teológico-político de Espinosa   foi o acontecimento principal. A sua crítica ao conceito de milagre, por exemplo, legitimava-se no postulado da razão de se reconhecer somente o que é racional, isto é, o que é possível. Não era só [97] crítica, continha também uma virada positiva, à medida que exigia uma explicação natural das passagens da Escritura contrárias à razão. Isso acarretou uma virada em direção ao que é histórico, ou seja, uma virada da presumida (e incompreensível) história dos milagres em direção à fé (compreensível) nos milagres. 3070 VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.

Foi só Schleiermacher que, incitado por F. Schlegel, desvencilhou a hermenêutica, enquanto teoria universal da compreensão e do interpretar, de todos os momentos dogmáticos e ocasionais. Para ele, esses momentos só se justificam secundariamente, numa versão bíblica específica. Com sua teoria hermenêutica, defende a cientificidade da teologia, sobretudo contra a teologia da inspiração, que colocava radicalmente em questão a verificabilidade metodológica da compreensão da Sagrada Escritura com os recursos da exegese textual, da teologia histórica, da filologia etc. Mas por trás dessa concepção de Schleiermacher sobre uma hermenêutica geral não havia apenas um interesse teológico, científico e político, mas uma motivação filosófica. Um dos mais profundos impulsos da época romântica foi a fé no diálogo como uma fonte de verdade não dogmática, insubstituível por qualquer dogmática. Se Kant   e Fichte   privilegiaram como supremo princípio de toda filosofia a espontaneidade do "eu penso", na geração romântica de Schlegel e [98] Schleiermacher, caracterizada por um forte cultivo da amizade, esse princípio transformou-se numa espécie de metafísica da individualidade. A inefabilidade do individual já fora a base para a virada em direção ao mundo histórico, que surge para a consciência quando a era revolucionária rompe com a tradição. Capacidade para a amizade, capacidade para o diálogo, para a relação epistolar, para a comunicação em geral, todos esses traços do sentimento vital romântico vinham de encontro ao interesse pela compreensão e pela incompreensão. Essa experiência humana originária constitui o ponto de partida metodológico para a hermenêutica de Schleiermacher. A partir disso, a compreensão de textos, de vestígios espirituais estranhos, longínquos, obscurecidos, petrificados em escritos, isto é, a interpretação viva da literatura e sobretudo da Sagrada Escritura, apresentou-se como aplicação específica. 3074 VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.

Passando pelo historicismo radical e sob o impulso da teologia dialética (Barth, Thurneysen) e desembocando no tema da desmitologização, foi a reflexão hermenêutica de R. Bultmann   que fundamentou uma autêntica mediação entre a exegese histórica e a exegese dogmática. Isso representou, sem dúvida, um marco histórico. O dilema entre a análise histórico-individualizante e o anúncio do querigma permanece, do ponto de vista teórico, insolúvel; o conceito de "mito" usado por Bultmann mostrou desde logo ser [102] uma construção carregada de pressupostos, baseada no Iluminismo moderno. Não obstante, o debate sobre a desmitologização, apresentado com muito acerto por G. Bornkamm, continua a despertar um grande interesse hermenêutico geral, visto reapresentar a antiga tensão entre dogmática e hermenêutica numa versão contemporânea. Bultmann distanciou sua auto-reflexão teológica do idealismo para aproximá-la do pensamento de Heidegger. Isso evidencia a influência direta do postulado de Karl Barth e da teologia dialética que tornaram consciente a problemática humana e teológica do "falar sobre Deus". Bultmann procurava uma solução "positiva", isto é, passível de ser legitimada metodologicamente, sem renunciar a nenhuma das conquistas da teologia histórica. A filosofia existencial de Heidegger, presente em Sere tempo, parecia-lhe oferecer nesse caso uma posição antropológica neutra, a partir da qual a autocompreensão da fé poderia encontrar uma fundamentação ontológica. O caráter de devir da pre-sença no modo da autenticidade e, no seu lado oposto, a decadência no mundo, podiam ser interpretados teologicamente com os conceitos de fé e pecado. Mas essa interpretação não seguia a linha da exposição heideggeriana   da questão do ser, sendo uma reinterpretação antropológica. Não obstante, a relevância universal da questão de Deus para a existência humana, fundamentada por Bultmann na "autenticidade" do poder-ser, alcançou um ganho hermenêutico real. Consistia, sobretudo, no conceito da compreensão prévia — sem falar nas abundantes contribuições exegéticas dessa consciência hermenêutica. 3092 VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.

