Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Ernildo Stein (2012:33-35) – Lebenswelt enquanto antepredicativo

segunda-feira 5 de fevereiro de 2024

Após analisarmos de vários modos essa questão do mundo da vida, vamos examinar, agora, apenas mais uma definição, para que possamos ter uma espécie de ideia geral do que significa essa prototeoria do mundo da vida em Husserl  . Não se pode representar muito isso, mas poderíamos dizer que o conceito de mundo da vida quer guardar uma proximidade com um realismo em que se resgata a vida concreta, o cotidiano e tudo aquilo que está na contingência, mas que em si não passa. O mundo da vida, se passar, não tem mais sentido. Tudo que passa, entretanto, é remetido para esse espaço, esse lugar.

Essa intenção da fenomenologia que terminou desenvolvendo a teoria do mundo da vida diz, no fundo, o seguinte: o mundo da vida é aquilo que se compreende por si, que é evidente. Ela não precisa e não há muletas para se ter acesso ao mundo da vida. Ela não é uma sabedoria sobre a vida. É a coisa mais simples que Husserl criou para mostrar que, de fato, a ciência que trabalha com as nossas experiências não atinge um certo universo. Um universo que seria a vida, mas que, em Husserl, na medida em que ele criou o termo, passou a ser o universo anterior à experiência, portanto, antepredicativo.

Poderíamos fazer variações livres sobre esse termo, mas em nenhum momento escaparia isso que Husserl disse ao ter criado esse lugar que remete a um horizonte, o qual, no dia em que o tratarmos como um lugar definido, passa a ser um não lugar. Perde-se, então, exatamente o papel que ele deve desempenhar, isto é, de ser anterior. Poderíamos usar, para esclarecer o conceito de Husserl, sem os seus temores metodológicos, nem as objeções metodológicas de Heidegger, uma metáfora um pouco mais esclarecedora do que significa a palavra Lebenswelt  . Poderíamos dizer o seguinte: não há experiência se não houver uma experiência, isto é, se não houver algo que nós já sempre experimentamos, mas que [34] não podemos descrever como experiência porque nos escapa. É o chão originário, é o lugar onde algo caiu, onde algo se estabeleceu, mas que não se recupera. A possibilidade de recuperar nossas experiências deve-se a esse lugar primeiro. Se não houver mundo da vida que não pode ser apresentado em frases, que não pode ser predicado, e que serve de rede   para apanhar as nossas experiências, não podemos falar de experiências. Quer dizer, o mundo da vida mostrado por Husserl passa a representar isso que podemos chamar condição de possibilidade de todas as experiências. É claro que isso fica bem abstrato, mas nós de certa maneira podemos representar assim: há um chão criado por algo que aconteceu, que foi vivido, mas que é apenas condição de possibilidade de todas as experiências.

Podemos ampliar isso para muitos campos das Ciências Humanas. Elas recorreram ao mundo da vida exatamente por isso e fizeram do mundo da vida seu princípio. Princípio que deve ter a qualidade de propriamente não poder ser sustentado e definido por si e, portanto, de não poder dar conta de si como sendo princípio de si, mas como o ser para outras coisas.

Nas Ciências Humanas, o conceito de mundo da vida tem esse caráter de princípio. Observamos na Psicologia, na Sociologia e mais do que nunca hoje na Antropologia, recorrências ao conceito de Lebenswelt. Elas empregam termos um pouco diferentes, porque cada uma dessas ciências trata de experiências diferentes a partir, sobretudo, de fatos.

Todas essas experiências mergulham no mundo da vida, daí a metáfora e o remeter à ideia de fundamento. Não mais de um fundamento exterior, de uma natureza que nos sustenta, mas simplesmente ao fato de nós sermos, ou de a humanidade ser no sentido husserliano. Isso implica inelutavelmente algo que, depois de nós sermos, não se recupera. Isto é, se faz desde que somos e não se recupera. Pelo fato de não se recuperar representa a possibilidade de sermos seres que fazem [35] experiências. As Ciências Humanas quando recorrem à ideia de mundo da vida como fundamento o fazem porque é um fundamento que está aí e não é metafísico, natural, etc.

[STEIN, Ernildo. As ilusões da transparência: Dificuldades com o conceito de mundo da vida. Ijuí: Editora Unijuí, 2012, p. 33-34]


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