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VERDADE E MÉTODO I

Gadamer (VM:176-179) – o jogo

A ontologia da obra de arte e seu significado hermenêutico

segunda-feira 22 de fevereiro de 2021, por Cardoso de Castro

[GADAMER  , Hans-Georg. Verdade e Método I. Tr. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 176-179]

[GADAMER, Hans-Georg. Vérité et Méthode. Tr. Pierre Fruchon, Jean Grondin   et Gilbert Merlio. Paris: Seuil, 1996, p. 121-123]

Meurer (com ajustes)

Se considerarmos o uso da palavra jogo, dando preferência ao chamado significado figurado, resultará o seguinte: falamos do jogo das luzes, do jogo das ondas, do jogo da peça da máquina no rolamento, do jogo entrosado dos membros, do jogo das forças, do jogo dos mosquitos, até mesmo do jogo das palavras. Nisso sempre está implícito o vaivém de um movimento, o qual não está fixado em nenhum alvo, no qual termine. A isso corresponde também o originário significado da palavra jogo como dança, que sobrevive em múltiplas formas de palavras (p. ex. a palavra alemã Spielmann, menestrel, músico). O movimento, que é jogo, não possui nenhum alvo em que termine, mas renova-se em permanente repetição. O movimento de vaivém é obviamente tão central para a determinação da natureza do jogo que chega a ser indiferente quem ou o que executa esse movimento. O movimento do jogo como tal é, ao mesmo tempo, desprovido de substrato. É o jogo que é jogado ou que se desenrola como jogo (sich abspielt) nisso — não há um sujeito fixo que esteja jogando ali. O jogo é a consumação do movimento como tal. Assim falamos, por exemplo, do jogo das cores e, nesse caso, nem sequer queremos dizer que aí se trata de uma única cor, que joga com uma outra, mas estamos aludindo ao processo ou à visão unitários em que se mostra uma multiplicidade variável de cores.

O modo de ser do jogo, portanto, não exige que haja um sujeito que se comporte de maneira lúdica para que o jogo seja jogado. O primeiro sentido do jogo é o sentido mediano (mediale). É assim que dizemos, por exemplo, que algo "joga" em tal e tal lugar ou tempo, que algo "se joga", que algo "está em jogo" (HUIZINGA, Homo ludens).

Essa observação filológica me parece uma indicação indireta no sentido de que o jogar não requer ser entendido, de maneira alguma, como uma espécie de atividade. Para a linguagem, é óbvio que o sujeito genuíno do jogo não é a subjetividade daquilo que joga também sob outras atividades, mas o próprio jogo. Mas estamos acostumados a relacionar um fenômeno como o jogo à subjetividade e às suas formas de comportamento, apenas de uma forma, que permanecemos fechados em face dessas indicações do espírito da língua.

Seja como for, também a pesquisa antropológica mais recente compreendeu tão amplamente o tema do jogo que, com isso, chegou no limite do modo de observação que procede da subjetividade. Huizinga procurou descobrir o momento do jogo em toda cultura, elaborando sobretudo a correlação do jogo infantil e animal com os "jogos sagrados" do culto. Isso o levou a reconhecer a peculiar diferenciação na consciência lúdica que simplesmente torna impossível diferenciar entre crença e descrença. "O próprio selvagem não conhece nenhuma diferenciação de conceito entre ser e jogar, não conhece nenhuma identidade, nenhuma imagem ou símbolo. E por isso permanece questionável se não se pode chegar melhor e mais próximo ao estado de espírito do selvagem através de sua ação sacral, fixando-nos no termo primário do jogar. No nosso conceito de jogo desfaz-se a diferenciação entre crença e simulação."

Aqui, em princípio, reconhece-se o primado do jogo em face da consciência do jogador, e, de fato, justamente as experiências do jogo, que o psicólogo e o antropólogo terão de descrever, ganham uma luz nova e esclarecedora, caso se parta do sentido medial do jogo. é evidente que o jogo representa uma ordem, na qual o vaivém do movimento do jogo corre como que espontaneamente. Faz parte do jogo o fato de que o movimento não somente não tem finalidade nem intenção, mas que também não exige esforço. Ele vai como que espontaneamente. A leveza do jogo, que naturalmente não precisa uma real falta de esforço, mas que apenas alude fenomenologicamente à falta de esforçabilidade (Angestrengtheit), será experimentada subjetivamente como alívio. A estrutura de ordenação do jogo faz que o jogador desabroche em si mesmo e, ao mesmo tempo, tira-lhe, com isso, a tarefa da iniciativa, que perfaz o verdadeiro esforço da existência. Isso aparece também no espontâneo impulso à repetição, que surge no jogador e no renovar-se permanente do jogo, que cunha sua forma (p. ex., no refrão).

O fato de o modo de ser do jogo encontrar-se tão próximo da forma de movimento da natureza, permite, porém, uma importante conclusão metódica. É evidente que não é assim, que os animais também brincam (spielen  , em alemão, que significa tanto jogar, como brincar, tocar um instrumento ou representar teatro   etc.) e que até se possa dizer, num sentido figurado, que a água e a luz brincam. Ao contrário poderíamos antes dizer do homem que ele também brinca (spielt). Também o seu jogar é um acontecimento da natureza. Também o sentido de seu jogar, justamente por ele ser, e na medida em que é natureza, é um puro representar-se a si mesmo. E assim que, no final, torna-se praticamente sem sentido diferenciar, nesse campo, o uso próprio e o metafórico.