E o que dizer do sentido querigmático da Sagrada Escritura? Aqui o conceito da congenialidade chega ao absurdo completo, à medida que suscita a péssima imagem da teoria da inspiração. A exegese histórica da Bíblia também encontra aqui seus limites, sobretudo no que diz respeito ao conceito central de "autocompreen-são" do escritor da Sagrada Escritura. O significado salvífico da Escritura não será necessariamente diferente do que o resultado da mera soma das intuições teológicas dos escritores do Novo Testamento? Dessa forma, a hermenêutica pietista (A. Francke, Rambach) foi se destacando pelo fato de, em sua teoria da interpretação, acrescentar a aplicação à compreensão e à explicação, destacando com isso a relação da "Escritura" com a atualidade. Nisso reside a razão central de uma hermenêutica que leva realmente a sério a historicidade do homem. É claro que também a hermenêutica idealista leva isto em conta, especialmente a de E. Betti com seu "cânon da correspondência do sentido". Parece, no entanto, que foi só com o reconhecimento decisivo do conceito da compreensão prévia e do princípio da história dos efeitos ou o desenvolvimento da consciência da mesma, que se conquistou uma base metodológica suficiente. O conceito de cânon da teologia neotestamentária encontra ali sua legitimação, como um caso especial. O grande e positivo trabalho de G. von Rad demonstrou, ademais, que o significado teológico do Antigo Testamento torna-se difícil de justificar ao se adotar a mens   auctoris como cânon. Com esse trabalho pode-se superar a estreiteza dessa perspectiva. Os debates mais recentes sobre a hermenêutica contagiaram também a teologia católica (Stachel, Biser, Corth). 3110 VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.

A convicção romântica da total estranheza face à tradição, segundo a qual a tradição constitui uma total alteridade frente ao presente, tornou-se uma pressuposição metodológica fundamental do procedimento hermenêutico. A hermenêutica torna-se uma postura metodológica universal justamente por pressupor a estranheza do conteúdo a ser compreendido e, com isso, impor-se a tarefa de sua superação pela apropriação do conhecimento. É bastante significativo que Schleiermacher não considere tão absurda a ideia de se compreender mesmo os princípios de um Euclides a partir da perspectiva histórica, isto é, recorrendo aos momentos fecundos da vida de Euclides, nos quais surgiram essas ideias. Em lugar do conhecimento objetivo imediato, surge a compreensão psicológico-histórica como a postura realmente metodológica e científica. Foi só a partir daí que a ciência bíblica, a teologia em seu aspecto exegético, pôde elevar-se ao status de uma verdadeira ciência histórico-crítica. A hermenêutica tornou-se o órgão geral do método histórico. Sabe-se que a introdução dessa reflexão histórico-crítica no campo da exegese bíblica provocou grandes tensões entre dogmática e exegese, que perpassam o trabalho teológico do Novo Testamento até os dias de hoje. 3186 VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9.

Esse é o interesse dogmático positivo que cunha a conceituação de Bultmann e não o interesse por um Iluminismo progressista. Seu conceito de mito é um conceito puramente descritivo. Traz consigo algo de histórico e casual e, por mais fundamental que seja o problema teológico alojado no conceito de uma desmitologização do Novo Testamento, trata-se de uma questão de exegese prática, que não atinge em hipótese alguma o princípio hermenêutico de toda exegese. Seu sentido hermenêutico restringe-se sobretudo a constatar que não se pode fixar dogmaticamente nenhum conceito determinado de mito, pelo qual se pudesse determinar de uma vez por todas o que o Iluminismo científico poderia e o que não poderia expurgar da Sagrada Escritura como mero mito para o homem moderno. Não é a partir da ciência moderna, mas positivamente a partir da aceitação do querigma, a partir da reivindicação interna da fé, que se deve determinar o que seja um mero mito. Um outro exemplo dessa "desmitologização" é precisamente a grande liberdade que possuía e promovia o poeta grego diante da tradição mítica de seu povo. Também essa liberdade não é "Iluminismo". O poeta exerce sua força espiritual e seu direito crítico baseado num fundamento religioso. Basta lembrar-nos de Píndaro   ou de Ésquilo  . Isso explica a necessidade de se refletir sobre a relação entre fé e compreensão, à luz da liberdade do jogo. 3202 VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9.

