Página inicial > Hermenêutica > Gadamer, Hans-Georg (1900-2002) > Gadamer (VM): conhecimento científico

Gadamer (VM): conhecimento científico

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Mesmo assim, Dilthey   se deixou influenciar profundamente pelo modelo das ciências da natureza, embora quisesse justificar justamente a independência metódica das ciências do espírito. Duas testemunhas podem elucidar isso, e ao mesmo tempo indicar o caminho das considerações que se seguem. No seu necrológio sobre W. Scherer, Dilthey destaca que o espírito das ciências da natureza guiou o procedimento de Scherer, e pretende fundamentar por que Scherer se colocou tão diretamente sob a influência do empirismo inglês: "Ele era um homem moderno, e o mundo de nossos antepassados não era mais a pátria de seu espírito e de seu coração, mas seu objeto histórico". Nessa formulação observa-se o seguinte: Para Dilthey, ao conhecimento científico pertence a dissolução dos vínculos vitais, a conquista de uma distância em relação à própria história, pois somente isso possibilita torná-la objeto. Pode-se até reconhecer que o manuseio dos métodos indutivo e comparativo, tanto da parte de Scherer como de Dilthey, era guiado por um genuino tato individual, e que esse tato pressupõe uma cultura anímica, que comprova nesses homens, na verdade, a continuidade do mundo de formação clássica e da crença da individualidade romântica. Não obstante, continua sendo o modelo das ciências da natureza que orienta a autoconcepção científica de ambos. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Algo assim poderia também ser encontrado em Droysen, mas em Dilthey possui um matiz próprio. Tanto na direção da contemplação como na da reflexão prática surge, segundo Dilthey, a mesma tendência da vida: a "aspiração à estabilidade". A partir disso compreende-se que Dilthey pudesse considerar a objetividade do conhecimento científico e da auto-reflexão filosófica como a realização suprema da tendência natural da vida. O que guia a reflexão de Dilthey não é uma adaptação externa da metodologia das ciências do espírito aos procedimentos das ciências da natureza, mas o fato de que detecta em ambas uma comunidade genuína. A essência do método experimental é a elevação acima da casualidade subjetiva da observação, e com ajuda disso dá-se o conhecimento da regularidade da natureza. Assim, as ciências do espírito também procuram elevar-se metodicamente acima da casualidade subjetiva do próprio ponto de partida e da tradição que lhes é acessível, alcançando assim a objetividade do conhecimento histórico. A própria auto-reflexão filosófica encaminha-se na mesma direção, na medida em que "se torna objetiva para si mesma como fato humano e histórico" e renuncia à pretensão de alcançar um conhecimento puro a partir de conceitos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Sem dúvida, o conceito e o fenômeno do horizonte contêm um significado importante para a investigação fenomenológica de Husserl  . Através desse conceito, que também nós teremos motivos para empregar, Husserl procura evidentemente empreender a transição de toda intencionalidade restrita da intenção à continuidade básica do todo. Um horizonte não é uma fronteira rígida, mas algo que se desloca com a pessoa e que convida a que se continue penetrando. Dessa maneira, à intencionalidade-horizonte, que constitui a unidade da corrente vivencial, corresponde uma intencionalidade-horizonte igualmente abrangente por parte dos objetos. Pois tudo o que está dado como ente está dado como mundo, e leva consigo o horizonte do mundo. Husserl, nas suas retratações com relação às Ideias I, ressaltou, numa expressa autocrítica, que naquela época (1913) ainda não tinha compreendido suficientemente o significado do fenômeno do mundo. A teoria da redução transcendental  , que ele havia publicado nas Ideias, acabaria tendo de se complicar cada vez mais. Já não podia bastar a mera suspensão de validade das ciências objetivas, porque mesmo na realização da epoche  , da suspensão da suposição do ser do conhecimento científico o mundo mantém sua validez, como dado previamente. Nesse sentido, a auto-reflexão epistemológica que indaga pelo a priori  , pelas verdades eidéticas das ciências, não é suficientemente radical. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

