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Horizonte e Complementaridade

Eudoro de Sousa (HCSM:192-195) – Física dos Pré-Socráticos

Sempre o mesmo acerca do mesmo

quinta-feira 16 de setembro de 2021

[DE SOUSA, Eudoro. Horizonte e Complementaridade. Sempre o mesmo acerca do mesmo. Lisboa, INCM, 2002, p. 192-195]

Assinalemos na literatura historiográfica os seguintes pontos: 1) para os antigos, todos os pré-socráticos são físicos, isto é, todos teriam escrito livros «acerca da natureza» (peri physeós); 2) quando Aristóteles afirma que a doutrina física de Tales de certo modo depende dos theológoi, quer dizer, daqueles que filosofaram «tomando a Noite como ponto de partida» (arkhê), é claro que ele aponta para uma filosofia que implica uma teologia (mitologia) ou que ainda está implicada numa teologia; 3) daí resulta que, para os historiadores antigos, a fisiologia dos pré-socráticos também seja teologia, isto é que a doutrina da natureza também fosse uma teoria da divindade; ou ainda, que teria havido uma só doutrina concernente ao mesmo ser, o qual se revelava através do que era, ora como divindade, ora como natureza, ora como natureza-divindade.

E agora vejamos: que podem dizer os modernos dos antigos filósofos da natureza? Em última análise, o que segue. Que a filosofia dos pré-socráticos consistiu principalmente na indagação do Um (tò hèn); que este «Um» não é um entre os muitos (tá pollá), não é o singular de um plural, mas a Lei do Ser (tò ón  ) dos entes (tôn ontôn). Por isso, nós encontramos sempre nos escritos (tão poucos!) que nos restam dos filósofos da natureza o hén   ao lado do ón e os pollá ao lado dos ontá, isto é, o Um ao lado do Ser e o múltiplo ao lado dos entes, e encontramos, quase sempre, os dois, o Um e o Ser, como termos intercambiáveis; tanto vale falar do Um como do Ser, e do Ser como do Um. Depois, dizem-nos também que esse hén ou esse ón, esse «Um» ou esse «Ser» — repetimos — é a lei da physis  , isto é, a lei dos pollá e dos ónta, ou seja, a natureza dos muitos e dos entes. Mas physis não significa o mesmo que nossa palavra «Natureza». Physis é lei que governa todas as possíveis ou realizadas configurações da totalidade dos entes; e essa lei, segundo Heráclito  , «ama (ou ’prefere’) ocultar-se» (kryptesthai philei), escusado seria insistir para o como estas palavras do grande sábio de Éfeso condizem com o que acima escrevemos acerca da Fulguração Ofuscante, pois também entre os seus fragmentos se acha aquele «raio que tudo governa». Enfim, dizem-nos os modernos estudiosos que a atividade especulativa dos primeiros filósofos culmina, precisamente, no esforço por desocultar a Natureza que preferia ficar oculta. Desocultar, na natureza ou além dela, o «Um» ou a lei do Ser dos entes ou dos muitos é, pois, a busca da Verdade (alétheia), o provocar de outras fulgurações que iluminem o que de uma vez, porque de olhos ofuscados, não vimos porque ficou oculto; o transmutar a ausência, experimentada como provocação da Realidade, em presença sentida e pensada pelo filósofo.

Em primeiro lugar, a filosofia dos pré-socráticos é esta; em segundo lugar é que vem o esforço por tornar sensível e inteligível a essência do «Um» ou do «Ser» ou da «Natureza», ou antes, do seu princípio. Porém, o Ser, o Um, o princípio da Natureza não é a água, o ar, o fogo, o Indiferenciado, mas sim o Indiferenciado é que seria como o ar, como a água, como o fogo. Pois o Indiferenciado de Anaximandro   parece ser o único «abstrato» a que convém as formas «concretas», pelo menos, a do seu antecessor e a do seu sucessor.

