Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Ferreira da Silva (2009:49-50) – a façanha do eu

segunda-feira 12 de fevereiro de 2024

Toda a realidade meramente fática e sensível do mundo só pode anunciar-se por contraposição a essa transcendência própria do sujeito, como uma corrente contrária à corrente ascendente da liberdade. Ao lançar-se em busca de si mesmo, o homem vê-se encerrado e envolto num mundo, exilado no sensível. Como muitos filósofos já pressentiram e procuraram extenuadamente demonstrar, um “mundo” só poderia delinear-se no círculo de uma ipseidade: o não-eu seria o contragolpe da façanha do eu, o relevo sensível de sua recusa infinita. Eis como Bacca procura esclarecer essa difícil e transcendente verdade: “Por ser o homem essencialmente transfinitivo e não infinitivo, ‘pode’ e ‘tem’ que possuir esses e aqueles limites a superar, um alimento para a sua transfinitude… É a transfinitude do homem que, por exigir limites a superar, torna possível que se lhe dê um corpo e uma matéria como delimitante superável”.

Segundo essa ordem de evidências, o fundamento do real não deve ser buscado fora do âmbito de nossa consciência, pois a subjetividade abraça o mundo e o alimenta de sua própria interioridade.

Podemos propor-nos agora o problema de qual seja o caráter mais fundo dessa realidade, sua autêntica atividade. [49] Como já notamos anteriormente, a capacidade mais própria e diferencial do homem é a faculdade de traçar livremente um projeto ein Vorbild [“Um modelo”] de si mesmo, de inventar um modo de ser do seu ser e depois encarná-lo no mundo corpóreo. —Essa vis poética, esse poder de elaboração de si mesmo como base da subjetividade é o que existe de eminentemente real no universo. É um interesse   infinito, uma paixão que deve subordinar a si todas as outras paixões. O processo de sua realização histórica apresenta-se como uma tendência dionisíaca de criação, como um dinamismo que, lançado no sensível, o vai pouco a pouco dissolvendo e absorvendo em sua própria interioridade.

Em seu momento sensível, o viver se apresenta como um flutuar instável e incoerente, como um caos fragmentário e descosido; numa evanescência contínua, o hoje contradiz o ontem e o amanhã é o inimigo do hoje; sensação segue sensação, impressão segue impressão, nada confirma nada, nada resiste e unifica. É nesse cenário de capricho e frivolidade que se dilata a tarefa colonizadora do eu. A vida alienada e extraviada nas dunas do sensível reflui para um centro e reconhece seu eixo original.

A façanha do eu confunde-se com essa expansão genial de seu próprio círculo, com essa existência cada vez mais ampla e vigilante de que nos fala Rainer Maria Rilke  : — Ich   lebe mein Leben   in wachsenden Ringen… [“Vivo minha vida em círculos crescentes…”.]


Ver online : Vicente Ferreira da Silva