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Gadamer (VM): estrutura da compreensão

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Isso representa uma provocação para a hermenêutica tradicional. É verdade que na língua alemã a compreensão (Verstehen  ) designa também um saber fazer prático ("er versteht nicht   zu lesen" "ele não entende ler", o que significa tanto como: "ele fica perdido na leitura", ou seja, não sabe ler). Mas isso parece muito diferente do compreender orientado cognitivãmente no exercício da ciência. Obviamente, se se olha mais detidamente, surgem traços comuns: nos dois significados aparece a ideia de conhecer, entender do assunto. E mesmo aquele que "compreende" um texto (ou mesmo uma lei) não somente projetou-se a si mesmo a um sentido, comprendendo — no [265] esforço do compreender — mas que a compreensão alcançada representa o estado de uma nova liberdade espiritual. Implica a possibilidade de interpretar, detectar relações, extrair conclusões em todas as direções, que é o que constitui o entender do assunto dentro do terreno da compreensão dos textos. E isso vale também para aquele que entende de uma máquina, isto é, aquele que entende de como se deve tratar com ela, ou aquele que entende de um ofício, ferramenta: admitindo-se que a compreensão racional-finalista está sujeita a normas diferentes do que, p. ex., a compreensão de externalizações da vida ou textos, o que é verdade é que todo compreender acaba sendo um compreender-se. Enfim, também a compreensão de expressões se refere não somente à captação imediata do que contém a expressão, mas também ao descobrimento do que há para além da interioridade oculta, de maneira que se chega a conhecer esse oculto. Mas isso significa que a gente tem de se haver com isso. Nesse sentido vale para todos os casos que aquele que compreende se compreende, projeta-se a si mesmo rumo à possibilidades de si mesmo. A hermenêutica tradicional havia estreitado, de uma maneira inadequada, o horizonte de problemas a que pertence a compreensão. A ampliação que Heidegger empreende, para além de Dilthey  , será, por essa mesma razão, fecunda também para o problema da hermenêutica. E verdade que já Dilthey havia rechaçado, para as ciências do espírito, os métodos das ciências da natureza, e que Husserl   havia qualificado de "absurda" a aplicação do conceito natural-científico de objetividade às ciências do espírito, estabelecendo a relatividade essencial de todo mundo histórico e de todo conhecimento histórico. Porém agora torna-se visível pela primeira vez a estrutura da compreensão histórica em toda sua fundamentação ontológica, sobre a base da futuridade existencial da pre-sença humana. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

a) A descoberta de Heidegger da pré-estrutura da compreensão VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Heidegger somente entra na problemática da hermenêutica e das críticas históricas com a finalidade ontológica de desenvolver, a partir delas, a pré-estrutura da compreensão. Já nós, pelo contrário, perseguimos a questão de como, uma vez liberada das inibições ontológicas do conceito de objetividade da ciência, a hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão. A autocompreensão tradicional da hermenêutica repousava sobre seu caráter de teoria da arte. Isso vale inclusive para a extensão diltheyana da hermenêutica como organon   das ciências do espírito. Pode até parecer duvidoso que exista uma tal teoria da arte da compreensão; sobre isso voltaremos mais tarde. Em todo caso, cabe indagar pelas consequências que tem para a hermenêutica das ciências do espírito o fato de Heidegger derivar fundamentalmente a estrutura circular da compreensão a partir da temporalidade da pre-sença. Essas consequências não necessitam ser tais, como se aplicasse uma nova teoria à práxis e esta fosse exercida por fim, de uma maneira diferente, de acordo com sua arte. Poderiam também consistir em que a autocompreensão da compreensão exercida constantemente fosse corrigida e depurada de adaptações inadequadas; um processo que mormente se optimalizaria por meio da arte do compreender. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Heidegger oferece uma descrição fenomenológica completamente correta, quando descobre no suposto "ler" o que "lá está" a pré-estrutura da compreensão. Oferece também um exemplo para o fato de que disso se segue uma tarefa. Em Ser e tempo   concretiza a proposição universal, que ele converte em problema hermenêutico, na questão do ser. Com o fim de explicitar a situação hermenêutica da questão do ser, segundo posição prévia, visão prévia e concepção prévia, examina criticamente a questão que ele coloca à metafísica, em momentos essenciais, onde a história da metafísica sofreu uma guinada. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Ora, essa determinação originária da hermenêutica ganhou mais definição quando a modernidade rompeu com a tradição, surgindo um ideal   de conhecimento completamente diverso, baseado na exatidão. Mas o pressuposto fundamental para se estabelecerem as tarefas da hermenêutica, que não se queria ver corretamente e que eu procurei recuperar, foi desde sempre a apropriação de um sentido superior. Nesse sentido, nada tem de original quando em minha investigação reivindico a produtividade hermenêutica da distância temporal  , ressaltando de modo essencial a finitude e inconclusividade de todo compreender e de toda reflexão da história dos efeitos. Isso nada mais é que a liberação da verdadeira temática hermenêutica. Ela encontra sua real legitimação na experiência da história. O que nada tem a ver com a transparência de sentido. A "historiografia" precisa desviar-se constantemente da diluição humanista. A experiência da história não é a experiência do [265] sentido, do plano e da razão. E foi só sob o olhar perenizante da filosofia do saber absoluto que se pôde pretender conceber a razão na história. Assim, a experiência da história reconduz a tarefa da hermenêutica, de fato, ao seu verdadeiro lugar. Ela precisa decifrar sempre de novo os fragmentos de sentido da história, que se limitam e se quebram na escura contingência dos fatos e sobretudo no crepúsculo onde se encontra mergulhado o futuro para toda consciência presente. Também a "concepção prévia da plenitude", própria da estrutura da compreensão, chama-se enfaticamente assim porque a superioridade daquilo que deve ser compreendido não pode ser esgotada por nenhuma interpretação. Assim ficamos surpresos que em Apel, em Habermas e com uma importante modificação em Giegel, a reflexão hermenêutica precise elevar-se a uma plena transparência idealista de sentido, pela luz brilhante de uma ciência explicativa. Isso se encontra na função paradigmática que esses autores atribuem à psicanálise. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.