Tal é, por conseguinte, a fisiologia que está entre a física que mitologia foi e a física que na filosofia haverá. O ser-um das muitas coisas que aparecem — eis o que ela descobriu, a natureza que desocultou, a physis que verificou. Para que a descobrisse ou desocultasse, era necessário, evidentemente, que a natureza se tivesse encoberto ou ocultado. Seria a natureza manifesta na mitologia? E, se o era, que teria acontecido para que ela se tornasse oculta? Por outras palavras, que sobreveio à natureza, que a escondeu?

Mas poderemos nós estarmos certos de que essa natureza que se revelava na mitologia, era a mesma natureza que se ocultara perante o olhar do primeiro filósofo? Não seria já esta physis, outra natureza? Em verdade, se é certo que uma atitude teórica desenha os contornos do próprio mundo em que surge, certo deverá ser também que a physis dos pré-socráticos substituiu a outra, no mesmo instante em que eles se propuseram descobrir a sua.

Estabeleçamos como tese, por improvável que pareça, que a physis dos pré-socráticos nasceu subitamente como que do «interiorizar-se», do «recolher-se», do «encerrar-se» de uma natureza que, antes, não tinha dentro nem fora. Mas, ainda assim, do recolher-se a quê e em quê?, perguntar-se-ia. Pergunta à qual não vemos outra resposta, senão esta: a physis nasce do recolher-se em si mesmo, aquilo que nós temos de designar por «natureza», à falta de outra palavra que signifique um mundo sem intimidade — entenda-se, um mundo sem aquela intimidade humana, que poetas de todos os tempos sempre se comprazem em atribuir-lhe (com a notável excepção de Alberto Caeiro  ; o que lhe permitiu dizer que, por isso mesmo, teria sido ele «o único poeta da natureza»). Ora, para que alguma coisa se recolha a si e se encerre em si, necessário será que, além dela, outra haja. Donde concluímos, sem demora, que a physis dos pré-socráticos nasceu da natureza mítica, no momento em que esta se recolheu perante outro ser, de cujo exteriorizar-se resultou, precisamente, a interiorização da natureza. Noutros termos, a natureza não teve dentro nem fora, até o dia em que alguma de suas partes, algum de seus membros, separando-se dela, ficou de fora.

Escusaríamos de dizer qual das partes se separou. A aurora da Humanidade é o crepúsculo da Naturidade. A natureza interiorizou-se, recolheu-se, encerrou-se nos limites que o Homem estabeleceu pelo próprio surgir nela ou diante dela. A physis é a natureza recolhida perante o Homem.

Somente, repare-se: na época dos pré-socráticos, mal começara o processo de hominização (não nos referimos, evidentemente, ao processo paleontológico), isto é, da «involução» da natureza, que instituiu a physis. Nesse momento, a natureza ainda era divina, ou povoada de deuses, com suas epifanias vegetais, animais e humanas (e até siderais) — talvez, por isso Schelling   dera a entender que não seria possível instaurar uma filosofia da mitologia sem uma concomitante filosofia da natureza — ou, pelo menos, não ousavam, os homens, destituí-la de um theíon   periékhon, de um «circundante divino», para usar os termos que talvez já fossem os de Anaximandro. Se o processo se detivesse aí, nunca haveria chegado o instante em que lhe atribuíram a invenção dos deuses (sofistas), nem após terem sido um elemento privilegiado da natureza, aspirariam ao poder tirânico que acabaram por exercer sobre ela e contra ela. Para que a natureza, interiorizando-se, viesse a tornar-se em physis, bastava que os homens só fossem primi inter pares, os mais nobres, entre todos os seres naturais; essa dignidade sua, não despotenciava a natureza, com seus deuses do céu e do inferno, não a aniquilava. É curioso lembrar que Aristóteles, cuja filosofia não ignora os homens, mas, ao que parece, ainda nada sabe acerca do Advento do Homem, crê inabalavelmente na eternidade do Mundo.