Fruchon, Grondin, Merlio

L’étude des emplois du mot jeu qui s’attache en particulier aux significations dites figurées, révèle ceci : nous parlons du jeu de la lumière, du jeu des vagues, du jeu d’une pièce dans un roulement à billes, du jeu conjugué des membres, du jeu des forces, du jeu des moucherons, sans oublier le jeu de mots. Tous ces usages impliquent l’idée de va-et-vient d’un mouvement qui n’est attaché à aucun but où il trouverait son terme. On retrouve ainsi la signification primitive du mot jeu au sens de danse, qui survit encore dans de nombreuses tournures (par exemple le mot allemand Spielmann, ménestrel). Le mouvement qui est jeu n’a aucun but auquel il se terminerait, mais il se renouvelle dans une continuelle répétition. Le mouvement de va-et-vient est si manifestement central pour la définition essentielle du jeu, qu’il est indifférent de savoir quelle personne ou quelle chose l’exécute. Le mouvement du jeu comme tel est, pour ainsi dire, dépourvu de substrat. C’est ici le jeu qui est joué ou qui se joue et il n’y a plus de sujet qui y joue. Le jeu est exécution du mouvement comme tel. Parlant par exemple du jeu des couleurs, nous ne voulons manifestement pas dire qu’il y a là une couleur prise à part qui joue en passant dans une autre, mais nous désignons ainsi le processus   ou le spectacle indivisible où se montre une multiplicité changeante de couleurs.

Le mode d’être du jeu n’exige donc pas qu’il y ait un sujet qui se comporte de manière ludique pour que le jeu soit joué. Le sens tout à fait premier du jeu est le sens moyen (mediale). C’est ainsi que nous disons par exemple que quelque chose « joue » à tel endroit ou à tel moment, que quelque chose « se joue », que quelque chose « est en jeu ».

Ces remarques d’ordre philologique, me semble-t-il, suggèrent indirectement qu’il ne faut pas entendre par jouer une espèce d’activité. Pour le langage, le véritable sujet du jeu n’est manifestement pas la subjectivité qui, entre autres activités, se livre au jeu, mais le jeu lui-même. Pourtant, nous sommes tellement habitués à rapporter un phénomène comme le jeu à la subjectivité et à ses attitudes que nous restons fermés aux indications que fournit la sagesse de la langue.

Il faut dire cependant que l’anthropologie   moderne a conçu le thème du jeu dans un sens si ample qu’elle est conduite par là pour ainsi dire à la limite du mode de considération fondé sur la subjectivité. Huizinga a cherché à discerner l’aspect ludique de toute civilisation ; il a surtout mis en lumière le rapport du jeu enfantin et animal avec le « jeu sacré » du culte. Il a été ainsi amené à reconnaître la curieuse indécision de la conscience ludique qui empêche entièrement de distinguer entre croyance et non-croyance : « Le sauvage lui-même ignore toute distinction entre être et jouer, il ignore identité, image ou symbole. C’est pourquoi on se demande si la meilleure façon d’approcher de l’état d’esprit du sauvage dans son action sacrale n’est pas de s’en tenir au sens premier du mot jouer. Dans notre concept de jeu, la distinction entre croyance et simulation se dissout. »

Le primat du jeu par rapport à la conscience du joueur se trouve ici fondamentalement reconnu. Et, en fait, les expériences du « jouer » que le psychologue et l’anthropologue ont pour tâche de décrire s’éclairent d’une façon toute nouvelle si l’on part du sens moyen du jeu. Le jeu représente manifestement un ordre dans lequel le va-et-vient du mouvement du jeu se produit comme de soi-même. Le propre du jeu est que ce mouvement soit non seulement dépourvu de but et d’intention  , mais également exempt d’effort. Il se fait comme de lui-même. La légèreté du jeu qui, bien sûr, ne signifie pas nécessairement absence réelle d’effort, mais qui, phénoménologiquement, désigne seulement l’absence de tension, est subjectivement ressentie comme soulagement. Le jeu est ainsi fait qu’il absorbe en quelque sorte le joueur, le dispensant d’avoir à assumer l’initiative, ce qui fait tout l’effort de l’existence. Cela est visible aussi dans la tendance spontanée à la répétition qui se manifeste chez le joueur, et dans la reprise incessante du jeu, qui marque sa forme (par exemple le refrain).

Mais cette manière d’être du jeu est à tel point proche de la forme de mouvement de la nature, qu’elle permet de tirer une importante conclusion méthodologique. Il n’est manifestement pas exact que les animaux aussi jouent et que ce n’est qu’au sens figuré qu’on peut dire de l’eau et de la lumière qu’elles jouent. C’est de l’homme au contraire qu’on peut dire inversement que lui aussi joue. Son jeu à lui aussi est un processus naturel ; précisément parce qu’il est nature, et dans la mesure où il est nature, le sens de son jeu est aussi une pure représentation de soi (ein reines Sichselbstdarstellen). C’est pourquoi distinguer, dans ce domaine, l’emploi propre de l’emploi métaphorique, n’a finalement plus de sens.


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