Página inicial > Hermenêutica > Filosofia Hermenêutica

Filosofia Hermenêutica

terça-feira 22 de março de 2022, por Cardoso de Castro

HERMENÊUTICA MODERNA — FILOSOFIA HERMENÊUTICA

Foi a partir da reflexão de Heidegger sobre a [facticidade], que Gadamer   retomou a hermenêutica sobre novas bases, unificando no ser humano a realidade histórica e sua interpretação. Enuncia-se assim a hermenêutica contemporânea, de natureza filosófica. Uma hermenêutica filosófica aplicável às temáticas da filosofia, das ciências humanas e das ciências da natureza. Mas Gadamer não é o único a enveredar por esta senda. Os italianos Emilio Betti e Luigi Pereyson, os franceses Paul Ricoeur   e Jacques Derrida  , e os alemães J. Habermas e Karl Otto-Apel abrem também seus próprios caminhos na reflexão contemporânea sobre a hermenêutica.

Segundo Josef Bleicher (1980), a hermenêutica contemporânea pode ser caracterizada por perspectivas conflitantes, no tocante ao fato de que as expressões humanas de qualquer gênero podem ser reconhecidas como tal por qualquer ser humano e transpostas para seu próprio sistema de valores e significados. Como este processo se dá e como é possível “se dar conta” de sentidos subjetivos aplicados ao reconhecimento de um ato ou fato, o que prejudicaria de forma absoluta a capacidade de compreensão deste, é o que discorre cada caminho hermenêutico em sua especificidade, e Bleicher cita três caminhos que se consagraram: a teoria hermenêutica, a filosofia hermenêutica e a hermenêutica crítica.

A teoria hermenêutica focaliza a problemática de uma teoria geral da interpretação como uma possível metodologia para as ciências humanas. Pela análise da “compreensão” como método apropriado de re-experimentar ou re-pensar o que um autor originalmente viveu ao se expressar, sob qualquer modalidade discursiva espera-se ganhar um entendimento do processo de compreensão, em geral, permitindo assim transpor a complexidade de sentidos de um discurso expresso por um autor, para nossa compreensão de nós mesmos, de nosso mundo e do texto ou fato “lido”.

Nesta última já se delineava um reconhecimento da linguagem como meio universal da humanidade presente na primeira versão do [círculo hermenêutico] como todo em relação ao qual, partes individuais ganham seu sentido. A razão maior da aplicação da teoria hermenêutica se caracteriza como um esforço por “evitar os mal-entendidos”.

Esta busca por uma base metodológica e até científica para a interpretação é justamente o que a chamada hermenêutica filosófica rejeita como “objetivismo”. Isto porque fere um de seus princípios, originários da filosofia existencial de Heidegger. Um contexto de tradição envolve ambos e a obra, o que implica na impossibilidade de neutralidade em qualquer processo de interpretação. A compreensão de uma obra não é apenas, por conseguinte, uma reprodução instruída do original, mas um diálogo contínuo entre as partes em questão.

A filosofia hermenêutica, por sua vez, parte do reconhecimento do hermeneuta como Dasein   ocupado na interpretação de um ato ou fato humano, em sua situação temporal   e histórica.

Segundo Gadamer, o problema da interpretação segundo a formulação dada pela hermenêutica filosófica, parte da “virada linguística” na filosofia, para reconhecer que a comunicação entre o autor de um discurso e o intérprete do mesmo deve tomar a forma de um diálogo que resulte na “fusão de horizontes” de suas existências.

Em resumo a filosofia hermenêutica não pretende substituir a teoria hermenêutica, mas sim direcioná-la segundo princípios que admitam a condição de “[ser-no-mundo]” do intérprete em seu ocupar-se hermenêutico.

Por mais exaustiva que seja a pesquisa que explora o contexto do texto, sua compreensão não se esgota aí, pois segue se dando e renovando no diálogo com o texto. Existem mal-entendimentos mas também mais do que uma justa interpretação do texto, o próprio texto estabelece os limites de sentido que admite, não é um questão subjetiva, a pesquisa histórica e linguística permite uma aproximação do sentido original, garantindo certa neutralidade, mas neste afã é mais importante reconhecer os pré-conceitos que ditam o viés de uma interpretação do que tentar transcendê-los ou eliminá-los.

Neste sentido a filosofia hermenêutica iniciada por Heidegger, e sustentada por Gadamer, parece se impor diante das frustrações de uma teoria hermenêutica que pretende suprimir o caráter subjetivo das interpretações, visto que dada a significância do texto (o que significa para um intérprete) e dado o significado original do texto (seu sentido próprio), o primeiro condiciona sempre o segundo, que é deste modo inalcançável.

Da problemática oriunda do movimento descrito no parágrafo acima, surge o círculo hermenêutico que representa a projeção do sentido atribuído pelo intérprete ao texto, que resiste ou confirma, segundo o intérprete, impondo uma reciclagem da interpretação, até a fusão de horizontes entre autor e intérprete do texto. Esta concepção põe de lado uma noção de método ou cânon a ser seguido, pois cada situação de interpretação põe em diálogo um intérprete e um texto, e a compreensão alcançada só pode ser descritiva e não prescritiva, donde diferentes pontos de vista são aceitáveis e apenas atestados, aqui o texto supera seu autor.