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Pensar e Errar

Ernildo Stein (2015:130-133) – deinon (estranho, terrível)

Capítulo 2 – A errância - o erro

quinta-feira 8 de junho de 2023, por Cardoso de Castro

“muitas são as coisas estranhas, mas o mais estranho é o homem” [Sófocles, Antigona]

Encontramos em Heidegger uma estratégia de falar do homem como aquele que compreende o ser. Ainda que com tal afirmação não se limite ao elemento primeiro descritivo de antropologia, ela, contudo, é o começo para um jogo de enunciados polares sobre o que é o ser humano. As oposições que irão aparecer apoiam-se em conceitos que descrevem os aspectos paradoxais do ser humano. Tem-se mesmo a impressão de que as duas determinantes fundamentais dos enunciados, o ser verdadeiro e o ser falso, estão como que no comando das descrições do homem. Temos, no texto de interpretação do poema de Hölderlin  , Der Ister, que Heidegger apresentou em aula no ano de 1942, um exemplo único desse processo de polarização.

[131] Vamos seguir alguns passos desse jogo de oposições com que o filósofo prepara as suas análises do homem. A metáfora básica é tirada do próprio Rio Danúbio enquanto torrente de água. Trata-se do movimento e do lugar. Ao mesmo tempo que as águas se afastam, elas fundam lugares, e somente podem fundar lugares porque se afastam. Permanecer é ao mesmo tempo aquilo que se reporta ao ir embora. Assim, a permanência é o familiar, e o ir embora é o estranho. Entre o familiar e o estranho pode então desenvolver-se a aventura. É ela que pressupõe o familiar e a atração para enfrentar o estranho. Familiar e estranho são apresentados como “a plenitude do ser”.

Mais complexa, entretanto, torna-se a situação, quando do familiar, que é a presença, se origina a ausência, quando a experiência do perigo está justamente nesse saber e não saber, entre permanência e mudança. E por isso que o ser humano, ao mesmo tempo, está parado e está a caminho, o que significa a ambivalência que pode ser expressa pela afirmação de que o homem está sempre no descaminho. Aberto para todos os caminhos significa não estar em nenhum caminho, portanto estar perdido. O familiar e o estranho confundem o modo de ser fundamental do ser humano. Ao mesmo tempo que está “em todos os becos dos entes em casa”, ele, contudo, deve chegar a algo. Nisso se fundamenta o seu caráter de pobreza quando está parado, e de riqueza quando alcança algo.

Heidegger toma de Sófocles   a palavra deinòn (estranho, terrível), mostrando que se pode concordar com o poeta quando traduz o verso de Antigona como “muitas são as coisas estranhas, mas o mais estranho é o homem”. O mais estranho do homem lhe vem do próprio estado de impermanência: “Somente o homem está posto em meio ao ente, de modo que se relaciona com o ente como tal. E é somente por isso que esse ente, o homem, pode, na sua relação com o ente, esquecer o ser”(Heidegger, 1984). Essas frases parecem descrever algo que já nos é conhecido, no entanto com elas se descreve o estranho, o perigoso, o terrível: a possibilidade de ele ser “fora do ser”, quando propriamente todo o ente torna-se ente. Parece que no deinòn falta ao homem aquilo que justamente, por ele, é trazido ao manifestar-se. É por isso que o homem é, ao mesmo tempo, o que está a caminho e o que [132] não tem caminho, quando exatamente o fundamental seria habitar, isto é, estar no familiar, e não no estar atraído sempre pelo não familiar. Justamente quem compreende o ser esquece o ser.

Maior do que qualquer catástrofe na natureza ou no cosmos é o fato de o estranho se apoderar do homem pelo esquecimento do ser, pois assim o familiar se torna uma errância vazia que ele preenche com um rodar sem sentido. “O estranho do não familiar consiste aqui no fato de o homem, na sua essência mesma, ser uma Katastrophée, isto é, uma inversão que o afasta de seu próprio modo de ser. O homem é, em meio ao ente, a única catástrofe” (Heidegger, 1984).

Com esse conjunto de metáforas apresentadas por enunciados polares enigmáticos, Heidegger atinge aquilo que ele quer propriamente afirmar do ser humano: posto além de qualquer lugar, ele é o perdedor do lugar. O filósofo afirma que a polis   é o lugar e que, portanto, ele está posto além da polis e é perdedor da polis. Tanto o ente que está além do lugar quanto aquele que perde o lugar, todos estão fora do caminho. Provavelmente, com essa ambivalência e polaridade, o filósofo quer introduzir o quanto o ser humano enfrenta o perigo com a polis, ou o estranho, o ameaçador, na medida em que nesse lugar que é a polis ele deveria encontrar a única instância como estância, onde tudo se decide. Num primeiro momento poder-se-ia pensar que somos le ados pela realidade de que “tudo” é “político”. E é bem assim que pensamos que o que é polis é determinado a partir do “político”. Estão, portanto, em relação estreita o “político” e a polis. A questão é a de qual o modo pelo qual temos de pensar em primeiro lugar essa ligação entre os dois conceitos. Certamente o “político” é aquilo que faz parte da polis e, portanto, somente pode ser determinado por ela.

É problemático, no entanto, o que é primeiro na determinação dos dois conceitos e, portanto, qual deles vem do outro, é derivado. Estaríamos fazendo a mesma coisa que quando dizemos que o “lógico” vem da essência do logos  , e que o “ético” vem da essência do eethos. Ou deveríamos inverter tudo? Heidegger afirma que polis não se deixa determinar ‘politicamente’. A polis, e justamente ela, não é, então, um conceito ‘político’.” O filósofo [133] se pergunta o que é a polis dos gregos: “Quem é capaz de nos dizer que os gregos, apenas pelo fato de ‘viverem’ na polis, tenham também tido clareza sobre o acontecer essencial da polis? Talvez seja o nome polis justamente a palavra para o âmbito que constantemente se tornou problemático e digno de ser questionado e, por isso, tornava necessárias decisões e fazia os gregos estarem na contingência de deslocar a verdade da polis sempre para o sem fundamento e o inacessível” (Heidegger, 1984).


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