"Preconceito" não significa pois, de modo algum, falso juízo, pois está em seu conceito que ele possa ser valorizado positivamente ou negativamente. É claro que o parentesco com o praejudicium latino torna-se operante nesse fato, de tal modo que, na palavra, junto ao matiz negativo, pode haver também um matiz positivo. Existem préjugés legitimes. Isso encontra-se muito distante de nosso atual tato linguístico. A palavra alemã Vorurteil   (preconceito) — da mesma forma que a francesa préjugé, mas ainda mais pregnantemente — parece ter-se restringido, pelo Aufklärung e sua crítica religiosa, ao significado de "juízo não fundamentado". Somente a fundamentação, a garantia do método (e não o encontro com a coisa como tal) confere ao juízo sua dignidade. Aos olhos do Aufklärung, a falta de fundamentação não deixa espaço a outros modos de certeza, pois significa que o juízo não tem um fundamento na coisa, que é um juízo "sem fundamento". Essa é uma conclusão típica do espírito do racionalismo. Sobre ele repousa o descrédito dos preconceitos em geral e a pretensão do conhecimento científico de excluí-los totalmente. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Permaneceremos conscientes de que com isso se exige algo incomum à autocompreensão da ciência moderna. Procuramos, ao largo de nossas reflexões, tornar essa exigência mais plausível, ao ir mostrando-a como o resultado da convergência de toda uma série de problemas. De fato, a teoria da hermenêutica que chega até os nossos dias se desagregou em diferenciações que ela mesma não é capaz de sustentar. Isso se torna tanto mais patente aí, onde se procura formular uma teoria geral da interpretação. Se distinguirmos, por exemplo, entre interpretação cognitiva, normativa e re-produtiva, tal como o faz E. Betti em sua Allgemeine Theorie   der Interpretation  , montada sobre um admirável conhecimento e domínio do tema, as dificuldades aparecem no momento de inscrever os fenômenos no momento dessa divisão. Isso vale imediatamente para a interpretação científica. Se juntarmos a interpretação teológica e a jurídica e se dermos a ambas a função normativa, então teremos de lembrar que Schleiermacher   relaciona inversamente, e de forma mais estreita, a interpretação teológica com a interpretação geral, que para ele é a histórico-filológica. De fato, a cisão entre as funções cognitiva e normativa atravessa, por inteiro, a hermenêutica teológica, e não chega a ser compensada distinguindo-se o conhecimento científico de uma ulterior aplicação edificante. É a mesma cisão que atravessa a interpretação jurídica, na medida em que o conhecimento do sentido de um texto jurídico e sua aplicação a um caso jurídico concreto não são atos separados, mas um processo unitário. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Na verdade, porém, a questão da história afeta a humanidade não como um problema de conhecimento científico, mas como um problema da própria consciência de vida. Também não se trata simplesmente do fato de nós, enquanto humanos, termos uma história, isto é, de vivermos nosso destino perpassando as fases de ascensão, plenitude e decadência. O decisivo é, antes, que justamente nesse movimento do destino buscamos o sentido de nosso ser. O poder do tempo, que nos dilacera, desperta em nós a consciência de uma força própria sobre o tempo, pela qual configuramos nosso destino. Mesmo na finitude, perguntamos por um sentido. Este é o problema da historicidade, que afeta a filosofia. Na Alemanha, o país clássico do romantismo, as dimensões desse problema aparecem extremadas, pois ali conservou-se a herança romântica junto com a eclosão da ciência moderna, no século XIX. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Penso que as ciências do espírito fornecem um testemunho convincente a respeito deste problema. Também nelas há algo que pode ser subordinado ao conceito metodológico da ciência moderna. Todos nós precisamos admitir o ideal   da verificabilidade de todos os conhecimentos dentro dos limites do possível. No entanto, devemos confessar que muito raramente alcançamos este ideal e que os investigadores que buscam alcançar esse ideal da forma mais precisa possível, na maioria das vezes não estão capacitados a dizer-nos as coisas verdadeiramente importantes. Desta forma, há algo nas ciências do espírito que não pode ser pensado do mesmo modo nas ciências da natureza: que o investigador pode aprender muito mais lendo um livro de um diletante do que lendo livros de outros investigadores. É claro que estes são casos excepcionais. Porém, o fato disto ser possível mostra que aqui se estabelece uma relação