O primeiro exemplo é o que constitui a base dos estudos de Wilhelm Dilthey sobre a história da hermenêutica, aquela obra premiada da Academia das ciências de Berlim, escrita por Dilthey em sua juventude e da qual só conhecíamos alguns fragmentos e um resumo de 1900, até ser finalmente publicada em 1966 graças à redação de Martin Redekner do segundo volume inacabado da Vida de Schleiermacher, de Dilthey. Ali Dilthey faz uma apresentação magistral de Flacius documentada com inúmeras citações. Examina e valoriza a teoria hermenêutica de Flacius utilizando o critério do sentido histórico que tomou consciência de si próprio e do método científico, histórico-crítico. À luz desse critério mescla-se na obra de Flacius a antecipação genial de certas verdades com incríveis recaídas na estreiteza dogmática e no formalismo vazio. Na realidade, se a interpretação da Sagrada Escritura não tivesse apresentado outro problema a não ser o que ocupou a teologia histórica da época liberal, à qual pertenceu Dilthey, teríamos dito a última palavra com isso. A intenção louvável de se compreender cada texto desde sua circunstância própria, sem submetê-lo a nenhuma pressão dogmática, leva finalmente, na aplicação ao Novo Testamento, à dissolução do cânon, se dermos prioridade, com Schleiermacher, à interpretação "psicológica". Cada escritor do Novo Testamento é um caso à parte nessa perspectiva hermenêutica, e isso leva a solapar a dogmática protestante apoiada no princípio bíblico. É uma consequência que Dilthey aprovou implicitamente. Está implícita em sua crítica a Flacius. Dilthey contesta a exegese de Flacius em sua concepção histórica e abstratamente lógica do princípio da Escritura global ou do cânon. A tensão entre dogmática e exegese aparece também em outras passagens da exposição de Dilthey e sobretudo na crítica a Franz e à sua ênfase na primazia do contexto da Escritura global frente aos textos soltos. Atualmente a crítica à teologia histórica levada a efeito nos últimos cinquenta anos e que culmina na elaboração do conceito de "querigma" nos tornou mais receptivos à legitimidade hermenêutica do cânon e em consequência à legitimidade hermenêutica do interesse dogmático em Flacius. 3804 VERDADE E METODO II OUTROS 20.

Com seu artigo Studien zur Frügeschichte der Hermeneutik   (Estudos sobre a história primitiva da hermenêutica), H.-E. Hasso Jaeger enriqueceu nosso conhecimento do período inicial da hermenêutica com um capítulo totalmente novo. Sabia-se já que a palavra "hermenêutica" apareceu pela primeira vez num escrito de Joh. Conrad Dannhauer, e sabia-se pelo menos desde Dilthey que a hermenêutica possui uma certa pré-história humanista. Mas, com a avaliação que Jaeger faz de Dannhauer, o quadro se modifica. Jaeger demonstra de início que Dannhauer perseguiu já em sua juventude o programa de uma lógica da interpretação e que introduziu em 1629 a expressão "hermenêutica" com essa finalidade. Frente a Dilthey, Jaeger não parece considerar essa hermenêutica como um antecedente teológico — e nesse sentido muito pobre — da hermenêutica romântica, mas como uma criação própria do movimento humanista, sem relação alguma com a controvérsia sobre o princípio bíblico que se deu entre Lutero e os papistas. Dilthey havia nos mostrado que essa controvérsia levara a uma primeira formulação dos princípios hermenêuticos da exegese protestante da Bíblia, formulação que aparece documentada em Flacius Illyricus. Mas H. Jaeger procura evitar, o quanto possível, o aspecto teológico do problema. 3872 VERDADE E METODO II OUTROS 21.

Os campos em que o problema da interpretação do texto escrito se encontrou com essa arte antiga, gerando uma nova e maior consciência teórica, foram sobretudo dois: a interpretação de [310] textos jurídicos, que sobretudo desde a codificação justiniana do direito romano   constituem a profissão do jurista, e a exegese da Sagrada Escritura no sentido da tradição magisterial da Igreja dentro da doutrina cristã. A hermenêutica jurídica e teológica da época moderna pôde estabelecer uma ponte com esses dois campos. 3970 VERDADE E METODO II OUTROS 22.

