Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

Página inicial > Fenomenologia > Ferreira da Silva (2009:32-33) – morte, situação-limite e ruptura

Ferreira da Silva (2009:32-33) – morte, situação-limite e ruptura

segunda-feira 26 de junho de 2023

A atual terminologia existencialista inclui a morte entre as situações-limite, isto é, entre as situações que constituem uma determinação insuperável da vida, que não podem ser contornadas ou transformadas pela ação, erigindo-se como barreira à nossa liberdade. Toda situação é urgência e exige determinados comportamentos e reações e, uma vez consciente, faz apelo a uma atitude; esse é o traço que dá à vida o sentido de uma tarefa ininterrupta e à morte o sentido de um perene descanso. Tendo em vista estas ideias, vemos que somente podemos estabelecer hierarquias de proficiência e conhecimento quando se trata de situações e limites dilatáveis pelo homem, de dificuldades ao nível do engenho humano e que são afrontadas com mais ou menos capacidade. Assim é que falamos nos artistas da vida, nos gênios, nos heróis e em toda a gama de personalidades que encarnam esses ou aqueles valores vitais. No entanto, em face da morte, nada podemos fazer; não há um conhecimento, uma técnica da morte, nada que vença a sua opacidade e a sua lei se abate inexorável sobre a humanidade desarmada. Entendamos bem estas palavras, pois falamos comumente, e com razão, de atitudes diante da morte, e Rilke   pedia a Deus que desse a cada um sua morte própria. Vemos que o que se pretende aqui é um adensamento da condição humana e não uma excepcionalidade de quem conferisse uma compreensão mais diáfana da morte. Assumir a morte, tê-la presente em todo percurso da vida, inscrevê-la como a nossa mais próxima e iminente possibilidade não é desvendar o seu mistério; significa, pelo contrário, transportar o seu incitamento para a vida, nimbar a existência com seus raios graves. Tocamos aqui o ponto mais importante, no concernente a uma meditação sobre a morte: na sofreguidão de conhecer queremos reduzir tudo a termos e módulos do conhecimento, pretendendo alcançar uma imagem ou esquema da morte, objetivando-a. Dessa incursão voltamos entretanto desalentados, só nos resta a percepção do enrijecimento e [32] decomposição da forma corporal. Sentimos, porém, que não foi apenas isso que perdemos, que o laço desfeito não diz respeito somente a esse despojo corporal, mas implica uma solidão e uma ruptura, que tinha nesse corpo unicamente a base de sua presença. O que entendemos por morte, no sentido humano, é o desaparecimento de uma pessoa amada, o sentimento de que “esse ser, na singularidade de sua pessoa, já não está aí e não pode voltar a esse corpo” (Landsberg). É, portanto, um sucesso que transcende a pura fenomenalidade perspectiva e que não se esgota em nenhum processo biológico ou físico-químico. É uma proximidade, um vínculo intersubjetivo, um convívio entre duas almas que termina com o processo da morte e é justamente essa solidão e ausentamento que o homem procura interpretar quando se alça a uma visão da morte e da sobrevivência. Todas as visões objetivantes da morte que a consideram como um simples fato intramundano, como a corrupção de um corpo, ou o desmoronamento de uma estrutura biofísica, desprezando a relação pessoal interrompida, não respeitam a totalidade de sua natureza. Se na experiência da morte do outro, do próximo, nós devemos contar, muito além do fenômeno biológico, com o misterioso ausentamento da pessoa, na experiência imaginativa da morte própria, da minha morte, o fato material é também unicamente um dos aspectos do evento. “Todas as interpretações da morte que se referem ao meu corpo ou à minha vida psíquica são radicalmente insuficientes, pois do que se trata é de mim mesmo, da realidade de minha própria vida; não de seus ingredientes, dispositivos ou estruturas, de tudo aquilo com o qual a faço, mas de mim, de quem a faz” (Julián Marías).


Ver online : Vicente Ferreira da Silva