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Gadamer (VM): compreensão de sentido

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Chamar o aprender a falar de processo de aprendizagem é apenas uma façon de parier. Na verdade, trata-se apenas de um jogo, um jogo de imitação   e de intercâmbio. A formação do som e o prazer na formação do som, no impulso de imitação da criança receptiva coadunam-se com o aparecimento do sentido. Ninguém pode responder de um modo racional à pergunta pela primeira compreensão de sentido. Esta sempre já vem precedida por experiências de sentido anteriores à linguagem e principalmente o intercâmbio de olhares e gestos, de tal modo que todas as transições são fluentes. Igualmente incompreensível é a perfeição do fim. Ninguém pode construir, propriamente, isto que a linguística de hoje chama de "competência para a linguagem". O que isso significa não pode ser retratado objetivamente como a consistência do que é correto segundo a linguagem. Antes, a expressão "competência" indica que a capacidade de linguagem desenvolvida naquele que fala não se [6] deixa descrever como o emprego de regras e assim como um mero manejo correto da linguagem, segundo as regras. É preciso vê-la como o fruto de um processo no exercício da linguagem que seja de certo modo livre, de tal modo que uma pessoa acaba "sabendo" o que é correto a partir de sua competência própria. Um ponto nuclear de minha própria tentativa de conferir validade hermenêutica à universalidade do aspecto próprio da linguagem é minha concepção do aprendizado da fala e da conquista de orientação no mundo como uma trama inextricável da história da formação do homem. Mesmo sendo um processo infindável, isso pode fundamentar algo como competência. Compare-se por exemplo o aprendizado de línguas estrangeiras. Aqui, de modo geral, pode-se falar apenas de uma aproximação à dita competência para a linguagem, a não ser que alguém esteja inserido de modo duradouro e profundo no universo da língua estrangeira. No geral, só se pode alcançar competência na própria língua materna, ou na linguagem que se fala onde se cresceu e onde se vive. Com isso se diz que aprendemos a ver o mundo com os olhos da língua materna e que, pelo contrário, o primeiro passo na capacitação pessoal para a linguagem começa a articular-se na perspectiva do mundo que nos circunda. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Também temos de nos proteger contra a vontade de compreender esse tipo de movimento hermenêutico da pesquisa baseados no modelo do progresso imediato. Apel enriqueceu muito a discussão sobre o estado do problema hermenêutico pela sua aproximação com Peirce e Royce, elaborando a relação prática em toda compreensão de sentido. Ele tem razão em reivindicar para isso a ideia de uma comunidade de interpretação ilimitada. Sem dúvida, só essa é capaz de legitimar a pretensão de verdade nos esforços de entendimento. E no entanto tenho lá minhas dúvidas se é correto conjugar a legitimação da mesma com a ideia de progresso. A variedade das possibilidades de interpretação que se experimentam não exclui que essas se neutralizem mutuamente. Também o fato de que no curso dessa práxis interpretativa surjam antíteses dialéticas não representa nenhuma garantia para a aproximação a sínteses mais verdadeiras. Nesses âmbitos das ciências históricas devemos ver o "resultado" do processo interpretativo não tanto no progresso, que sempre se dá em aspectos parciais, mas antes num desempenho contrário ao declínio e à decadência do saber: a revitalização da linguagem e a recuperação do sentido atribuído a alguém através da tradição. Isso representa um relativismo perigoso apenas a partir do parâmetro de um saber absoluto, que não é o nosso. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Por outro lado, quando Habermas fala de "hermenêutica profunda", devo acrescentar minhas próprias teses quando vejo que a redução da hermenêutica à "tradição cultural" e o ideal   da transparência de sentido, que se faz valer nesse âmbito, são diluídos pela ideologia. O meu ponto mais característico é que a compreensão de sentido não pode ser reduzida à mens   auctoris nem à mens   actoris. Em todo caso, isso não significa que a compreensão culmine no esclarecimento de motivos inconscientes. A compreensão deve, antes, extrair suas linhas de sentido sempre ultrapassando o horizonte limitado do indivíduo, para que a tradição histórica se torne eloquente. Como acentuou corretamente Apel, a dimensão hermenêutica de sentido está referida ao diálogo infinito de uma comunidade ideal de interpretação. Em Verdade e métodou procurei demonstrar que a teoria do re-enactement de Collingwood é [273] irrealizável, e correspondentemente sou obrigado a considerar as interpretações de obras literárias de autores ou a interpretação da ação histórica de autores a partir da psicologia profunda como uma confusão de jogos de linguagem que beira ao ridículo. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Nesse ponto, o conceito de sentido defendido pela filosofia idealista da identidade foi funesto. Ele reduziu a competência da reflexão hermenêutica à chamada "tradição cultural", seguindo a linha de Vico que só considerava compreensível para os homens o que era feito por estes. A reflexão hermenêutica, que representa o ponto central de toda minha investigação, tenta mostrar justamente que esse conceito da compreensão de sentido é errôneo, e nessa perspectiva tive de restringir também a famosa determinação de Vico. Parece-me que tanto Apel quanto Habermas fincam pé nesse sentido idealístico do compreender o sentido, que nada tem a [471] ver com o ductus de minha análise. Não foi por acaso que orientei a minha investigação pela experiência da arte, cujo "sentido" não pode ser esgotado pela compreensão conceitual. O fato de eu ter desenvolvido o questionamento de uma hermenêutica filosófica universal, tomando como ponto de partida a crítica à consciência estética e refletindo sobre a arte — e não partindo imediatamente do âmbito das chamadas ciências do espírito — não significa, de modo algum, um arrefecimento diante da exigência de método na ciência. Significa antes uma primeira medição do alcance que possui a questão hermenêutica e que não busca primeiramente designar certas ciências como hermenêuticas, mas trazer à luz uma dimensão que precede a todo uso do método na ciência. E por isso que a experiência da arte tornou-se importante em muitos aspectos. O que significa essa superioridade temporal   que a arte reivindica como conteúdo de nossa consciência estética formativa? Surge então uma dúvida: Será que essa consciência estética que a "arte" tem em mente — como ocorre com o próprio conceito de "arte", elevado ao caráter pseudo  -religioso — não representa uma diminuição de nossa experiência da obra de arte, tal como a consciência histórica e o historicismo são uma diminuição da experiência histórica? E igualmente intempestiva? VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.