Isso encontra confirmação de novo na história da palavra. O conceito de "texto" aparece nas línguas modernas dentro de dois conceitos diferentes. Por um lado, como texto de escrita cuja interpretação faz-se na pregação e na doutrina eclesial, de forma que o texto representa o fundamento para toda a exegese, mas toda a exegese pressupõe verdades de fé. O outro uso natural da palavra "texto" tem relação com a música. Aqui o texto é para o canto, para a interpretação musical das palavras, e nesse sentido não é algo prévio à música, como algo desligado da realização do canto. Essas duas acepções naturais da palavra "texto" remontam — ambas — ao uso de linguagem dos antigos juristas romanos, que depois da codificação de Justiniano distinguem o texto legal frente ao caráter discutível de sua interpretação e aplicação. Desde então se lança mão desse termo quando algo não se encaixa bem na experiência e sempre que o recurso à presente realidade dada pode orientar para a compreensão. 4080 VERDADE E METODO II OUTROS 24.

Römerbrief (Epístola aos Romanos) de Karl Barth, marcada pela recusa total a uma reflexão metodológica, representa uma espécie de manifesto hermenêutico. O fato de Barth não concordar com a tese da desmitologização do Novo Testamento, de Rudolf Bultmann, não se deve tanto ao interesse temático, segundo me parece, mas à vinculação da investigação histórico-crítica com a exegese teológica e ao fato de buscar o apoio da filosofia (Heidegger) para a auto-reflexão metodológica. É isso que impede Barth de identificar-se com os procedimentos de Bultmann. Nesse sentido, tornou-se uma necessidade objetiva não tanto recusar pura e simplesmente a herança da teologia liberal, mas antes dominá-la. A discussão atual do problema hermenêutico no âmbito da teologia — e não apenas a do problema hermenêutico — vem marcada pela discussão e confronto da intenção puramente teológica com a historiografia crítica. Alguns acham que, diante dessa situação, é necessário defender novamente esse questionamento histórico; outros, como mostram os trabalhos de Ott, Ebeling e Fuchs  , colocam em [392] primeiro plano não tanto o caráter investigativo da teologia, mas seu auxílio hermenêutico para o anúncio. 4342 VERDADE E METODO II ANEXOS 27.

A ciência pode fazer muitas objeções a isso. Desde há muito a hermenêutica é uma parte constitutiva da teologia. Sobretudo com a crítica feita pela teologia dialética à linguagem sobre Deus, e desde que a teologia histórica do liberalismo assumiu a tarefa de harmonizar sua própria pretensão científica com o sentido querigmático da Sagrada Escritura e com sua interpretação, surgiu de novo a problemática hermenêutica. Assim, Rudolf Bultmann", adversário ferrenho de toda teoria da inspiração e de toda exegese pneumática, e mestre do método histórico, reconheceu a relação ontológica prévia que o sujeito tem com o texto que procura compreender. Fez isso, na medida em que, na relação do crente com a Sagrada Escritura descobriu uma "pré-compreensão" inerente à [430] existência humana que se manifesta na pergunta por Deus. Quando adotou o lema da desmitologização, procurando liberar o núcleo querigmático do Novo Testamento e salvar assim a Sagrada Escritura do estranhamento histórico, Bultmann estava seguindo na verdade um velho princípio hermenêutico. Isso porque é evidente que o verdadeiro objetivo dos escritos do Novo Testamento é sua mensagem de salvação e que esses escritos devem ser lidos à luz dessa mensagem. Foram sobretudo alguns discípulos que radicalizaram o tema da hermenêutica redescoberto por Bultmann. Ernst   Fuchs, com um livro que reuniu de forma genial a reflexão e a exegese, e Gerhard Ebeling, partindo sobretudo da hermenêutica luterana. Ambos falam de um "acontecimento de linguagem" próprio da fé, buscando afastar do sentido salvífico da tradição bíblica qualquer objetivismo indiferente, na linha do mito ou do fato histórico. Mesmo que não faltem contra-reações na teologia moderna, esses estímulos obrigam a consciência hermenêutica a progredir não só na teologia protestante, mas também na católica. 4548 VERDADE E METODO II ANEXOS 28.