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TRANSCENDÊNCIA DO MUNDO

Ferreira da Silva (2010:87-91) — concepção fitomórfica do mundo

A Experiência do Divino nos Povos Aurorais

segunda-feira 11 de outubro de 2021

[FERREIRA DA SILVA  , Vicente. Transcendência do Mundo. São Paulo: É Realizações, 2010, p. 87-91]

“A Experiência do Divino nos Povos Aurorais”, Diálogo, São Paulo, n. 1, ser. 1955, p. 33-38.

Chamamos povos aurorais ou originários àqueles que viveram e ainda vivem o mito como a única e absoluta forma de realidade. Nessa fase da História não se recortou ainda uma Natureza, como sistema legal de fatos físicos, diante de uma esfera sobrenatural e imaterial, refúgio dos valores sagrados. Para essa espécie de consciência não existe uma dualidade entre o humano e o divino, abrangendo as forças numinosas todo o âmbito das manifestações fenomênicas. Não existindo ainda, portanto, uma experiência da natureza que, como um anteparo, possa proteger ou resguardar a consciência da gravitação candente da experiência religiosa, todas as manifestações da vida transmitem a exuberância da lei mítica. A presença obsecante do divino transforma toda ação ou modo de ser em rito e teofania e, em geral, todo comportamento, em testemunho de uma realidade monovalente e omnimoda. Só a ausência de um conhecimento da natureza, ou da representação do mundo como natureza, pode dar razão das estranhas equivalências e identificações com que deparamos na experiência religiosa dos povos originais. O mundo, não sendo vivido como um complexo de fatos físicos e materiais, como uma hipercoisa, nada obsta que o processo fluido, difuso e dramático da vida cósmica adquira um sentido expressivo e fisionômico. [87] Essa é a razão pela qual o homem apreende, nesse momento, a realidade em termos teriomórficos ou fitomórficos. Sabemos, por exemplo, que para os antigos germanos, o mundo era uma gigantesca árvore denominada Yggdrasil, cuja existência remontava à origem das coisas. O mundo não era mundo, mas sim uma planta sagrada que, em sua noturna existência vegetal, traduzia a pulsação última do real. Poderíamos falar, nesse período, de uma transcendência da existência vegetal sobre todas as outras formas de expressão vital. O vegetal não é aqui compreendido como a simples possibilidade de uma existência superior, como o será depois quando, através da fermentação da vinha, a planta superar-se a si mesma, tornando-se o princípio do dionisismo. É o que afirma Hegel  , na Fenomenologia: “A silenciosa essência da natureza, privada de consciência, atinge no fruto o momento em que a natureza, preparando-se para ser digerida, se oferece à vida da consciência. Na utilidade de poder ser comida e bebida, a natureza atinge a sua suprema perfeição”.