entre o conhecimento da verdade e a possibilidade de ser dito, que não pode ser medido pela verificabilidade do enunciado. Sabemos disto tão bem, através das ciências do espírito, que abrigamos a desconfiança justificada contra um determinado tipo de trabalho científico que mostra muito claramente, à frente e atrás e sobretudo abaixo, isto é, nas notas, o método com que são elaborados. Será que ali se pergunta realmente por algo novo? Chega-se realmente a conhecer alguma coisa? Ou será que se repete de tal modo o método de conhecimento, e esmera-se de tal modo em suas fórmulas exteriores, que o trabalho dá a impressão de ser cientifico? Temos de confessar, ao contrário, que as maiores e mais fecundas produções das ciências do espírito estão muito distantes do ideal de verificabilidade. Do ponto de vista filosófico, isto é muito importante. Pois não se trata de que o investigador não-original queira fazer-se passar por um especialista, dissimulando uma intenção impostora, e que pelo contrário o investigador fecundo tenha de destronar, pelo protesto revolucionário, tudo o que até o presente tinha [51] validade na ciência. Talvez possa mostrar-se aqui uma relação objetiva, segundo a qual aquilo que possibilita a ciência pode igualmente impedir a fecundidade do conhecimento científico. Trata-se de uma relação principiai entre verdade e não-verdade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

A fundação da filosofia da linguagem e da ciência da linguagem por Wilhelm von Humboldt   não representou, contudo, uma autêntica restauração da visão aristotélica. Como seu objeto de investigação eram os idiomas dos povos, abriu-se um caminho de conhecimento que pôde esclarecer de maneira nova e fecunda a diversidade dos povos e dos tempos e a essência humana comum a eles subjacente. Mas o que definiu aqui o horizonte da pergunta pelo homem e pela linguagem foi apenas admitir no homem uma [148] faculdade e esclarecer o regimento estrutural dessa faculdade — que chamamos de gramática, sintaxe, vocabulário da linguagem. No espelho da linguagem, podiam se reconhecer as cosmovisões dos povos, conhecer detalhadamente a estrutura de sua cultura — um bom exemplo é o conhecimento do estágio cultural da constituição dos povos indogermánicos, que devemos às excelentes investigações de Viktor Hehns sobre plantas de cultivo e animais domésticos. A ciência da linguagem, como qualquer outra pré-história, representa a pré-história do espírito humano. Mesmo assim, nesse modo de pensar, o fenômeno da linguagem só adquire o significado de um campo de expressão eminente, no qual é possível estudar a essência do homem e sua evolução na história. Por essa via, no entanto, não é possível penetrar nos postulados centrais do pensamento filosófico. Isso porque no pano de fundo de todo pensamento moderno encontrava-se ainda a definição cartesiana de consciência como autoconsciência. Esse inabalável fundamento de toda certeza, o mais certo de todos os fatos, o fato de que conheço a mim mesmo, tornou-se no pensamento da modernidade o parâmetro para tudo que quisesse satisfazer ao postulado de conhecimento científico. Também a investigação científica da linguagem acabou apoiando-se no mesmo fundamento. Tratava-se da espontaneidade do sujeito, a qual possui uma de suas formas de confirmação na energia que forma a linguagem. Por mais fecunda que pudesse ser a interpretação dessa cosmovisão subjacente aos idiomas, feita a partir desse princípio, não é possível entrever o enigma que a linguagem propõe ao pensamento humano. Pois a essência da linguagem comporta igualmente uma inconsciência abissal da mesma. Nesse sentido, a caracterização do conceito de linguagem não é um resultado fortuito e a posteriori. A palavra logos   não significa apenas pensamento e linguagem, mas também conceito e lei. A cunhagem do conceito de linguagem pressupõe uma consciência de linguagem. Mas isso é apenas o resultado de um movimento reflexivo, no qual o sujeito pensante reflete a partir da realização inconsciente da linguagem, colocado a uma distância de si próprio. O verdadeiro enigma da linguagem, porém, é que isso jamais se deixa alcançar plenamente. Todo pensar sobre a linguagem, pelo contrário, já foi sempre alcançado pela linguagem. Só podemos pensar dentro de uma linguagem e é justamente o fato de que nosso pensamento habita a linguagem que constitui o enigma profundo que a linguagem propõe ao pensar. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 11.

