Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Ferreira da Silva (2009:36-37) – morte do próximo e morte própria

segunda-feira 26 de junho de 2023

No complexo fato da morte devemos distinguir a morte para o outro, a morte do próximo, evento a que podemos assistir muitas vezes, da morte própria, fato único e definitivo (e que dá muito caráter de definitivo à nossa vida) e ponto culminante de nossa estância na terra. A morte do próximo é o acontecimento que nos deixa nas mãos os despojos do que foi uma vida, uma pessoa: é um fato que se dá no mundo e fica assinalado no mundo. A morte própria, pelo contrário, é uma experiência intransmissível da qual nada sabemos antes de dar-se e que, uma vez ocorrida, obviamente não podemos relatar. A morte objetiva, para o outro, é superada pelo mundo em sua inquietante volubilidade e pode suscitar em nós determinados comportamentos e atitudes em relação à figura do morto. Pelo contrário, ao sobrevir minha morte, não haverá para mim mais mundo que possa superar-me, pois desfazendo-se a existência das coisas presentes, volatiliza-se e dilui-se [36] a minha circunstância mundanal pelo desmoronamento da base de minha encarnação. Dessa forma, o sucesso objetivo da morte e o sucesso subjetivo não se correspondem e era essa não correspondência que fazia dizer os epicúreos que a morte não existia, pois quando vivos ela ainda não existe e quando mortos não estamos presentes para atestá-la. Não podemos, portanto, pensar uma em termos da outra. Isso não implica que o finar-se de uma pessoa não nos arroje emocionalmente no abismo da morte, fazendo refletir em nosso espírito todo o vácuo do aniquilamento; entretanto, mesmo essa participação não equivale à misteriosa metamorfose ocasionada pela libertação da esfera fenomênica. Essa libertação e não o sucesso objetivo da morte é que constitui para cada um de nós o muro intransponível, o mistério que não pode ser analisado por nenhuma ciência, pois foge às nossas categorias, transpondo os limites do cognoscível. Adotando a terminologia de Gabriel Marcel  , podemos afirmar que a morte não é um problema, no sentido de um fato objetivável e analisável pelo nosso intelecto, mas como um fato íntimo e pessoal, como uma instância não-objetiva, constitui-se num mistério. Devemos compreender que para o que morre a morte não é só a destruição de sua forma somática, mas complexivamente é uma ocorrência que diz respeito à sua experiência global, ao seu ser no mundo, do qual o seu corpo é apenas um dos ingredientes. Essa experiência íntima e subjetiva, por não poder ser traduzida em conceitos, por não pertencer ao campo dos objetos, não pode ser por princípio explicitada em uma forma de conhecimento. Para nós que continuamos nos quadros da vida, o morrer soa como uma interrupção da resposta ao mundo; para o que morre, entretanto, não podemos sequer imaginar o sentido interno do fato. Não existe, pois, uma sabedoria da morte. O que pode existir, sim, é uma confiança no mistério, um sentimento efusivo que o inteligível não é tudo e que podemos abandonar-nos mesmo àquilo que não pode ser vertido nos diagramas do conhecimento. Essa confiança é contrária ao desafio do conhecimento, é o sentimento esperançoso e tranquilo que, como o núcleo do nosso ser, se opõe ao terror do aniquilamento.


Ver online : Vicente Ferreira da Silva