Não é a essa fase do dionisismo superador que nos referimos, quando falamos na concepção fitomórfica dos povos aurorais. A inconsciência da religião dos frutos e das flores expressa, pelo contrário, o ser-para-si do vegetal e o alcance infinito do seu tipo de realidade. Estamos tratando, portanto, de uma fase pré-dionisíaca do processo teogônico, na qual a planta não foi ainda rebatida para um plano subalterno, erguendo-se porém como a floresta do mundo, em sua presença subjugante. O universo sem rosto da floresta primordial, na expressão de D. H. Lawrence, é a revelação do divino como alegria da geração e da existência silenciosa. O mundo das flores e dos frutos é uma forma do real que não retorna em si mesma, mas que se oferece continuamente, numa proliferação periférica e num transbordamento de formas e de cores. Os deuses verdes da floresta circunscrevem em seu âmbito a totalidade das coisas. Evidentemente, nessa altura da experiência numinosa, a planta não é ainda o ente das nossas classificações botânicas e do nosso discurso científico. É necessário suspender o regime de representações de nossa cultura, para [88] readquirir a sensibilidade para as melodias míticas de outrora. Max Scheler  , analisando a consciência dos povos primitivos, diz: “Assim é que para os primitivos, do mesmo modo que para as crianças, ainda não é dado o fenômeno da coisa morta; todo o dado é, para eles, um grande campo expressivo, sobre cujo fundamento se destacam as unidades expressivas particulares”. As coisas e o mundo apresentam-se à consciência como um processo dramático, ou ainda, como um conjunto de cenas passionais. É interessante notar que a filosofia da vida, em nossos dias, tende a transportar-nos para uma experiência do vital e para uma compreensão da essência da vida, análoga à registrada por essa experiência auroral. Nesse sentido destacam-se as ideias do professor Ernesto Grassi  , cuja contribuição para uma reelaboração das categorias de compreensão da vida, continuando a problemática do Umwelt   do Barão von Uexküll, é assaz significativa. Assim, diz ele: “O conceito de ato dramático (Schau-Stuck), de cena fantástica, compreende a essência do vivente, porquanto a realidade sensível apresenta-se como um mostrar-se (Sich-Zeigen  ). Não é o sujeito abstrato e particular o portador da vida, mas sim o ato dramático, a cena fantástica, que tem sua origem nos impulsos da paixão”. O elemento original da vida, portanto, é um suceder-se de cenas passionais, em que não se pode separar o agente de seu mundo, desde que o que existe verdadeiramente é a unidade cênico-dramática que se manifesta, por exemplo, nas cenas da nutrição, do amor, do jogo, da caça etc. Bergson  , procurando revalorizar as intuições de Schelling   relativas ao processo vital, já havia posto em relevo, por detrás das formas estáticas do mundo vegetal-humano, o prodigioso impulso artístico-criador que havia plasmado as figuras da vida. Cada planta ou animal seria uma conquista do impulso criador sobre as forças inibidoras e anticriadoras da materialidade. Bergson, entretanto, desconheceu o problema do mundo circundante dos animais e o círculo próprio dos problemas que daí se originam. O cenário bergsoniano da vida é o resultado da concepção positivista do real, e é sobre esse projeto naturalístico que ele procura sobrepor a iniciativa artística do élan vital. Sabemos, depois das investigações de [89] Von Uexküll, que não existe um mundo circundante fixo e idêntico para todos os animais, em relação ao qual pudesse o élan vital exercer a sua pressão criadora. Cada planta ou animal é portador de um mundo, sendo, entretanto, o complexo animal-mundo traduzido filosoficamente sob o conceito de um sistema de cenas, em que se manifesta a sua unidade. A vida animal dá-se como um repertório de atos, sendo o conjunto desses atos o próprio animal. A vida se resolve no atuar-se das cenas, no mostrar-se e no desenrolar-se de suas possibilidades cênicas. Podemos dizer que a vida é uma eclosão de cenas, uma abertura de mundos fantásticos e não qualquer produtividade intramundana, que reduza a vida a um mero episódio da série natural. Bergson, no fundo, viu o quadro da evolução como um positivista, não levando em conta o problema das condições culturais e históricas da própria captação do fenômeno vital, isto é, não considerando que a percepção da vida e de suas formações varia segundo o ciclo histórico em que se realiza. Bergson imobilizou as categorias interpretativas de seu próprio tempo; como filho da civilização cristã ocidental era forçado a rebater a vida para um plano meramente naturalístico, sem qualquer atinência com os problemas teológicos e religiosos. Não foi essa, no entanto, a direção do pensamento de Schelling, que vislumbrou a possibilidade de uma relação – que ele, entretanto, não definiu – entre a formação das configurações vitais e o próprio vir a ser do divino, isto é, entre evolução e mitologia. A tarefa que, por nosso lado, pretendemos afrontar é justamente a de incluir a série natural da vida no princípio teogônico universal. Assim como a vida não se desenrola num cenário já dado, mas é, ela mesma, uma eclosão de cenas, assim também o processo teogônico não transcorre num mundo físico-natural prefixado, mas é também uma total configuração da realidade. Podemos, portanto, estabelecer relações entre essas duas ordens de eventos, isto é, entre a série das formas vitais e a sucessão das hierofanias. Evidentemente, o que tentaremos fundamentar através dessa redução não é o ente biológico percebido pela consciência atual, uma vez que esse só existe para o nosso conhecimento fragmentador e intelectualista. A filosofia [90] romântica tentou justamente destruir a versão estática e material do vital, mostrando que os tipos e espécies conclusos e fechados são momentos de detenção, configurações instantâneas de uma onda móvel e incircunscritível. O pensamento tentou marchar do produto acabado para o produzir infinito, que forma e organiza as expressões finitas da vida, contemplando nessa atividade original o centro de expansão da vida. Já afirmamos, entretanto, que essa sucessão criadora foi transcrita pelo pensamento filosófico, numa dimensão naturalística, compreendida a partir do simples estar-aí intramundano. Outro fato a ser assinalado é a determinação da força morfogenética da vida como princípio endereçado para o homem, nesse encontrando seu coroamento existencial, o que provocou o rebatimento da vida pré-humana a um mero plano preparatório e inconcluso.


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