Diante disso, a guinada que se deu no século XX e à qual contribuíram decisivamente, a meu ver, Husserl e Heidegger, significou o descobrimento dos limites dessa identidade idealista ou histórico-espiritual entre espírito e história. Nos trabalhos tardios de Husserl aparece a palavra mágica Lebenswelt   (mundo da vida), um desses neologismos raros e surpreendentes (a palavra alemã não existia antes de Husserl) que entram na consciência geral sobre a linguagem e trazem à fala alguma verdade ignorada ou esquecida. Assim, a palavra Lebenswelt restabeleceu os laços com certos pressupostos latentes e anteriores a todo conhecimento científico. O programa de uma "hermenêutica da facticidade" de Heidegger, isto é, a confrontação com a incompreensibilidade da própria existência factual, significou sem dúvida uma ruptura com o conceito idealista de hermenêutica. A compreensão e a vontade de compreender são reconhecidas em sua tensão com relação à realidade factual. Tanto a teoria de Husserl sobre o mundo da vida quanto o conceito heideggeriano de hermenêutica da facticidade afirmam a temporalidade e a finitude do ser humano frente à tarefa infinita da compreensão e da verdade. Minha tese propõe que, a partir dessa ótica, o saber não se coloca somente como uma questão de domínio do outro e do estranho. Esse domínio constitui o pathos   fundamental da investigação científica da realidade, presente em nossas ciências da natureza (embora quem sabe à base de uma fé na racionalidade da constituição do cosmos). O que afirmo é que o essencial das "ciências do espírito" não é a objetividade, mas a relação prévia com o objeto. E, para essa esfera do saber, eu complementaria o ideal de conhecimento objetivo, implantado pelo ethos   da cientificidade, com o ideal de "participação". Participação nas manifestações essenciais da experiência humana tal como se configuraram na arte e na história. Nas ciências do espírito, esse é o verdadeiro critério para conhecer o conteúdo ou a falta de conteúdo de suas teorias. Procurei demonstrar em meus trabalhos que o modelo do diálogo é decisivo para esclarecer a estrutura dessa forma de participação. Isso porque o diálogo se caracteriza também por não ser o sujeito individual, separado que percebe e afirma, o único a dominar o assunto, mas por alcançarmos participar da verdade e do outro pela partilha. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.

Esse deslocamento pertence ao mesmo âmbito de problemas do papel que desempenha o fenômeno da linguagem em nosso pensamento. Não se trata de um enunciado meramente tautológico. Que a linguagem tenha adquirido um posto central no pensamento filosófico, se deve à virada que a filosofia deu no curso dos últimos decênios. Se o ideal de conhecimento científico que guia a ciência moderna se inspirou no modelo da concepção matemática da natureza, desenvolvido primeiramente na Mecânica de Galileu  , isso significa que a interpretação de mundo que se dá na linguagem, isto é, a experiência de mundo sedimentada pela linguagem no mundo da vida não constituiu o ponto de partida da investigação e da intenção de saber. O que constitui a essência da ciência, agora, é aquilo que pode ser explicado e construído a partir de leis racionais. Desse modo, embora conservando seu próprio modo de ver e de falar, a linguagem natural perdeu a primazia que lhe parece própria. Como uma prolongação lógica das implicações dessa moderna ciência natural matemática, o ideal da linguagem da lógica e da teoria da ciência moderna foi substituído pelo ideal de uma terminologia unívoca. Assim, o contexto das experiências de limite ligadas à universalidade do acesso científico ao mundo fez com que a linguagem natural passasse a ocupar de novo, como um "universal", o centro da filosofia. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Esse aspecto torna-se muito evidente nas modalidades de arte que requerem re-produção (música, teatro  , dança, etc). A reprodução deve ser estilisticamente correta. Deve-se saber o que exigem o estilo da época e o estilo pessoal de um mestre. De certo, esse saber não é tudo. Uma reprodução "historicamente fiel" não seria uma produção verdadeiramente artística, i. é, não representaria a obra enquanto obra de arte, mas seria antes — suposto que isto seja possível — um produto didático ou um simples material para a investigação histórica, como serão provavelmente no futuro as gravações de discos dirigidas pelo próprio compositor. Mas mesmo a mais viva inovação de uma obra experimentará certas restrições da coisa em questão, restrições impostas por parte da história dos estilos, e não é aconselhável que se volte contra elas. O estilo pertence, na realidade, à "base sólida" da arte, às condições que estão na coisa ela mesma, e o que surge então na re-produção vale para o nosso comportamento receptivo com relação a toda espécie de arte [78] (a re-produção não é mais que uma forma determinada de mediação a serviço da recepção). É verdade que o conceito de estilo (semelhante ao conceito de gosto, com o qual é aparentado; cf. o termo senso estilístico) não constituiu um ponto de vista satisfatório para a experiência da arte e para seu conhecimento científico — ele só o é no âmbito do decorativo. Mesmo assim, constituiu-se num pressuposto necessário para se compreender a arte. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO I